A maior mentira do mundo

Trecho do romance inédito de Luciana Gerbovic
Ilustração: Mello
01/08/2023

Uma camisinha mal colocada. O médico nos dizendo que aquele pontinho branco ali na tela, minúsculo, era a confirmação da gravidez. Sua boca na minha mão, seus olhos aguados, o sorriso de menino assustado por ter aprontado alguma, mas orgulhoso. Sua voz repetindo, Tá vendo?, tá vendo?, tá vendo? Sim, eu estava vendo. Até hoje, nunca deixei de ver o pontinho branco.

A ideia de nós dois ali, de nós três ali. Eu gostei dessa ideia assim que vi o pontinho. O meu útero que você pediu para ver, assim que o médico colocou um feixe de luz em direção a ele. É lindo, eu me lembro de você ter me dito isso, tem uma cor linda, arroxeada, eu preciso saber se você também se lembra disso, e gostei dessa ideia de nós três ali, naquele mesmo segundo da confirmação, não parei para pensar que éramos dois estudantes universitários vivendo em cidades diferentes e sem trabalho. Não parei para pensar que eu tinha acabado de me tornar maior de idade para a lei, mas era uma menina para os meus pais. Não parei para pensar que você não era o genro dos sonhos do meu pai. Se você pensou nisso tudo, guardou para você, pelo que agradeço. Apenas ficamos felizes, bobos, até vermos na recepção da clínica, esperando a nossa saída, as nossas mães. O resto você sabe, deve saber em detalhes tanto quanto eu. Ou não? Eu não sei o que você tem gravado, se fez questão de esquecer e se conseguiu. Ou se faz questão de lembrar.

Hoje eu olho para minha mãe e tento não ver aquela mulher, mais nova do que sou agora, me acertando sei lá quantas vezes o rosto com as mãos abertas. Tento não me lembrar das marcas que as unhas das mãos dela deixaram nos meus braços. Tento não me lembrar das mãos dela puxando meus cabelos quase até o chão. O chute que ela conseguiu acertar na minha barriga quando me curvei. Tento não me lembrar do médico vindo correndo e pedindo calma. As outras pessoas na recepção. Tento não me lembrar da bolsa que ela carregava indo em direção ao médico e depois aberta, caída no chão, com os documentos, chaves e maquiagens espalhados. O espelhinho que ficou rachado. Eu tento. É muito do que tenho feito nesses mais de trinta anos. Minha mãe agora confere a lista da farmácia, fazendo cálculos para ver quanto vão durar os remédios.

E eu me lembro do abraço da sua mãe e da mão dela sobre a minha barriga. Eu me lembro do seu pai querendo comprar um berço. E dos seus irmãos gritando e comemorando que seriam tios. Lembro da mão da sua mãe na minha. Lembro tanto dessa imagem. Lembro que ela arrumou uma cama para mim naquela noite, ao lado da sua. Que ela ligou para minha mãe para dizer que eu estava lá e estava bem. Que tudo ia ficar bem. Engravidar aos dezoito anos não era crime. E havia vida até mesmo depois dos crimes. Que seríamos capazes de achar uma boa solução. Lembro que poucos dias depois teve bolo de aniversário para o seu irmão caçula, e sua mãe me puxava pela mão para me apresentar ao resto da família. Essa é a minha nora, era assim que ela me apresentava. E eu sorria cheia de vida.

Até a manhã em que minha mãe me acordou dizendo que meu pai queria falar comigo. Fui até o escritório que ele mantinha em casa, ainda mantém, e onde pouco entrávamos, você sabe bem. Ele sentado como se fosse receber um cliente para uma negociação importante. Chegava a dar uma giradinha de leve na cadeira. O cigarro queimando sobre o cinzeiro. A xícara de café que ele nunca me ofereceu.

Quer dizer que está grávida?

A pergunta era retórica, olhei para ele, minha mãe ao lado, em pé, os olhos já avermelhando.

E vai fazer o quê?

