A missão

Conto inédito de Luiz Ruffato
Ilustração: Fabio Miraglia
01/06/2023

Com cautela, Abel chegou-se uma vez mais à janela, arredou um pouco a cortina de voal e contemplou a praia vazia. As ondas acariciavam a areia branca e, além, o brilho do sol, ainda ameno, dava um tom róseo às poucas nuvens e um tom laranja à superfície das águas. A natureza toda parecia exultante naquele domingo de dezembro, quase Natal. Abel afastou-se e suas vistas custaram a acostumar novamente com a sala penumbrosa e abafada. As ordens foram taxativas: não saia do apartamento, não se deixe observar, aguarde. E ele aguardava… Ansiosamente aguardava…

Chegara na tarde do dia anterior. Só fora comunicado de sua missão na hora de embarcar no ônibus, na rodoviária de Juiz de Fora. Um rapaz, pouco mais velho que ele, aproximou-se, sem que percebesse, abraçou-o, chamando pelo nome, e, como fossem velhos amigos, arrastou-o para o bar. Enquanto caminhavam, o rapaz falou, entredentes, para que prestasse atenção, Você vai comprar uma passagem para o Rio de Janeiro, quando desembarcar vai pegar um táxi, dar como endereço, preste atenção que vou repetir só uma vez, Avenida Atlântica, mil seiscentos e cinquenta e sete, Avenida A-tlân-ti-ca, mil-seis-centos-e-cin-quen-ta-e-sete, se apresentar para o porteiro e dizer que vai ficar no apartamento do doutor Nogueira, doutor No-guei-ra, entendido?, para assistir a final do campeonato, no Maracanã. Não saia pra nada! Apenas espere, amanhã alguém vai procurar você… Encostaram no balcão, o rapaz pediu dois cigarretes, duas Coca-Colas, e, com os pés, discretamente empurrou-lhe a bolsa-de-viagem de napa, que trazia consigo. Mastigando o salgadinho, o rapaz disse, Aí você tem tudo o que precisa. E, a voz um pouco mais alta, passou a falar sobre o jogo, bastava amanhã o Flamengo empatar com o Vasco que desfilaria com a faixa de campeão. O time está jogando demais! Ao terminarem, pagou a conta, entregou-lhe a carteira de couro, falou que o Professor se orgulhava muito dele e pedia que enviasse lembranças ao Tio. Virou as costas e, tão misteriosamente quanto surgira, desapareceu entre os transeuntes que lotavam o lugar. Só quando Abel ocupou a poltrona no ônibus é que sentiu as pernas bambas, o coração disparado, pensou que ia desmaiar.

Abel… Há mais de um ano respondia por aquele nome, mas quede de se habituar?! Quem o rebatizara assim fora o Professor. Antes, chamava-se Dênis… Não sabia de onde a mãe tinha tirado aquele nome — nunca conhecera nenhum outro garoto que pudesse chamar de xará… Dênis… Sentia-se, por isso, único… Depois, descobriu na biblioteca do padre Roland, quando frequentava um grupo de jovens, em Cataguases, que Dênis derivava de Dionísio, deus grego do vinho… E então, ao zombarem dele no colégio por ser gordo e desajeitado e quatro-olhos, aferrava-se ao seu segredo, Dênis, único filho de uma mortal a alcançar a graça de se tornar deus, e mirava os outros, meninos e meninas que o desprezavam e o fustigavam, não com desdém ou raiva, mas com pena. Mais tarde, achou engraçado que a mãe, católica fervorosa, de uma religiosidade cândida e supersticiosa, o tivesse batizado com um nome pagão, enquanto o Professor buscasse para ele inspiração na Bíblia…

