A guitarra de Jerez

Conto de Marcio Renato dos Santos
Ilustração: Marco Jacobsen
01/05/2009

Nunca toquei a guitarra que está na sala do meu apartamento. Ninguém mexeu nela. As pessoas que me visitam não tiram os olhos. Músicos desejam manuseá-la. Crianças querem tocar. Não deixo. Amigos estranham que eu não me aproxime da guitarra. Sou guitarrista. Agora atuo no aparelho burocrático do estado. Mas isso não justificaria o não-uso do instrumento. Digo por aí que temporariamente abandonei a música. Nem a senhora que faz limpeza chega perto. Anunciamos que é uma relíquia, o que de fato é. Comunicamos que é mero objeto de decoração, o que atualmente também é. Apenas eu e a minha mulher sabemos a história dessa guitarra.

Há algumas décadas Ramón Hernández encomendou uma guitarra, a mesma que hoje está na sala do meu apartamento. Hernández é uma lenda. Nasceu e permaneceu todos os seus sessenta e seis anos em Jerez, no sul da Espanha. Há quem o considere o maior guitarrista flamenco de todos os tempos. Não há provas documentais da sua existência. Nem gravações de suas performances. Outros guitarristas, desafetos de Ramón, ficaram para a história como os grandes personagens flamencos. Moradores de Jerez comentam o que os antepassados comentavam: o guitarrista gostava de tocar em casa e poucas vezes se apresentou em público. Costumava ingerir bebida alcoólica todos os dias. Ramón Hernández se suicidou.

Mulheres dançavam. Mulheres suspiravam. Mulheres sorriam e se entregavam a Ramón Hernández. Ele nem precisava tocar. O jeito de sentar e segurar a guitarra já seduzia. Tocando, então, era irresistível. Casou. Teve filhos. Com a esposa. E com outras mulheres. Ruas do bairro onde viveu foram povoadas por seus descendentes. Nunca teve dificuldade financeira. Mesmo com os gastos excessivos. Com mulheres. Com filhos. Com vinho. Teve saúde. E sanidade. Até encomendar a guitarra.

Ramón Hernández se enforcou dois meses após receber a guitarra feita sob encomenda. Antes, perdeu o apetite. Passou a ter insônia. Se endividou. Teve a casa assaltada. Sua mulher fugiu com um vizinho. Enfartou. O lado direito do corpo ficou paralisado durante duas semanas. E a guitarra, feita com madeira aproveitada de caixão funerário furtado de um cemitério, ficou parada num canto da casa. Um jornal noticiou que ele morreu de parada cardíaca mas em Jerez todos sabiam e ainda sabem que foi suicídio.

Meses depois da morte de Ramón Hernández, a guitarra estaria na vitrine de uma loja de Madrid. Jimenez Martin pagou mil dólares pelo instrumento. E a partir disso teve quarenta dias e quarenta noites de reconhecimento público. Na época, Martin vinha sendo apontado como a nova revelação da cena flamenca e com a guitarra de Ramón se afirmou como guitarrista. Passou a ser convidado e se tornou atração fixa no tablado Las Carboneras. Também se tornou amante de uma das mais talentosas bailaoras madrileñas, Juana Pentenado. Ela estaria, mesmo sem saber, grávida de Jimenez Martin quando ele foi encontrado, antes de um show, sem vida no camarim do Carboneras. Martin tinha 31 anos.

Pablo de Córdoba, garçom do tablado Las Carboneras, foi o primeiro a ver o corpo de Jimenez Martin sem vida. Mas Pablo não avisou ninguém. Foi visto, por mais de cem pessoas, caminhando com a guitarra por algumas ruas madrileñas. Pelo menos foi assim que um jornal espanhol noticiou o fato no dia seguinte. Pablo seria atropelado por um ônibus, encaminhado para um hospital e entraria em óbito, vítima de hemorragia em meio a uma operação de emergência. A guitarra não sofreu nenhum dano, e foi recolhida pelo departamento de polícia de Madrid. O policial que transportou o instrumento da rua até o quartel levaria um tiro na cabeça durante uma blitz, naquela mesma noite, entrando em estado de coma profundo.

Bebo tinto seco Caubernet Sauvignon enquanto olho a guitarra. Ela está na sala do meu apartamento há mais de um ano. Até agora, não tive nenhum problema mais sério além dos impasses permanentes da vida. As coisas seguem. Estou vivo. Tenho saúde. Mas também não encostei na guitarra. Transportei o instrumento de uma loja até aqui usando luvas. Apenas precaução. Minha esposa sabe da história, não acredita mas também não chega perto. Se alguém mexeu, nem sei. Miro e flerto esse objeto e meus dedos ficam com vontade de soar música. Penso em canções só de olhar essa guitarra. Mas não me aproximo. Não tenho medo, mas pra que arriscar?