O que eu ia fazer, afinal? Devo ter levantado os ombros. Devo ter olhado para a ponta dos meus pés. Devo ter ficado com as pálpebras e os lábios trêmulos. O que eu ia fazer?

Meu pai pediu o telefone da sua casa. Eu dei. Hoje fantasio. E se eu tivesse inventado que você já tinha me dito que não ia assumir filho nenhum? Teria ouvido do meu pai que homem é assim mesmo, um bando de filhos da puta, mas que eu viveria com meu filho sem você? Que ele me ajudaria porque ele não era um filho da puta que abandona meninas grávidas?

Mas quando você chegou, pouquíssimo tempo depois, e ele repetiu a pergunta e você respondeu sem hesitar, Vamos casar, ué, foi aí que ele se transformou. Porque até a sua chegada, até a sua resposta certeira, de quem já tinha pensado sobre o assunto, ele não tinha gritado. Ele não tinha as veias tentando escapar do pescoço. Ele não tinha dado nenhum murro na mesa e nas paredes. Ele devia estar com todo o roteiro pronto para ser o herói dessa história até você chegar e mexer nos papéis.

Eu não tirava os olhos da ponta dos meus pés, sem saber que você já tinha todas as respostas. A ajuda dos seus pais, o apartamento vazio de um tio em Campinas, você deixaria a república, minha transferência da faculdade para lá, a universidade em Campinas tinha o curso que eu fazia em São Paulo, como se tivéssemos, mesmo, planejado tudo. Os papéis de roteirista e produtor e diretor tirados do meu pai. Se o filme não fosse dele, só dele, restava a destruição.

A cena do meu pai abrindo meu armário e tirando de lá todas as roupas que sua fúria o deixava encontrar. O Fora daqui nos gritos trêmulos dele. Também tento não ouvir mais. Eu continuava olhando para a ponta dos meus pés, o meu segundo dedo maior que o dedão, minha madrinha sempre me disse que eu iria mandar no marido. Minha mãe chorava e gritava que eu não ia sair de casa.

Uma hora ela vai sair, que seja agora, meu pai continuava berrando e tirando tudo do armário.

Minhas roupas amontoadas em malas que minha mãe trouxe do maleiro, não seria agora — nem nunca, até hoje — que ela falaria não para o meu pai. As malas atiradas em cima de você. As roupas jogadas em cima das malas. Em cima de mim.

Vai, leva ela embora, suma com ela daqui.

Pelo canto do olho eu vi que em nenhum momento você olhou para baixo. Pegou as malas com as roupas socadas e levou para o carro, os olhos nos olhos dele. Em seguida veio me buscar, me pegou pela mão e eu fui, trêmula e olhando para os meus pés que vestiam chinelos. Eram chinelos de couro cru e eu gostava dos meus pés neles. Estavam bronzeados como o resto do meu corpo. Eu estava para fechar a porta do carro quando meu pai me arrancou de lá pelos cabelos. A saliva dele umedecendo meu rosto. A palma da mão dele carimbada na minha cara. Eu tento esquecer.

Minha filha não vai pra lugar nenhum com você, seu maconheiro estudante de filosofia de merda. Já viu algum filósofo rico? Já viu, seu…seu…? Não vou entregá-la pra essa vida de merda que você vai dar pra ela. Devolve a minha filha, seu moleque.

E tirou as malas que você tinha jogado no banco de trás do carro dos seus pais. As roupas espalhadas pela garagem, minha mãe tentando recolher alguma coisa das peças que pareciam fugir daqueles braços.

Some daqui!

Você ficou parado na frente dele. Não moveu os pés. Não tirou os olhos dos olhos dele. Isso eu não sei se quero esquecer.

Some daqui!

Você olhou para mim, disse que depois me ligava, entrou no carro e foi embora. Ainda me deu um beijo.