Almoçara nas cercanias da rodoviária Novo Rio, engabelando o tempo para chegar em Copacabana no fim da tarde. Já que, após fechar a porta atrás de si, não poderia mais deixar o apartamento, queria garantir que não passaria fome. Refestelou-se com uma feijoada completa, que ampliou ainda mais a sensação de calor que sufocava o sábado e que nem as duas garrafas de Crush, bebidas no gargalo, abrandaram. A camisa molhada, o rosto respingando suor, correu os quiosques e comprou o Jornal do Brasil, cinco pacotes de Mirabel, quatro de cream cracker Duchen e três Chokitos. Jogou tudo na bolsa-de-viagem — não havia tido coragem de abri-la ainda —, tomou um táxi e recitou o endereço, que vinha repetindo desde o momento que o ouvira em Juiz de Fora. Nunca havia pisado no Rio de Janeiro e, olhos arregalados, percorreu a paisagem, de um lado, as praias lotadas, o imenso mar azul, de outro, edifícios altos, em cujas esquinas banhistas apinhavam os botequins bebendo chope e espetando tira-gostos, a brisa salgada enchendo os pulmões. O mundo manifestava-se em alegria, divertimento, despreocupação… E, então, percebeu-se desamparado, longe de tudo, longe de todos… E uma enorme angústia instalou-se no peito, comprimindo-lhe a garganta…

O porteiro, sotaque nordestino bem pronunciado, recebeu-o com desconfiança. Bastou, no entanto, mencionar o nome do doutor Nogueira que seu rosto iluminou-se, Doutor Nogueira, gente fina, decente, anda sumido, telefonou, pediu para deixar a chave, aqui, ó, e repassou-a, sorridente. Veio então ver a final do campeonato? Abel respondeu que sim e repetiu as palavras ouvidas em Juiz de Fora, Amanhã, basta o Flamengo empatar que posa com a faixa de campeão. E o time está jogando demais! É verdade, o porteiro concordou, desconsolado, revelando que torcia para o Ceará, mas que, no Rio, era Botafogo, Por causa da cor, disse, explicação que Abel só entendeu muito mais tarde, quando lembrou, Ah, claro, ambos são alvinegros!

Encontrava-se tão tenso que ao descer do táxi nem notou detalhes da fachada do prédio. Subiu apressado o lance de escadas e apresentou-se resfolegante ao porteiro. Com a chave na mão, entrou no elevador, apertou o botão do oitavo andar e, após trancar a porta do apartamento, tirou o relógio Seiko, pulseira de aço, jogou-se no tapete da sala, exausto, adormecendo quase de imediato. Acordou zonzo, dolorido, sem noção das horas. O jogo de luz e sombra tornava o cômodo um barco ancorado, galeando ao sabor da aragem. O corpo permaneceu inerte, entorpecido. E emergiu a lembrança de uma viagem, quando tinha quinze anos… Chiquinho, um motorista conhecido do Abílio, seu irmão mais velho, transportava móveis para uma fábrica de Ubá. Abílio comentou com Chiquinho que Dênis desejava muito conhecer o mar e este se prontificou a cumprir o desejo, desde que se sujeitasse a substituir seu ajudante. Dênis não conseguia controlar a excitação quando entrou na cabina do Mercedes cara-chata trucado, no qual iriam rodar quase mil e quinhentos quilômetros Rio-Bahia acima até Conceição do Coité, na Bahia, com paradas para descarregar em Inhapim, Padre Paraíso e Serrinha. Na volta, o caminhão vazio, Chiquinho desceu pela BR-101 para uma rápida parada em Guarapari. Estacionou na beira da praia do Riacho, Dênis desceu, sem camisa, a calça arregaçada, entrou no mar, afundou a cabeça, engoliu água, assustou-se com as ondas, saiu, sentou na boleia do caminhão, e, coçando-se, enfrentou resignado os restantes quatrocentos quilômetros até Cataguases, onde apeou, mapeado de feridas provocadas pelo sal grudado na pele.

