LISBOA: SOLSTÍCIO DE VERÃO
Hoje passei muito tempo a ver fotografias daquele ano, dez anos atrás. Uma em particular, a única que tenho de Buenos Aires quando tu já não estavas. É uma foto de grupo. De pé, eu, o Juan e a Osa. O Juan segura um pincel e uma capa de cartão, que finge pintar. Sentados à nossa frente, o Ricardo, com o queixo cortado pelo enquadramento, e um rapaz de quem esqueci o nome. Pouco se vê da cartoneria: na parede atrás de nós a imagem de Che Guevara, a preto e branco, de charuto alçado, junto a duas insígnias em cartão. Uma brada eloísa cartonera num abuso de cores disponíveis e outra, pintada de amarelo e azul, carrega a sigla CABJ — Club Atlético Boca Juniors.
Não me recordo de termos tirado esta foto, muito menos de quem a tirou. Não me lembro daquele casaco furtado de armário alheio, nem de ter sorrido no período pós-Montevidéu. Ainda assim, a fotografia documenta o meu empenho em esticar a comissura dos lábios. A minha cara está inchada, o meu pescoço dilatado, e trago o braço ao peito, mas apenas o pulso está ligado. Seria simples reproduzi-la, à fotografia, mas interessa-me a confiança que se estabelece entre quem conta e quem escuta. Afinal, o que prova uma imagem? Colocá-la aqui contrariaria a evidência de que engessar o braço é uma ficção fácil. Que eu podia nem o ter partido, mas necessitado de o encenar, para poder voltar para casa mais cedo ou para que na Eloísa recebessem algum tipo de abono. Qualquer confiança terá, portanto, de se estabelecer num lugar mais profundo. No mundo em que vivemos, entre photoshop e deepfake, as imagens tornar-se-ão cada vez menos fidedignas, menos até que as palavras.
As imagens mais verdadeiras são aquelas que mentem. Se lembrarmos, ou googlarmos: “autorretrato de Picasso”, enter, “autorretrato de Frida Kahlo”, enter, e o mesmo com “Warhol”, “Francis Bacon” ou “Cindy Sherman”, enter, é evidente que o desvio da ilustração fidedigna é o que melhor os representa. Pode um texto funcionar como esses autorretratos?
Naquele tempo, do braço engessado, acreditava que, se um dia fosse mãe, lhe daria um nome de lugar. Lassa ou Cairo, se nascesse rapaz; Odessa ou Roma, se rapariga.
Trazer uma pessoa ao mundo deve ser como inaugurar uma capital ou descobrir uma floresta virgem. Todas as cidades ou florestas previamente visitadas devem significar pouco perante aquela nova topografia. Imagino que será necessário determinar cada costume de raiz, cada recinto ou cruzamento. Tornar-se mãe não andará longe de recomeçar a civilização.
Imagino.
Em viagem, cada pessoa junto de quem nos apeamos é um novo território, com as suas múltiplas atmosferas, fases férteis e de pousio que ciência nenhuma adivinha. A cada um a sua forma de chover, o seu jeito de dar fruto. Há gente que é à beira-mar, de bom convívio, ou escarpada. De quando em quando, encontrar alguém com desertos dentro, com paisagens interiores absolutamente tropicais. Com sorte, perder-se nele.
Mas nunca quis ter filhos.
Tanto quanto nunca quis não ter filhos. Ou seja, não nunca quis ter filhos; ou nunca não quis ter filhos; ou nunca quis ter não filhos; ou até: nunca quis ter filhos não. Experimentei um não em cada posição da frase, falhou-me a sintaxe.
— Então, e tu? — perguntavam-me outra vez.
— Acho que não… — respondia, se respondesse.
O incómodo era admitir que não achava nada. Nem desejo, nem repulsa. Não queria nem deixava de querer os filhos elipsados nesta interpelação. Então e eu? Não soavam ponteiros, campânulas, alarmes, nem qualquer outro tipo de comoção hormonal. Trazia a potencial maternidade como um vestido largo, sem necessidade de o cintar ou lhe definir uma forma. Permitia-me acreditar que poderia pensar nisso num tempo idealmente remoto, quando me sentisse preparada. Não concebia (verbo do qual não abusar) que, nos trinta, iria deitar-me com uma borbulha de acne tardio e, ao acordar, encontraria no espelho a primeira ruga e o primeiro cabelo branco. Sem transição: houve um momento em que tinha todo o tempo para conspirar filhos e futuros e, no seguinte, cada dia era um dia a menos para me decidir.
Então e tu?
Está na altura.
Tens bom corpo.
A tua irmã vai no terceiro.
Com a tua idade já tinha dois.
Aproveita agora, que tens energia.
Nunca fui tão feliz quanto na gravidez.
Depois custa mais. É perigoso.
O parto é terrível. Mas esqueces.
A namorada de um amigo meu deixou para a última e teve prematuro.
O teu namorado tem ar de bom-pai.
Se não te despachas, ele vai à sua vida…
Os filhos solidificam a relação.
Aquela mulher, na praia, que não percebia como eu tinha alegremente passado a tarde a fazer carreirinhas na água com os filhos dela, mas não tinha ainda os meus. A outra, com prole para um quarteto de cordas, que me agarrou no braço:
— Olha que te arrependes…
Os dedos cravados na minha pele, o tom de oráculo.
(Vais arrepender-te)
Se ousas retorquir ou sugerir que possa não ser para ti:
É porque ainda não encontraste a pessoa certa.