Muitos ficaram sabendo o que passou a ser chamado de a maldição da guitarra de Jerez. E, mesmo assim, não hesitaram em tocar o instrumento. É difícil afirmar se o que se comenta aconteceu. O fato é que dezenas de músicos morreram depois de um único contato com a guitarra. Houve quem, a exemplo de Manuel Torres, usasse o instrumento por anos mas, fatalmente, viesse a falecer. Na Espanha há quem diga que tudo não passa de coincidência. Que morrer todo mundo acaba morrendo. É praticamente impossível reconstituir a trajetória da guitarra e citar o nome de todas as pessoas que tiveram contato com ela. Um estudante de história tentou fazer uma dissertação de mestrado sobre o assunto mas adoeceu antes de concluir o trabalho. Um raio o atingiu. Ele estava sentado na beira de um lago. Em Jerez.

Durante quase uma década ninguém soube o paradeiro da guitarra de Jerez. Posteriormente, surgiu a informação de que o instrumento permaneceu no sótão de uma casa em Granada. Um músico amador, não-identificado, comprou a guitarra e se suicidou. A família do jovem decidiu alugar a casa como ponto comercial. Relojoaria. Aviário. Salão de beleza. Escola infantil. Açougue. Nenhum negócio prosperou. A guitarra seguia trancada num quarto do piso superior daquela casa, até ser encontrada por Manolo Vargas, um sujeito desempregado contratado pelos proprietários do imóvel para fazer a limpeza. Vargas se apropriou do instrumento e o negociou em uma feira de rua em Granada. Ao que consta, Manolo Vargas não sofreu nada pelo contato com a guitarra, excetuando um inexplicável e incurável sonambulismo. A guitarra foi comprada por Carmen Barbeiro que, em seguida, atravessaria o oceano atlântico. Dentro de um navio. Acompanhada do instrumento jereziano.

Pedro Mercê conheceu e se apaixonou por Carmen Barbeiro durante a viagem de navio da Espanha até o porto de Santos. Dormiram juntos já na primeira noite sem que um soubesse o nome do outro. E quase não saíram do quarto-cabine. Até as refeições eram feitas na cama. Pedro não conseguia deixar de olhar para Carmen. Apenas em alguns momentos desviava o olhar dela para permanecer durante minutos a contemplar a guitarra de Jerez. Abandonar a esposa e a família seria a sua primeira ação em terras brasileiras. Posteriormente, viveria temporada com Carmen e gastaria todo o dinheiro acumulado durante décadas de trabalho e privações. Meses depois, o corpo de Pedro seria encontrado sem vida ao lado do de Carmen e daquele instrumento.

A guitarra de Jerez passou por várias mãos no Brasil. De violeiro do pantanal mato-grossense a ídolo de matinê paulistana. De roqueiro gaúcho a compositor de samba em Curitiba. De líder de grupo de maracatu pernambucano a repentista radicado no Rio de Janeiro. Todos esses brasileiros, e outros, foram vítimas da maldição do instrumento musical. A exemplo do que aconteceu em território espanhol, uns morreram subitamente. Outros se tornaram alcoólatras, viciados em cocaína ou dependentes de outros vícios, e ainda insones, antes de morrer. No Brasil, alguns sujeitos que manusearam o instrumento se jogaram de prédios ou pularam na frente de trens. Lenda ou não, uma temporada a tocar a guitarra de Jerez se tornava sinônimo de sentença da qual ninguém escapou. Ou se escapou não há ao menos um relato escrito.

Há quinze ou dezesseis meses, fui até uma loja no centro da cidade. Meu plano era voltar com uma guitarra Fender, Gibson ou Ibañez. Mas um vendedor me mostrou aquele instrumento construído artesanalmente em Jerez. Eu já tinha ouvido falar. Conhecia a lenda. Comprei. Recebi de presente um par de luvas para não segurar diretamente. O vendedor ainda disse que se eu quisesse, poderia devolver. Mas não devolvi. E desde então fico com vontade de tocar. Ainda não toquei. Mas a guitarra de Jerez me desperta idéias musicais. Não sei até quando vou resistir. Hoje é sábado. Minha mulher saiu. Não tem mais ninguém por aqui. Por que não tocar? É o que vou fazer. Agora.

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

Rascunho