Acendeu a luz, clareando a pequena sala, sofá de dois lugares coberto por um pano azul-marinho, estante com seis ou sete livros, um pesado cinzeiro de cristal sobre a mesinha de centro, cesta de bambu cheia de revistas velhas, radiola, alguns discos, telefone estendido no chão, tudo coberto por um pó preto, há muito, parecia, alguém não punha os pés naquele apartamento. Caminhou pelo estreito corredor escuro, abriu a porta da direita, o cômodo vazio, tacos soltos, bocal sem lâmpada; abriu a porta da esquerda, acendeu a luz, cama de casal com colcha de piquê vermelha, criado-mudo, verificou o guarda-roupa, fedendo a naftalina, cobertor, toalhas de banho, terno cinza, ruço, pendurado num cabide de arame; penetrou na cozinha, acendeu a luz, mesa e quatro cadeiras de fórmica azul-claro, geladeira, dentro uma garrafa de água de plástico, no armário algumas panelas, copos e talheres, fogão forrado por uma fina camada de gordura, e, acima da pia, a janela, emperrada, dava para os fundos de outro prédio. Nenhuma fotografia, nenhum quadro, nenhum indício do tal doutor Nogueira. Doutor… Seria médico, colega de profissão do Professor? Ou advogado… Por que emprestaria o apartamento para uma missão tão comprometedora? Seria também militante? Ou simples simpatizante? Ou ainda apenas um homem ingênuo e desinformado? Ingênuo e desinformado? Não, não, não… Ingênuos e desinformados sua mãe, seu pai, seus irmãos, seus antigos amigos… Esses sim… Ingênuos e desinformados… E era por eles que se encontrava ali agora, por eles e pela imensa massa de ingênuos e desinformados que naquele exato instante viviam suas vidas, despreocupados, alienados do que verdadeiramente ocorria no país… E que ele, Abel, e alguns poucos sabiam… Respirou fundo e sentiu como que um halo em torno de sua cabeça… Sim, diferençava-se da multidão, detinha um conhecimento, afastava-se do povo ignaro, não para abandoná-lo, mas para servi-lo… Por eles, pelos milhões de anônimos, a tudo alheios, é que aceitara sacrificar a sua juventude, entregar-se à Causa, mesmo que isso significasse privar-se da própria vida, como apregoava o Professor.

Abel orgulhava-se de ser o preferido do Professor, a quem procurara, recomendado pelo padre Roland. No começo, não compreendeu por que exibiam-no como um bicho exótico, mas depois acostumou-se, e até passou a gostar de ser considerado quase como um troféu, o legítimo representante do proletariado. Filho de uma lavadeira de roupas e de um faxineiro numa fábrica de tecidos, o Professor indicava-o como um símbolo da luta contra a opressão da ditadura militar, como exemplo do esforço bem-sucedido para atrair as camadas populares para dentro do movimento revolucionário. Gastava horas doutrinando Abel, imperturbável respondendo suas perguntas, muitas vezes pueris, outras embaraçosas, emprestava-lhe livros, pagava o aluguel numa pensão na parte baixa da rua São Sebastião, franqueava a cozinha de sua casa para que almoçasse e jantasse quando queria. Claro, se por um lado o tratamento díspar causava admiração, por outro, alimentava ciúmes e invejas. O grupo que frequentava a república da praça do Cruzeiro, sob pretexto de aprender inglês, era formado basicamente por estudantes da Universidade Federal de Juiz de Fora, cujo único contato com pessoas oriundas de “famílias humildes” eram os mutirões para bater laje em bairros da periferia, organizados pelo Professor. O esforço físico educa o corpo e o trabalho em conjunto instrui o espírito, ensinava, enquanto devoravam a feijoada, sentados no quintal da casa em construção, após concluírem a tarefa.

O Professor morava no Bom Pastor, médico distinto, docente na universidade, reservava as tardes de quartas e sextas-feiras para atender enfermos carentes no Hospital-Escola, além de manter abertas as portas de seu consultório particular a quem o procurasse, tivesse ou não dinheiro para pagar a consulta. Por isso, venerado pelos pobres, adorado pelos alunos. Baixo e calvo, vestido de branco, pés à cabeça, óculos de lentes escurecidas que escondiam plácidos olhos castanhos, o Professor descendia de famílias aristocráticas, diziam que o avô, dono de extensas fazendas de café na região, fora agraciado com o título de barão. Ele mesmo explicava que, quando morara em Paris, onde se especializou em pneumologia, mergulhara nos prazeres mundanos, dos quais restaram o gosto requintado por charutos e vinhos. Comentava-se que sua idade girava em torno dos quarenta e cinco anos, mas o jeito curvado, a fala pausada, o leve tremor das mãos, concedia-lhe bem mais. Católico de frequentar a missa vespertina aos sábados na Catedral Metropolitana, militava, ao mesmo tempo, naquele grupo clandestino, e, nisso, não via nenhuma contradição. Argumentava que um bom cristão no fundo é comunista, assim como um comunista verdadeiro professa o cristianismo mais autêntico, pois as bases humanísticas de ambas as visões de mundo convergiam para o mesmo objetivo.