Deixa vir os quarenta que te dá a urgência.
Tiveste uma infância feliz? Não, pois não…?
O que é que te fizeram…?
Darias uma boa mãe!
Se não trabalhasses tanto…
Não podes pensar só em ti.
Põe os olhos na filha da Suzete/ na tipa da imobiliária/ na vizinha do segundo esquerdo/ na professora do Tomás… Não queiras que te aconteça o mesmo!
E na reforma?
Quando fores velha, quem é que cuida de ti?
(Vais arrepender-te.)
Quem herdará as tuas coisas?
Não pensas em perpetuar os genes?
Não te incomoda que pensem que há algo errado contigo?
Não tens medo de olhar para trás e sentir que falhaste?
Que vieste à vida e não te cumpres?
Desperdiças um útero.
(Vais arrepender-te.)
Uma boa amiga, depois do segundo filho, a insistir:
Tens de ter um. Nem que seja para sentires a maior onda de amor que alguma vez irá passar por ti.
E as outras, os outros:
É o único amor incondicional.
É o melhor do mundo.
Nada se compara.
Traz maturidade, faz-te crescer.
Ser mãe realizou-me.
Ser pai tornou-me numa pessoa melhor.
Deu-me um propósito.
E se te arrependes quando for tarde demais?
Vais arrepender-te.
DIA 1
Quando chegaste a Lisboa, esquivaste-te a clarificar se vinhas ver-me, a mim, ou à cidade. Deixei passar uma semana porque não te quis na celebração do meu aniversário. Lutei contra a tentação de fantasiar com os teus trajetos e com a proximidade aos meus. Passavam-se os dias e eu pegava no telemóvel só para voltar a pousá-lo. Não sabia o que dizer. Talvez tivesses já partido: não tinhas mencionado quanto planeavas ficar. Quando escrevi, perguntei onde estavas. Apesar de te teres hospedado num serpentino bairro histórico, uma linha reta unia a minha à tua morada. Calhaste numa rua de Alfama de que nunca tinha ouvido falar mas que o mapa posicionava a uns inconcebíveis mil e cem metros.
Sugeri que nos encontrássemos no Largo do Intendente, reconheceste-o. “Lisboa é pequenina”, escrevi — de repente Buenos Aires imensa na minha memória. Ao descer a colina, senti o corpo tenso e reticente. A luz tardívaga rebatida nas fachadas pintava-as de carmim e acentuava a impressão onírica daquele reencontro. Este texto já se escrevia sem que eu o notasse ou anotasse: éramos agora duas personagens.
Não foi imediato reconhecer-te entre a multidão que concorria aos concertos. Eu já não era plenamente eu, aquela que fora e, quando te vi, tu tão-pouco. Chocou-me a impiedade dos anos. Traços fisionómicos afundados, linhas que perderam firmeza; sobretudo, um brilho ofuscado. Entre a conversa que reaviva a camaradagem e o humor cúmplice, recuperei um turbilhão de sensações que ao longo dos últimos dez anos me tinha empenhado em rasurar. A memória de alguém que se quer muito, ou se julgou querer muito, ou se quis muito um dia.
A noite foi entrando bar adentro e elevando o volume da música. Inclinaste o tronco na minha direção como uma rampa de lançamento para a voz. Eu dei-te a linha curva do pescoço. Os apontamentos de luz incidiam na tua face, acentuando o cansaço. Quase um outro rosto. Quase um outro homem. Eram tantas as perguntas acumuladas ao longo dos anos que, afinal, não perguntei nada. Fixei o contorno dos teus lábios enquanto falavas, arroxeados pelo vinho. Antes de nos despedirmos, tão pouco sóbrios quanto os noitibós que declinavam o convite do segurança do bar, consegui perguntar quanto tempo planeavas ficar em Lisboa. Impassível, disseste apenas que não tinhas voo de volta.
Voltemos a Buenos Aires — era o que eu queria ter dito nessa noite.
Porque houve um dia em que o amor não era uma forma de devastação mútua. Uma manhã que clareou longe, num formigueiro metropolitano de quinze milhões. Eu, recém-chegada, rascunhava um proémio em que certos nomes — Almagro, Recoleta, San Telmo — formavam um só bairro no território da minha ignorância. Descobria uma megalópole difícil de abarcar, num arranque penoso: a canícula; os tecidos pegados à pele; o mapa pegado à esquadria; e as investidas dos homens pegadas a mim, num constante e indiscriminado chamullar — digo “chamuchar”. Deste verbo é possível inferir todo um tratado de ânimos e costumes. É um termo do lunfardo, dialeto de imigrante, gíria argentina e uruguaia que governa as ruas. É o idioma oficial do tango:
La encontró en el bulín y en otros brazos
Sin embargo, canchero y sin cabrearse
Le dijo al gavilán: Puede rajarse
El hombre no es culpable en estos casos.
Na tradução mais elegante, chamullar seria “fazer a corte”, mas a sua vivência quotidiana é mais bem representada por “bater couro”. Nenhuma traduz a dança de galanteios que a prática implica. Junte-se o dulcíssimo sotaque, a entoação dengosa, o chechear, o humor sardónico — e a minha primeira paixão foi a prosódia. Na mais módica interação, nas platitudes e nas blandícias, ao café e no teledrama. Bastava escutar. Um deleite ubíquo que converteu um encontro de início áspero, por vezes exasperante, num grande amor. Refiro-me a Buenos Aires — um amor com muitas histórias de amor por dentro.