A história da espingarda

O triângulo amoroso (logo transformado em quarteto) da mulher que acendia a luz nos olhos dos homens
Ilustração: Denise Gonçalves
01/08/2021

Entre as muitas atribuições que as autoridades conferem a quem se atreve a contar uma história, o acesso irrestrito aos fatos parece ser a mais importante delas. Isso porque ouvintes ou leitores não costumam tolerar de boa vontade os arranjos imaginosos que desdenham de conhecer na intimidade o material dos seus relatos. Contudo, também é verdade que alguns de nós, mesmo desmerecendo essas severas leis de narrar, conseguem alcançar êxito em manter aceso o interesse sobre suas tramas. Para tipos assim, os fatos não passam de obstáculos. E, não é raro, seus exercícios de fabulação, inclusive, violarem o resguardo do quanto pensam suas distintas personagens. Uma vez investidos de poder sobre elas, não costumam deixar em paz os pormenores mais vulgares, movidos que são pela necessidade inescrupulosa de investigação da existência alheia. Por minha parte, evito incumbências enxeridas.

O prólogo — só as boas histórias podem dispensar seus préstimos — apenas justifica o pouco apreço de quem conta de ouvido à exatidão e considera mesmo pouco provável que a história a seguir tenha se passado tal como aqui vai dita. Reconheço os perigos e as tentações às quais estão sujeitas as larguezas do privilégio de poder ir preenchendo com fel as lacunas do desconhecido. Juntos, imaginação e privilégio, corrompem com as sedutoras facilidades corrosivas que oferecem aos espíritos tacanhos a perversidade e a maledicência.

No entanto, se não envenenamos esses lapsos, reclamando deles uns desequilíbrios, falham nossas inclinações. Somos gente talhada, inevitavelmente, ou para o drama ou para o cômico. Tal é a natureza do homem. E a deste modesto contador de histórias julgará melhor quem se dispuser a acompanhá-lo até a vila de Vista Alegre, no interior de Minas Gerais.

Neste pedaço de terra pacata, entre montanhas elevadas e larga pastagem para o gado, vive o Álvaro Talano, um galego sardento, robusto e disposto, cujas mãos calosas dão notícias dos seus predicados. Homem de posses sólidas, gosta de afirmar, com certo orgulho másculo, que mantém os desafetos ao alcance da mira e os aliados sob a prudência das desconfianças.

Mesmo não arrolado entre aqueles que desgostam do galego, as inclinações imaginosas deste que conta devem — quem pode com o que vai no inconsciente? — padecer dos resquícios interessados em colaborar no desmonte dos méritos de sujeito operoso e lidador que ao Talano grudou-se a ferro.

Confesso que conheci alguns dos seus mais notórios inimigos. Uns tipos interesseiros, no ordinário, com olho cultivado para valor de terras. Travei contato com eles por ocasiões de velórios e enterros, circunstâncias propícias para ouvir versões distintas de uma mesma história. Os mais bem informados dirão que, por conta das fontes, sou o tipo de narrador no qual não se deve dar crédito de garantia.

Embora pesasse sobre o Talano a fama de beberrão, não consta que lhe faltasse mais do que o necessário para não envilecer. A não ser, é claro, uma mulher. Mas, diga-se, não qualquer mulher, porque dessas ele dispunha sem muito esforço. Mas, argumentava, as meninas do Dinastia logo tornavam aborrecida até mesmo uma rotina de quem foi criado entre éguas e vacas, num ermo de pasto a cansar a vista que o alcançasse. O Talano necessitava mesmo era de uma mulher que lhe “acendesse a luz nos olhos”. Aquela vida dele, do jeito que andava, encaminhava-se para uma solteirice convicta e triste.

Na falta do pai e da mãe, ainda jovem o Talano assumiu a lida das terras da família. A irmã não resistira a um surto de febre e o irmão, bem mais moço, a um derrame no cérebro. Com a disciplina desperta antes do sol, logo fez a vacada toda dar leite e era farto o seu fornecimento de carne para os açougues da região.

Sem ter a quem prestar contas, de passagem pela Mercearia do Monteiro para umas compras, cismou de se enrabichar com a Júlia Barradas, uma dona casada, de aliança e tudo, com o Zé do Carmo.