Enfim, resolveu explorar a bolsa-de-viagem. Abriu o fechecler, tirou o Jornal do Brasil, os pacotes de Mirabel e de biscoito cream cracker e as barras de chocolate, depositou sobre o criado-mudo. Apareceram uma camisa e um par de meias, que depositou sobre a colcha de piquê. Restaram alguns volumes retangulares, iguais, embalados com capricho em papel pardo. Retirou o primeiro, desembrulhou, um tijolo. Retirou o segundo, desembrulhou, outro tijolo. Retirou o terceiro, desembrulhou, mais um tijolo. Exasperado, retirou o quarto e último, um pouco diferente dos anteriores, no peso e no formato, desembrulhou e deparou com um trinta-e-oito e duas caixas de munição. Instintivamente, conferiu se alguém o espiava. Dirigiu-se à cozinha, as pernas bambas, buscou a garrafa de plástico na geladeira, vazia!, pegou um copo americano no armário e bebeu água da torneira, um copo, dois… O corpo todo suava… Parecia que uma fogueira ardia, por dentro… Do prédio vizinho aportavam vozes ininteligíveis, da avenida lá embaixo, barulho de carros… A noite descera por completo…

Aprendera a atirar fazia dois meses — até então, nunca havia visto uma arma. O Professor convidara seleto grupo para um passeio no fim de semana. Madrugada de sexta-feira para sábado, encontraram-se na rua Santo Antônio, no teto da Kombi inúmeras varas de pescar amarradas. Difícil reconhecer o Professor, ao volante, chapéu de palha, botina de couro, camisa estampada e calça de brim. Para despistar, ziguezaguearam por várias ruas de Juiz de Fora antes de embicarem para a rodovia que leva a Leopoldina. Após rodarem vinte quilômetros adivinhando pastos ressequidos, voçorocas e cupins, tomaram a estrada de chão para Chácara. O Professor se perdeu algumas vezes no entrecruzamento de atalhos, talvez confuso pelo lusco-fusco. Afinal, alcançaram a sede de uma fazenda, aparentemente abandonada há anos, o mato tomava conta do terreiro, algumas paredes achavam-se em ruína e parte do teto desabara. O Professor mostrou-se surpreso com o estado do casarão e, no primeiro momento, buscou um lugar onde pudessem se acomodar. Descobriu satisfeito que a parte traseira mantinha-se razoavelmente conservada, sala de jantar, cozinha e despensa, e então ordenou que descarregassem a Kombi, um pacote de arroz, três de macarrão, um litro de óleo Mazola, dois cortes de carne numa caixa de isopor, e alguns cobertores Parahyba, que serviriam de manta e colchão. Mas não conseguiram usar o fogão-de-lenha, cuja chaminé devia estar entupida, a fumaça tomou conta do lugar, e tiveram de improvisar um braseiro numa lata grande de Claybom, que encontraram enferrujada num canto da tulha. Naquela mesma manhã, o Professor apresentou-lhes uma pistola Beretta, um revólver Colt 45 e um fuzil Mauser, que revezaram atirando em mangas maduras colocadas num pedestal improvisado no antigo pomar. Abel acertou no alvo algumas vezes, porém a munição logo acabou e passaram o resto do tempo a estudar o Minimanual do Guerrilheiro, numa cópia mimeografada que Carlão, um dos camaradas, lia, e o Professor explicava. No breu da noite, contaram histórias de fantasmas, ilustradas por guinchos de morcegos, chirriar de corujas e ruídos insondáveis.

