A luz nocturna em Veneza

Conto de Carlos Quiroga
Ilustração: Nina
01/08/2005

O Thomas Mann afirmou que chegar a Veneza por terra é como entrar num palácio pola porta traseira. Toda a gente sabe que a Paris se deve chegar de comboio, a S. Francisco pola estrada do Pacífico, e a Lisboa e a Veneza de barco. Ora, a Lisboa já raramente se pode chegar de barco; eu nunca cheguei de barco, eu até dormim na rua a primeira vez que cheguei, e no entanto mantenho intacta a devoçom por ela — ou até talvez por isso. Nunca cheguei, se descontamos os trânsitos ocasionais nos barcos cacilheiros ao outro lado do rio. Admito nesses casos concordar com os entendidos: recomendam entrar em Lisboa de barcaça, pola sala de visitas que é o Terreiro do Paço. Mas custa imaginar que há nos olhos umha estreia absoluta assim, quando horas antes se abandonou Lisboa no mesmo ponto, com acúmulo de ruas e gentes e odores dela na cabeça. No entanto, vale a pena fingir que se chega assim pola primeira vez, vale a pena ir ao outro lado do Tejo só para voltar e vê-la nessa atmosfera mágica em que se dá à vista.

Mas nom se trata agora de Lisboa. É outra princesa a pé de água que reclama. E entrar em Veneza à noite e polo ar nom deve ser de regra o melhor modo, mas é seguramente o mais comum nos tempos de hoje, e é o que vou fazer. A sua fama de irresistível pode continuar aí latente até ao regresso a ela com luz diurna, daqui a dias. Quando nos anos oitenta passei um mês na Itália tinha de dosear na altura o dinheiro para nom fazer daquela liberdade agonia: os amigos partiram para Veneza naquele fim-de-semana e lembro-me que Perugia me pesara nas costas como nunca dantes. Sabia que teria outra oportunidade melhor. E tenho agora. Doseadamente.

Sei que nom é possível detestar Veneza como nom é possível detestar Lisboa, ou Paris, ou S. Francisco. Sei que é umha dessas cidades para as quais nom precisamos de fazer o nosso coraçom funcionar nesse processo duro e moroso do enamoramento que requerem algumhas outras. É tam fácil gostar de Veneza, Lisboa, Paris, S. Francisco, é tam lógico deixarem-nos rendidos, que pouco se pode pôr na boca de novo ao contemplá-las. Cidades para estourar de gozo. Mas precisamente por isso o dessalento em falar delas, a inutilidade em contá-las. É só para estar ali, passar por ali, tomar cafés silenciosos ali, aguardar que o céu tenha a sua melhor cara e ter por perto alguém para abraçar sob a cúpula protectora do firmamento, que aí acontece, claro, de modo único. É só para estar ali, ter por perto uns lábios para beijar. Para recordar como se beijárom. Para beijar de novo na memória.

Nom sei se é umha sorte ou umha desgraça ter consciência de tudo isso ao olhar do lado direito do aviom para baixo. Ao pressentir as ruas de água e ver adormecidos sobre a lagoa os primeiros faróis de Veneza como rosários de pirilampos a traçar caminhos espelhados nas águas negras. Chegar polo ar a Veneza em noite de lua cheia e sem neblina algumha, numha noite grande e limpa, com o aviom de luz interior desligada, com o aviom como que parado um momento sobre as brasas, é o modo mais solene e misterioso de adivinhar esta cidade hoje, com todo o que dela já se sabe antes. Sabe-se que nesses pontos organizados está o prodígio. Sabe-se que na manta negra de diamantes brancos, amarelos, ardem os desejos de milhares de olhos que durante séculos aqui bebêrom. E tudo isso pesa na consciência ao olhar do lado direito do aviom para baixo. Saber estraga as inocências todas. Ignorar é que engana algumhas angústias inúteis. Por vezes. Sorte é, de qualquer modo, estar aqui para ver e poder escrever isto, descer na noite abraçando um sonho. Voltarei com a luz do céu. Voltarei depois com calma. Passarei por ela agora como por um amor adiado, mais umha vez, eu gostando dela ao longe e ela sabendo, ela sendo paciente e aguardando.

A Laura e o Gianni já aguardam fora com o carro. Vi-os da porta ao longe, entre os polícias. Quando pegue na mala irei ter com os beijos, começarei a desenferrujar a fala cantarina desta terra que um dia de leve nos dominou. Lembro-me do sábado 28 no Foro da Língua, daquele fragmento de A Vida de Brian, lembro-me do que depois seguiu na lista, e até das palavras do Elias esta manhá, antes de sair para o aeroporto, comentando os comentários do Portal. As frentes patrióticas continuam estupidamente esquecendo-se dos romanos. Algumhas. Alguns. Como é cansativo e estéril explicar para quem se teima iluminado, iluminada. Como dizer que há muitos anos que pensamos o que pensam estar inventando. E que todos estes anos podem nom valer nada se o cansaço acaba por nos dominar a todos. E eu estou cansado, e nom só polo ar viciado dos aeroportos.

Ainda bem que as luzes nocturnas de Veneza colocam a Galiza longe, essa Galiza que me cansa aflitivamente como cansa quem a afirma. E mesmo assim o auxiliar de voo, o hospedeiro simpático com os cabelos por trás disparados como o Pássaro Louco, descobriu algo no meu sotaque que o levou a perguntar, e ao minuto estávamos falando em galego sobre o golfo de Génova. Ele, de apelido Blanco, è de Ribadávia. Ele falou feliz como eu de reconhecer-se na língua. Apesar de tudo levamos connosco aquilo que somos aonde vamos. Afirmamos aquilo que nos cansa. A Laura e o Gianni, os romanos todos, aguardam fora para eu afirmar-lha. Vamos correr com eles a Pordenone e deixar-se ser o celta que esperam, o lemavo sobrevivente, que aterra ao lado das ruas de água.

Carlos Quiroga

Nasceu em Vilasante (Galícia), em 1961. Formou-se em Filologia Galego-Portuguesa e Filologia Hispânica na Universidade de Santiago de Compostela, onde é atualmente professor de Literaturas Lusófonas. Fundou e dirigiu várias revistas. Publicou sete livros individuais, como A espera crepuscular (2002) e Venezianas (2007). Recebeu duas vezes o prémio Carvalho Calero de narrativa, por Periferias (1999) e Inxalá (2006), o primeiro editado também no Brasil, e o segundo em Portugal. Seus textos foram publicados em antologias como a alemã Hotel ver mar, a portuguesa A poesia é tudo e a espanhola Traslatio literaria.

Rascunho