Nesse ponto, a história desanda. E a imaginação — essa adversária da sobriedade — só consegue acrescer ao novelo que daí se desfia umas magras pitadas de drama. Porque se um afeto vulgar, por si somente, tem poder de carrear um homem para os abismos mais sombrios, uma paixão repentina por uma dama casada dispensa que se lhe metam literatices.

No entanto, ocorrência ainda mais singular dava conta de que, mesmo comprometida de aliança e tudo com o Zé do Carmo, um escrevente de registros cartoriais, as vozes mais sibilinas do lugar sussurravam pelos recônditos que a Júlia Barradas nutria mesmo era um gosto de corpo pelo Luís Anselmo, um desocupado, que uma tia aposentada sustentava.

A imaginação poderia, se melhor entendesse desse jeito, descartar os adendos. Porém, a sabida perversidade do povo do lugar concedeu ao pormenor do gosto de corpo um espaço generoso. Para não parecer disposto a discórdias com a inteligência popular, atribuiu-se a ele aquela correspondência que a fez um caso amoroso. A semelhança de intenções, portanto, foi capaz de dar à história umas aparências de triângulo passional. E, se quisermos crer no que soletrava a maledicência, era mesmo, pois alegava-se que entre o marido e o amante não houvesse qualquer sintoma visível de animosidade.

Aqui o responsável por dar à luz a trama interrompe o desfiar dos fatos e concede a si mesmo generosa permissão para uma nota breve. Tudo indicava que se valessem apenas os juízos das beatas, a sem-vergonhice morreria virgem e a Júlia Barradas, excomungada. Essas formas de avaliar pesam sempre mais a mão sobre a mulher, como se dela emanasse toda corrupção de princípios. Aí está a Eva bíblica para o acerto das contas do que há no mundo. No entanto, a vida secreta do corpo, bem sabem os espíritos menos devotos, não respeita leis cujas prescrições não provenham do próprio corpo.

E a Júlia Barradas, num desses lances astuciosos, capazes de atrair a fama da perspicácia, do cálculo e da comodidade, decidiu abrigar o Álvaro Talano no arranjo. Fosse pelas posses ou por um apreço caprichoso, o certo é que o triângulo, terceto ou coisa que valha, passou a funcionar como quarteto.

Abro outra breve nota para reparar que as sabedorias sem referência citáveis costumam indicar que as coisas envolvendo mais de uma pessoa por vez exigem do juízo a criação de um código de norma, mínimo que seja. Tal expediente se faz necessário para o controle dos papéis não sair do riscado.

Fiado nessas premissas de sanidade, o Álvaro Talano inventou de fazer, nas terras dele, lá bem longe da vista cobiçosa do povo da Vista Alegre, umas sessões regadas a música, dança e cerveja. Os convidados: a Júlia Barradas, o Zé do Carmo e o Luís Anselmo. Distantes do buliçoso apetite do povo para a fiscalização do alheio, tomaram jeito de harmoniosa união os saraus com os quatro elementos.

Nas sextas-feiras, depois da lida das enxadas e das foices, e das portas arriadas dos negócios de terras, ao invés da cachaça no Monteiro e da comprida noite no perfumado salão do Dinastia, onde as moças se trocam por promessas, iam os quatro para a casa do sítio do Talano e por lá pernoitavam até a noite do domingo.

A Júlia Barradas tinha umas formas de dama fornida, carnuda, vistosa, do rosto arredondado e da pele muito branca. Como quase nunca deixava soltos os longos cabelos pretos, dizem, quando as compridas madeixas desciam pelas suas costas afora, muita gente frívola e respeitável sentia o sangue correr abrasado. O marido, o Zé do Carmo, era, para bem da verdade, um tipo miudinho, desmilinguido e pálido, que mal se sustentava nos gravetos das pernas. Usava uns óculos de quadrados aros grossos, um bigodinho ralo, incapaz de preencher num encontro a parte superior do lábio com as narinas. O Luís Anselmo, como se sabe, pendia para a seara dos desocupados, que a decadência do lugar só fazia crescer em número. A tia solteirona, além do teto e do sustento, provia o seu estoque de trocados, que ele perdia todo na sinuca. Desacostumado da força, foi ficando bom no carteado e com a sorte apurada nos bingos de quermesse. A Júlia Barradas viu nele uns acentos de beleza desinteressada, ela disse depois, dessas que o sujeito nem se importa com a barba por fazer ou com o desalinho do cabelo desabando sobre a gruta dos olhos.