A fazenda, o Professor contou, pertencia à família da mulher, mas, com a morte dos pais, encontrava-se num limbo jurídico, já que a partilha da herança fora contestada por alguns irmãos. Ele lamentava o colapso do casarão, porque, embora símbolo de uma época de desigualdade social extrema, datava dos tempos da escravidão, tratava-se de um deslumbrante exemplar de arquitetura colonial. A queda de parte do telhado e o desmoronamento de algumas paredes deixavam à mostra restos da mobília destroçada, que o Professor, desolado, ia descrevendo, este jacarandá foi um dia cômoda, estes estilhaços de vidro bisotado pertenceram a uma cristaleira belga, este monturo irreconhecível era um sofá estilo Luís Felipe… Enquanto caminhava por entre os escombros, ele resgatava fotografias desbotadas, documentos roídos por traças, livros comidos por cupins, pequenos objetos incrustados nos entulhos.

Ilustração: Fabio Miraglia

Abel chegou-se novamente à janela, arredou um pouco a cortina de voal, contemplou a praia, cujos espaços começavam pouco a pouco a ser preenchidos por guarda-sóis coloridos — gomos de azul, amarelo e vermelho —, homens e mulheres espichados na areia, ambulantes apregoando mate gelado, bebidas, picolés, biscoitos Globo. No passeio, um grupo de torcedores, aglomerados em torno de um bumbo, agitavam bandeiras rubro-negras. Mais à frente, crianças cercavam um carrinho da Kibon. Abel afastou-se, sentou no sofá, nunca havia tomado Eski-bon. Às vezes passava na calçada da Padaria Brasil, em Cataguases, olhava o cartaz do sorvete e ficava imaginando que gosto teria aquilo, uma fina capa de chocolate cobria um tablete branco, seria coco? Uma ocasião vira na rua uma menina mordendo um Eski-bon e até pensara em perguntar para ela, mas recuou, envergonhado… Levantou, correu o dedo na tábua escura da enorme estante, que, pelas marcas deixadas pela lombada dos livros na poeira, um dia estivera lotada. Agora, no entanto, apenas alguns parcos títulos, como soldados feridos deixados para trás: Almanaque Mundial 1962, Fernão Capelo Gaivota, As sandálias do pescador, Bom dia, tristeza, Ben-Hur, E o vento levou, O macaco nu, Como fazer amigos e influenciar pessoas. Abriu a radiola, elepês empilhados. Na cesta de bambu, revistas de dois, três anos, Manchete, O Cruzeiro, Placar…

Que diria a mãe, Abel pensava, se o flagrasse ali, enclausurado num apartamento empoeirado, ela, obcecada por limpeza. Sempre ouvia, orgulhosa, quando levava os filhos ao posto de saúde da Vila Teresa, o doutor Joubert dizer, Parabéns, dona Gercina, nunca vi crianças tão asseadas. Passavam dificuldades, é certo, o salário do pai na Industrial, onde labutava oito horas por dia varrendo e juntando o algodão que acumulava no piso, mais o dinheiro auferido pela mãe na lavagem de roupas, mal dava para pagarem o aluguel de uma minúscula casa geminada na Saudade e comerem arroz com feijão e verdura de folha — carne apenas nos domingos e assim mesmo músculo, costela, maçã de peito… Mas, eram limpos, a mãe vangloriava-se. Limpos como as trouxas que lavava e passava, de segunda a sábado, e que deixavam suas mãos estropiadas por causa da água sanitária, a pele amachucada pelo sol. Abel herdara do irmão a função de entregador nas casas do centro da cidade. Sempre mandavam-no atravessar o corredor lateral que levava à porta da cozinha, onde as empregadas, uniformizadas, o recebiam, trocando as roupas limpas por roupas sujas. Às vezes, perguntavam se queria comer um pedaço de bolo, tomar uma caneca de café com leite, até mesmo, eventualmente, dependendo se chegasse na hora do almoço, se aceitava um prato de comida — coisas que, contrariando os conselhos da mãe, Abel, guloso, aceitava. Mas havia aqueles lugares, a maioria na verdade, em que sequer passava do portão — apertava a campainha, a empregada vinha, trocava as trouxas, nem uma palavra, nem um olhar, nada.