Você estava lá, não faz nenhum sentido eu escrever e descrever essas cenas que você também viveu. Mas é que eu queria, eu tinha a intenção, eu achava que em Noordwijk eu poderia finalmente te perguntar: foi assim mesmo? Você se lembra de algo que eu não lembro? Eu lembro de algo que você não lembra? O que você tem sobre esses dias que nunca me contou? Ou sobre algo que aconteceu depois? Assim como eu nunca tinha contado das xícaras que recebi de presente de casamento da sua mãe, meu pai chegou, alguma vez, a procurar você? E falar alguma coisa que mostrasse algum arrependimento? Meu pai alguma vez pediu desculpas?

E tento não me lembrar do discurso do meu pai naquele dia, depois que você foi embora.

Então você acha que é assim? Engravida, casa e vai ser feliz? Você sabe o que é viver sem dinheiro? Com quanto você acha que os pais dele vão poder ajudar por mês? Mãe professora e pai dono de um terreno em que cabem quantos carros? Hein? Nem deve ser legal esse estacionamento. Está preparada para não poder comer o quiser? E vestir o que gosta? E viver confortável? Vai abrir mão de tudo isso? Vai morar onde? Vai cozinhar tua própria comida? Vai limpar banheiro? Você, que nem arruma a própria cama? E vai passar férias onde? Em colônia de férias de professores do Estado? Quanto tempo vai aguentar? Pois eu te digo: não dura até esse bebê nascer. E depois? Está preparada para ver teu filho passar necessidade? Na porta de quem você vai bater, hein? Pois te respondo: na minha. Eu vou negar ajuda? Não, não vou. Mas se eu pagar as contas, quem vai mandar sou seu. Porque é assim que funciona, a gente gostando ou não, quem tem dinheiro manda. E se eu pagar, eu vou mandar. E se eu mandar, eu vou me intrometer. E se eu me intrometer, ele não vai aguentar. E vai pedir o divórcio. E você? Com menos de vinte anos, mãe, divorciada, sem faculdade, porque você não vai conseguir estudar, você não vai terminar esse curso, sem trabalho, vai acabar como? Dependendo de mim para o resto da vida. Sem faculdade você não vai achar um trabalho decente. Nem pra empregada doméstica você vai servir. E vai ficar sem marido. Porque nenhum homem vai aceitar uma mulher com o teu passado. Nenhum homem quer mulher usada. Mas ele rapidinho vai arranjar outra. Porque é assim, infelizmente. Eu não criei as regras, só estou te dizendo como elas são. E então, vai fazer o quê, virar prostituta? Vai lá casar, vai, e tá aí o teu destino.

Decorei o formato de todos os meus dedos do pé. Meu pé é exatamente igual ao do meu pai, comprido e ossudo, alguns ossinhos tortos. Se olhar para os meus pés não fizesse eu me lembrar de você, que sempre os elogiou e os encheu de massagem, eu os odiaria.

E então, vai fazer o quê? Responde!

Deitei na cama onde já estava sentada.

Responde, vagabunda!

Continuei deitada com os olhos nos meus pés. As mãos na barriga.

Meus pais me deixaram sozinha. Eu ouvia os gritos do meu pai do lado de lá da porta e o choro da minha mãe, pedindo para ele se acalmar para não ter um infarto. E se eu morrer que fique claro que quem me matou foi ela! Escrevi a carta mais ridícula de todas as cartas ridículas para o nosso filho. Terminei com Te amo, mamãe. Tenho essa carta até hoje, dobrada dentro de uma agenda. Nunca reli, acho que mais por vergonha do texto do que por medo de reviver a dor. Até porque…

Levei essa carta para Noordwijk. Queria dar para você ler, ler ao seu lado, provar minha versão. Voltei com ela fechada, do jeito que foi. Já foi.

Adormeci depois que percebi que meu pai tinha saído de casa, a porta fechada com força. Quando acordei, soube que você tinha me ligado, como prometido. Fui ligar de volta, mas meu pai, já em casa, copo de uísque na mão, arrancou o fio do telefone da parede assim que tirei o aparelho do gancho.