O Talano, esse, pode-se dizer que é um perfeito matuto arredio. Um bicho do mato, criado com leite de cabra e farinha torrada. Branco avermelhado, grandão, rijo, as mãos enormes sempre sujas por debaixo das unhas.

Da casa das terras dele e do que se passava por lá entre o fim da tarde de sexta-feira e o início da noite do domingo, pouco se conhece, embora muito se especule. Contido pelo pudor mais sincero, evito pronunciar em voz alta aquilo que dita a imaginação. Mesmo para os interesses da sordidez, não fica bem dar de ombros aos avanços indevidos nas intimidades alheias.

De todo modo, não era segredo para ninguém que o Talano mantinha espingardas no sítio. Ele mesmo garganteava os espaventos aos bichos invasores e não se cansava de repetir que era homem disposto a passar fogo em quem folgasse com ele.

Numa tarde de sábado, porém, quando estava na canoa, tirando peixe para a refeição da noite, meu tio Chico foi chamado às pressas. Com a máxima urgência, dizia o mensageiro, ele deveria conduzir seus poderes de curador ao sítio do Talano, porque lá necessitava deles uma vítima de bala.

Meu tio Chico, naquela época, podia ser descrito como um tipo atarracado, de traços grossos. Os cabelos ainda não exibiam a cor acinzentada dos seus últimos dias. Era o homem firme, paciente e silencioso, que benzia com galho de arruda, fazia garrafada e curava ferida ou dor somente com o pousar da mão espalmada sobre a testa do necessitado. Fosse tiro, facada, moléstia de pele ou da alma, receitava e benzia. Para além dos seus poderes curativos, o que ele gostava mesmo era de contar histórias de bicho e de assombração. História de gente, ele falava, era coisa tinhosa e nunca dava carreira reta. Sua conversa mansa não bulia com os segredos do lugar. Talvez, por isso, confiassem nele tanto os fazendeiros grandes quanto as mães de meninos levados.

Não seria melhor chamarem um médico? A pergunta procede, e foi feita quando souberam do ocorrido no sítio. Mas não alcança o sinistro do Luís Anselmo agonizando, vazado desde a barriga até as costas por um único tiro de espingarda. Disseram que ele limpava a arma para o Talano e ela, por causa do óleo escorrer na trava, disparara, ferindo o jovem.

A Júlia Barradas, em prantos, suplicava ao meu tio pela vida do amante, enquanto o Talano e o Zé do Carmo, cada um no seu feitio, acossados pelas paredes do quarto, pareciam desejosos de se afundarem pelos vãos do reboco.

Tio Chico pôs a mão na testa do agonizante. Fechou os olhos, fez um silêncio longo e iniciou o ritual. Não de cura, de passagem.

A memória fustiga as lembranças e ouve o tio contar que o tiro fora dado de muito perto. Quando ele chegou, a pólvora já invadira e tomara por dentro toda a broca aberta na barriga do Luís Anselmo, que tremia, como se fosse de frio. Tio Chico só ajudou a apagar a luz dos olhos do Luís Anselmo.

Assim que se deu o enterro, o Talano levou a Júlia Barradas e o Zé do Carmo para morar no sítio, com ele. Os três juntos, num arranjo de aliança.

Quando meu tio Chico estava para morrer, ele, que nunca falava dos vivos, contou jamais ter visto uma tristeza tão grande deformar o rosto de uma mulher quanto a que ele viu no rosto da Júlia Barradas naquela tarde.

Marcos Vinícius Ferreira de Oliveira

Nasceu em Cataguases (MG), em 1969. É autor de Uma ou outra forma de tirania (contos), E se estivesse escuro? (novela), pela 7Letras, e As mãos ásperas (contos), pela Patuá.

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