Na noite anterior, após consumir dois pacotes de Mirabel e dois de cream cracker, ainda desassossegado pela presença do trinta-oito em sua bagagem, Abel tentara espairecer. Para além da cortina de voal, pisca-piscas provocavam espasmos luminosos nos apartamentos dos prédios vizinhos, lembrando outras noites, quando vagalumes cruzavam a escuridão abrasadora de Cataguases, pequeninas estrelas voadoras ao alcance das mãos. Onde moravam, poucas famílias montavam árvore de Natal, mas quase todas davam jeito de regalar os filhos, bugigangas que os iludiam por algumas horas. Abel guardava más recordações das manhãs do dia vinte e cinco, quando a criançada juntava-se para comparar presentes, os dele, minúsculos carrinhos de plástico adquiridos pelo pai na véspera, que recebia com embaraço e raiva, sob a promessa de que no ano seguinte seria diferente. Sempre alguém ganhava uma bola de futebol e saíam correndo todos para bater uma pelada. Gordo, lento, óculos fundo-de-garrafa, Abel permanecia fora do campo, sozinho, esperançoso de que o convocassem — contudo, quando o faziam, escalavam-no como arqueiro, divertindo-se tanto quando faziam gol, quanto quando acertavam uma bolada em seu corpo. Acabou adormecendo no sofá, embalado pelo barulho das ondas, o Jornal do Brasil desfolhado no chão, página aberta numa reportagem sobre vacinação em massa contra meningite.

Ilustração: Fabio Miraglia

Às vezes, Abel sentia-se confuso com as discussões havidas no grupo. Certa feita, o Professor disse que, tendo morado na França, Em Paris!, ele ressaltava, podia falar com fundamento que, igual ao Brasil, não havia outro lugar no mundo. E enaltecia o povo, a comida, a paisagem, e proclamava que deveríamos nos apropriar com orgulho dos símbolos nacionais, a bandeira, as cores, o hino, sequestrados pela ditadura militar. Abel, querendo agradar, evocou uma música, sucesso nas rádios, que mais ou menos repetia aquele discurso, causando constrangimento e risos abafados. Então, didático, o Professor explicou, a canção que, num ritmo marcial, repetia o estribilho, Eu te amo, meu Brasil, eu te amo/ Meu coração é verde, amarelo, branco e azul anil, nada mais era que uma patacoada ufanista, enquanto ele propunha uma mensagem de amor ao país, às coisas do país. Eles desejam manter essas riquezas para um pequeno grupo privilegiado, nós lutamos para distribuí-las a todos, equanimemente. Eis a diferença, a enorme diferença, concluiu, sob a admiração silenciosa dos discípulos.

Se a substituição do general Médici pelo general Geisel, em março, insuflara temores, a Revolução dos Cravos, em Portugal, no mês seguinte, colocando fim à longa noite salazarista, resgatara os ânimos do grupo, evidenciando, segundo o Professor, o único caminho possível para pôr fim ao obscurantismo que se instalara no Brasil dez anos antes: a tomada do poder pela força. O Professor dizia que os que possuíam discernimento sobre a real situação do país formavam a vanguarda do movimento revolucionário, Somos a ponta de lança, o aríete que arrombará os portões apodrecidos da ditadura. Assim que dermos o sinal, o povo oprimido se rebelará, os nordestinos que em sua região passam fome e em São Paulo e no Rio de Janeiro são humilhados, os negros até hoje não libertos da escravidão hedionda, as mulheres submetidas à tradição patriarcal e machista, os favelados açoitados pela miséria, os presos que lotam as cadeias injustamente, todos se sublevarão, numa onda enorme, irreprimível, que sensibilizará até mesmo os militares de baixa patente, e nesse dia, que vem próximo, todos sairão às ruas, juntos, como num desfile na avenida Rio Branco, como numa final de campeonato no Maracanã, para comemorar a chegada da nova era… Comovido, o Professor, em geral tímido e avesso à grandiloquência, sentia convulsionarem os músculos.

