A noiva da janela

Conto de Manoel dos Santos Pereira
01/08/2001

(Choro as mortes sempre pela manhã. Todas as mortes na minha vida. É quando os olhos estão descansados e posso sentir uma imensa tristeza. Ajoelho-me junto à cama e, como mamãe me ensinou, choro todo um choro. Não deixo resquícios para o decorrer do dia. Choro tudo. Meu corpo parece que ganha força; meus olhos brilham e sei que durante o dia não mais chorarei. Faço isso há anos, mas agora já não lembro por quem choro. Desespero-me. Então, todos os dias, recorto a lista do obituário dos jornais e as reportagens sobre mortes violentas. Choro por eles. Desconhecidos. Choro com força como se fossem amigos ou parentes queridos. Consigo entristecer-me de verdade. Só tenho medo de me esquecer de recortar os jornais ou ter nomes repetidos para chorar. Isso muito me assusta.)

Por onde quer que percorra meus olhos, vejo-a. Estática, como quem deixou de acreditar na vida, observa-me. Trocamos olhares insidiosos. Sempre que abro a veneziana, lá está ela com o seu vestido branquinho a perscrutar o que se passa na modorrenta rua José Loureiro, ao lado da Praça Carlos Gomes (onde ninguém sabe nada sobre o Guarani). Conhecemo-nos numa tarde fria de junho do ano passado. Foi meio por acaso. Eu tragava umas baforadas do cigarro, quando a avistei na janela. Janice passou apressada e entrou no prédio. Ia divertir uns senhores no 13º andar do prédio ao lado daquele onde morava a estranha mulher. Sim, bem no meio da tarde, Janice e suas amigas abrem pernas e bocas e engolem velhos corpos num decrépito edifício no centro da cidade. (Curitiba está cheia de puteiros “escondidos”; em cada esquina, um).

Janice vale um parágrafo. Negra de pernas infinitas, caminha como se quisesse foder o mundo num único dia. Dizem que veio de Moçambique. Puta obstinada em ser puta. Tem vocação. Corpo de moer homens. Peitos, coxas, pêlos, mãos transpiram sexo. Dia desses, depois de muito insistir, aventurei-me por seu corpo. Sim, sou desses homens que gostam das prostitutas. Nunca neguei. Mas com Janice não é apenas gostar. É amar. Amo-a. Mas isso, não digo. Sempre tive muito medo de declarar-me para as mulheres. Imagine, para uma puta. Principalmente nessa minha idade. Janice não só vale um parágrafo, vale uma crônica. Outro dia.

Luís, com seu passinho de pingüim, mostrou-me pela segunda vez aquela mulher na janela. “Veja, Manoel, ela sempre nos está olhando. Deve ser louca, pois não tira esse vestido de noiva”. Desde esse dia frio, nunca mais tirei os olhos daquela janela. Do John — bar mais que fedorento na José Loureiro — observo o mais ínfimo movimento na janela. “Você está maluco. Ela nem ao menos olha para você”, cansa de repetir Luís, amigo já em fim de carreira. Sei que nunca tive motivos para nutrir a menor esperança em trocar palavra com aquela mulher. Nem ao menos conheço todo o seu corpo com os olhos. Sempre a vejo dos bustos para cima. Basta-me. Possui dois perfeitos seios sob o vestido branco. O olhar sempre está fixo na janela do prédio vizinho ao meu. Um olhar parado, sem vida, mas lindo. Talvez, assim como eu, tenha a esperança de ser notada. Acho que é uma pessoa triste.

Essa história, por mais estranha que pareça, só pôde ser contada agora devido àquele incidente. Nunca quis narrar esses fatos, mas o faço pelo remorso — sentimento que me acomete de tempos em tempos — de não ter feito um mínimo de esforço para salvá-la. Talvez a pudesse ter ajudado. Na semana passada, um incêndio, provocado por mulheres de policiais, destruiu parte de um prédio da José Loureiro. Ali morava esta mulher por quem, ainda, perco cada segundo da vida. Tenho certeza: nunca a esquecerei. Sua pela alva e delicada, mesmo a distância. Como esquecê-la se esteve em minha vida durante todo um ano. Mas um incêndio, que também marcou o estranho sumiço de Luís, destruiu parte da minha vida, por mais piegas que isso pareça. Mas é isso mesmo. Como o amor é piegas, e o não correspondido mais ainda, sou piegas, como só as putas conseguem ser.

No fim de semana passada, chorei todo um choro pela manhã e rumei ao trabalho. Ao chegar na praça Carlos Gomes, vi um risco de fumaça a tingir algumas janelas do prédio. Os bombeiros estavam a caminho. A balbúrdia começava a tomar conta da José Loureiro. Garis, putas, desempregados, empregados, mulheres, homens. Todos alvoroçados. Foi o último olhar. Janice, grudada ao meu braço, também viu quando a noiva da janela jogou-se. Espatifou-se. Os caquinhos voaram pela calçada e tingiram tudo de branco. Antes de os bombeiros começarem a trabalhar, catei um caquinho e o coloquei no bolso. Colei-o na cabeceira da minha cama, tirei todos os recortes do jornais das paredes. Vou chorar a vida inteira.

Manoel dos Santos Pereira
Rascunho