Está feliz?, ele perguntou quando me viu voltando para o quarto.

Olha pra cara dela, ele dizia para a minha mãe como se eu não estivesse na frente deles, olha como está feliz. Chamou minhas irmãs para que olhassem para a minha cara. Vejam como ela está feliz. Fez de propósito, essa vagabunda. Queria destruir a família. A gente fazendo tudo pra ela e ela planejando contra a gente. Abriu as pernas pra nos destruir perante a cidade toda. Está na cara que é isso. Já viu a cara das tuas irmãs? E colocava meu rosto na frente dos rostos delas. Pegava minha cabeça com as duas mãos e deixava meu nariz quase tocar os narizes das minhas irmãs. Olhem bem pra essa vagabunda!, ele gritava para elas. E se voltava para mim. Que exemplo está dando como mais velha? Já viu o quanto tua mãe chora? Responde, sua puta, está feliz? Está feliz por ter nos destruído? Vagabunda, responde!

Meu Deus, o que as pessoas vão pensar de mim?, minha mãe se perguntou.

Em algum momento depois ela chegou a sugerir que poderíamos mudar de cidade. Chegaríamos nessa cidade nova, eu seria apresentada como um jovem viúva, as pessoas ficariam condoídas, e começaríamos do zero. Meu pai chegou a fazer cara de quem ia pensar, mas não voltaram ao assunto. Essa opção deveria dar muito trabalho. Trabalho demasiado.

Na noite em que você apareceu e meu pai não deixou você entrar, eu ouvi você gritando da rua que voltaria. Tentei ir até a janela, eu tentei, meu pai se colocou na minha frente. Insisti. Fui parar na cama com um safanão. Some daqui, vagabundo! Pensa que eu não sei que você achou que ia se dar bem namorando a minha filha? Mas aqui, não! Da minha família você não arranca nada, nem você nem os pobretões dos teus pais. Eu também ouvi essas frases todas. Mesmo com um zunido no ouvido por causa do safanão, eu ouvi. E eu queria gritar, se conseguisse, para você não voltar. Eu que ficasse com os meus loucos. Talvez loucos não seja a melhor palavra. Eu que ficasse entre os meus, que sabem exatamente o que são e que deliberadamente fecham o círculo. Passei muito tempo sem entender por que você voltou. Por que você nunca me abandonou. E não consegui não beijar sua boca na varanda daquele quarto de hotel em Haia quando você, no pouco, tão pouco que consegui tocar nesse assunto, me respondeu, Porque eu te amo pra caralho, ué.

Não sei se foi por causa desse beijo que você resolveu não aparecer em Noordwijk. Por causa dessa linha cruzada que nos levou ao sexo que eu tanto devia para a menina que fui aos dezoito anos. Só mais uma vez. Meu marido e meus filhos. Sua esposa e suas filhas. Nós dois naquele único quarto existente durante aquelas horas no mundo todo. Meu marido achando que eu estava aproveitando uns dias em Haia para descansar das reuniões de Bruxelas. Sua mulher achando que você tinha se enrolado na reunião do departamento. A poeira cósmica de trinta anos saindo por cada poro dos nossos corpos sem que eu pudesse distinguir se era dia ou noite, se eu tinha dezoito, vinte, trinta ou cem anos.

Eu gosto de pensar que você desistiu da semana em Noordwijk para que nada mais acontecesse entre nós. Torço, na verdade, para que tenha sido por isso.

Luciana Gerbovic

É advogada, professora e escritora. Desde 2007 é mediadora de clubes de leitura em espaços públicos e privados. Trabalha como formadora de mediadores, no Brasil e no exterior. É sócia-diretora da Escrevedeira Centro Cultural Literário e uma das articuladoras do Programa Remição em Rede, que promove clubes de leitura em penitenciárias. Tem contos publicados nas antologias 336 horasNinguém humano e As letras da lei. O romance A maior mentira do mundo será publicado em breve pela Quelônio.

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