Arredou mais uma vez a cortina de voal. Passava das onze horas e o sol, agora, castigava os corpos estendidos na praia e as cabeças mergulhadas nas águas azuis. Na calçada, transbordando para a avenida, as bandeiras e camisas do Flamengo e do Vasco duelavam, amistosamente, e Abel imaginou que, àquela hora, desde o mais distante subúrbio, desde o mais miserável morro, uma horda informe e incontrolável começava a se movimentar, a pé, de ônibus, de carro, para tomar os arredores do Maracanã, ainda abalada pelo fiasco da seleção brasileira, meses antes, na Alemanha, disposta a distrair, por pelo menos um dia, o sofrimento cotidiano. Então, sentiu um cheiro de fumaça de cigarro, e percebeu, quase ao seu lado, no apartamento vizinho, um homem, sem camisa, a fumar, observando-o. Assustado, afastou-se abruptamente e correu para se esconder no banheiro. Trancou a porta, sentou no vaso sanitário e trêmulo perguntou-se se aquilo era coincidência ou se estaria sendo vigiado. Procurou acalmar-se, ninguém sabia que se encontrava ali, a não ser o porteiro… E o taxista que o trouxera… Ninguém mais o vira… Não, não tinha com o que se preocupar… Respirou fundo, meteu-se debaixo do chuveiro, e tomou uma ducha gelada, pois não conseguiu entender como ligava o gás para quebrar a frialdade da água.

Muitas vezes, Abel envergonhava-se por se mostrar hesitante. Perambulava pelas ruas do centro de Juiz de Fora, caminhava pelas calçadas dos bairros longínquos, frequentava botequins e restaurantes populares e não percebia qualquer prenúncio de que aquelas pessoas todas se preocupassem para além da mais comezinha sobrevivência. Ao contrário, ouvia sempre elogios ao governo e críticas atrozes aos “agitadores” — comunistas, vagabundos, hippies, maconheiros, invertidos, desordeiros… E então, angustiado, à noite, compreendendo-se indigno da confiança do Professor, perdia o sono, e as paredes do quarto minúsculo em que dormia, onde cabiam apenas a cama e a mala de roupas debaixo dela, pareciam sufocá-lo numa esganadura. À porta, que dava para o quintal, desfilavam sombras dos hóspedes que se dirigiam à “casinha”: seu Noêmio, apontador de jogo de bicho; dona Jussara, fornecedora de maconha; Lili, filha de dona Jussara, que deixava-se ver pelada em troca de alguns caraminguás; os irmãos Nonô e Nini, que ganhavam a vida jogando cartas na zona da rua Henrique Vaz; seu Alberto, aposentado, sempre fedendo a mijo; Marcílio, Vadão e Criciúma, peões da Mendes Junior; Lélia e Aninha, tecelãs na malharia Master; dona Nicota, proprietária do pardieiro, e sua amásia, Leda Maluca, que despendia os dias pitando cigarrilha e encharcando-se de Cinzano com cachaça… E tantos outros com quem esbarrava pela cidade, gente sem eira nem beira, pretos, brancos, mulatos, católicos, crentes, espíritas, macumbeiros, que viviam sem pensar no dia de amanhã…

Colocou camisa e meias limpas, acomodou-se no sofá, abriu o derradeiro pacote de cream cracker e sobraçou o Jornal do Brasil, determinado a lê-lo da primeira à última página. Mal chegou aos editoriais, no entanto, o telefone tocou. Abel entrou em pânico. Não lhe haviam orientado sobre aquilo… Deveria atender? Se fosse alguém do grupo querendo passar instruções?!… Mas, e se fosse alguém procurando averiguar a denúncia do vizinho?!… O coração disparado, Abel conjecturava. Talvez o porteiro, sem maldade, tivesse comentado sobre um rapaz ocupando o apartamento do doutor Nogueira… O doutor Nogueira, já suspeito dos moradores do prédio… O lugar semivazio, no qual ele pouco comparecia… Ou, quem sabe, o próprio doutor Nogueira… Quem era esse doutor Nogueira? Poderia ter caído nas mãos do DOPS e, sob tortura, confessasse que emprestava o local para atividades subversivas… O telefone tocou cinco vezes, antes de silenciar. Agachado ao lado do aparelho, as mãos suando, Abel não sabia o que fazer. Preparava-se para levantar, aliviado, quando o telefone tocou novamente. Deveria ou não atender? E se alguém, em Juiz de Fora, um informante infiltrado no movimento, tivesse dedurado?!… Ou, sabe-se lá, a polícia mantivesse plantão nas imediações, anotando quem entrava e saía do edifício… O taxista?!… Alguém que na rodoviária de Juiz de Fora houvesse desconfiado daquele encontro?!… Vivemos numa época em que não se pode contar com ninguém, ensinava o Professor… O telefone emudeceu. Abel pensou em espiar pela janela, verificar se o homem sem camisa continuava lá, mas recuou, amedrontado. A campainha do telefone soou mais uma vez. Então, sem pestanejar, Abel levantou o fone do gancho. Do outro lado da linha, barulhos estranhos. Ambos, entretanto, permaneceram calados. Sem demora, Abel desligou, atônito.

Sem pensar, correu à janela, afastou a cortina de voal, o vizinho desaparecera. Olhou para baixo, e, em meio à multidão que se aglomerava na avenida, percebeu, perto de um orelhão, um homem que parecia apontar para o prédio onde se achava. Afastou-se, e pela primeira vez entrou em desespero. Sentou-se, encostado na parede, os membros desarticulados, o sovaco encharcado de suor, o rosto, as mãos, os pés… Tomara a decisão correta? Era esse mesmo seu destino? Não, não estava preparado para morrer… Tinha tanto a conhecer ainda! E apelou para Deus, Não me abandone agora, Senhor!, aquele Deus no qual acreditara, no qual depositara vagas esperanças, um Deus-Pai todo poderoso, que assistia a todos os seus atos, que temia e respeitava, embora pouco a pouco tivesse se apartado… Não, não queria morrer enquanto o sol acalentava os corpos seminus dos banhistas nas areias da praia de Copacabana, enquanto a brisa tremulava as bandeiras do Flamengo e do Vasco sob o ritmo feérico das charangas no calçadão da praia de Copacabana. Longe, em Cataguases, sua mãe e sua cunhada estariam na cozinha preparando a macarronada, o pai no botequim tomando cerveja, o irmão e os dois sobrinhos no passeio lavando a bicicleta… E Abel não teria nenhuma outra oportunidade de dizer que, apesar de tudo, os amava, e sentia falta deles, e que sempre iria lembrar daquela casa pequena, desconfortável, sem ventilação, até mesmo durante o dia tinham que acender a luz, onde no quintal a mãe enterrara seu umbigo e no telhado lançara seus dentes de leite… E não teria nenhuma outra oportunidade de se desculpar com Naná, colega no Ginásio Comercial Antônio Amaro, que declarara um dia que gostava dele, e que ele, encarando-a com desprezo, disse que almejava grandes voos, longe daquela cidade de merda, daquele povo de merda… Como se arrepende! Nunca mais nenhuma mulher o fitara com admiração, tornara-se uma pessoa amarga, retraída, ressentida… E percebeu que almejava sim casar, ter filhos, viver uma vida normal, alcançar aquela felicidade medíocre com que aspiravam todos, por que insistia em ser diferente?! Então ouviu passos no corredor, respirou fundo, levantou-se, passou as costas da mão no rosto, desamassou a roupa, e caminhou em direção à porta.

Ilustração: Fabio Miraglia
Luiz Ruffato

Publicou diversos livros, entre eles Inferno provisório, De mim já nem se lembra, Flores artificiais, Estive em Lisboa e lembrei de você, Eles eram muitos cavalos, A cidade dorme e O verão tardio, todos lançados pela Companhia das Letras. Suas obras ganharam os prêmios APCA, Jabuti, Machado de Assis e Casa de las Américas, e foram publicadas em quinze países. Em 2016, foi agraciado com o prêmio Hermann Hesse, na Alemanha. O antigo futuro é o seu mais recente romance. Atualmente, vive em Cataguases (MG).

Rascunho