A flor de Marcela

Um conto de David Oscar Vaz
Ilustração: Marco Jacobsen
01/12/2003

O ano era de 1964, e nunca me esquecerei do dia 20 de março. Não pelo entusiasmo, descrença, ou simples horror que a Marcha com Deus pela Pátria e pela Liberdade gravou na lembrança da umas tantas pessoas. Os acontecimentos daquela tarde, os ocorridos comigo enquanto outros marchavam, tiveram um caráter menos espiritual e patriótico, como poderia dizer uma das marchadeiras, só não diria que menos alegre, intrigante e libertino. Não me esquecerei daquela tarde, nunca me esquecerei da moça (não poderia chamá-la de menina), que me mostrou o quanto a natureza tinha por gosto adiantar os anos a uma pessoa. As lembranças ainda têm o encanto de pôr meu coração no compasso de um outro tempo e de encher minha alma com pontos de exclamação e reticências.

Começo descendo do ônibus, daquele que me trouxe da Praça do Correio e me deixou ali em Santana. O tempo era firme, apesar de uma nuvem que se escondia atrás de uns prédios; e o dia me era alegre, apesar de uma ruidosa discussão colhida no acaso de uma porta de bar. Acrescente-se ao sol um vento leve de dedos acetinados que tinham por graça roçar a cara e os cabelos da gente. Apesar do tumultuado trânsito, ia adiantado para o encontro com o professor José Bueno, colega de trabalho mais velho e mais lento do que eu. Devo confessar ainda que o professor Bueno fora para mim uma espécie de mestre; não fossem alguns desacordos de ordem ideológica, creio que seríamos muito mais íntimos. O conservadorismo e a timidez do professor, no entanto, não diminuía em nada minha admiração; ao contrário, mais me impressionava a ousadia de alguns trabalhos seus conhecer-lhe a alma retraída. Muito revelador foi seu estudo sobre o Barroco Ibérico e não foi sem paixão que li seu ensaio sobre Teresa D’Ávila. Pouco conhecido, e desconfio que por culpa do próprio autor é Desejo e Tabu, outra preciosidade! Graças a este trabalho estava agora indo encontrá-lo. Havia uma referência ali a um conto erótico que, apesar de todo meu empenho em vasculhar bibliotecas, não o pude localizar. Desconfiei que tal conto pudesse não existir, que José Bueno o tivesse projetado com o único intuito de ilustrar e justificar aqui e ali suas afirmações, evitando assim ter que buscar em vários outros textos os exemplos que podia obter num só. Tal atitude não estaria em desacordo com seu humor nem com sua modéstia, já que esta atribuía a obra a um autor igualmente imaginado. Mas me enganei, percebi logo; quando confessei minha frustrada busca ao conto, meu colega sorriu, pigarreou e com um jeito maroto me disse que sua biblioteca eu ainda não havia consultado, e ela estava às ordens, lá encontraria o que procurava.

Percorri sem pressa a Voluntários da Pátria, andando e fazendo hora, apreciei detidamente uns cartazes do cine Hollywood que prometiam o amor de O Candelabro Italiano e o terror de Os Pássaros. Fui subindo e parando às vezes. Olhando as vitrines, pensei nas ousadias futuras que a moda prometia. Por fim, fugi de uma senhora que riu com malícia ao me flagrar examinando com duvidosa atenção os trajes de um manequim feminino. Sem consultar o relógio, decidi que já era hora.

Quando cheguei à casa do professor Bueno, descobri que meu anfitrião havia saído. Uma irmã mais velha que morava com ele, dona Aparecida, me disse que o professor lhe recomendara que o imprevisto de sua saída não deveria causar-me qualquer transtorno. A mulher falou-me de um telefonema e de um assunto urgente, nada sério. Infelizmente a cunhada também havia saído, disse-me a senhora sem esconder uma certa apreensão.

— Naná foi marchar, o senhor sabe… contra os comunistas — disse benzendo-se.

Tomou conta de mim uma perplexidade e uma não menor vontade de rir. Dona Ana Francisca Mascarenhas Bueno, a Naná, mas antes de ser Naná era católica, antes mesmo de ser mãe de uma bonita moça de dezessete anos, antes e acima de tudo, esta Joana D’Arc moderna em tempo de Bossa Nova e Cuba-Libre era, da bile ao coração, fervorosa e patrioticamente católica. Naná foi marchar; foi e deixou a pobre cunhada tão apreensiva. Creio que deve ter sido a minha simples presença que teve o efeito de acalmar dona Aparecida, foi o que pude deduzir de suas palavras ao dizer que era bom, nesses momentos, ter um homem em casa. Ao contrário do que poderia acontecer se soubesse das minhas simpatias, dona Aparecida leu no meu assombro e no meu sorriso uma palavra compassiva. Disse-me que ficasse à vontade;… queria um café? A biblioteca era ali ao lado.

Não precisava me dizer, por duas vezes havia estado ali com José Bueno.

— Aqui reino absoluto e solitário — disse-me meu colega na primeira ocasião.

Preparava-me para experimentar de novo a boa impressão que já havia tido das outras vezes. Agradeci então à dona Aparecida o café e me dirigi para a biblioteca, mal sabendo o que me esperava. Enquanto atravessava o breve corredor que media no máximo três passos, a memória repetiu-me ao ouvido as palavras do senhor da casa: aqui reino absoluto e solitário! Era uma advertência que a alma respeitosa me fazia, ou seriam palavras mágicas de um ritual secreto que precediam minha entrada no seu templo?

O corredor chegou ao fim antes de minhas reflexões. Entrei em silêncio, um silêncio tal que o primeiro ruído que fiz ampliou-se num estrondo. Bam! Notei sendo notado por outra presença além de mim. E de um banquinho saiu um pulo e por pouco um grito:

— Ai, que susto o senhor me deu! — disse uma voz de moça — Pensei que fosse papai.

O ambiente estava iluminado por um rasgo de janela semi-aberta que imprimia sobre o banquinho seu foco de luz. A moça, ao lado, abraçava o livro aberto no peito. A moça era Marcela. Tratei de me desculpar enquanto acendia a luz. Agora sim pude vê-la melhor. Os olhos postos em mim tinham não sei que ar de contente. Imaginei que devia estar feliz por ser eu que a flagrara ali fuçando os livros e não o pai, que não devia permitir que ninguém entrasse em sua biblioteca sem permissão. Sendo isto verdade, como vim a saber mais tarde que era, explicava-se o termo solitário daquela frase de José Bueno e, por outro lado, revelava-me a enorme consideração que meu colega tinha por mim, cedendo-me sua biblioteca com tudo que havia nela mesmo na sua ausência. Além do ar contente nos olhos, Marcela tinha o rosto rosado no momento, quando outra qualquer, pelo susto, o teria certamente embranquecido.

— Não sabia que o senhor viria… não quero atrapalhar.

Disse isso e, com o livro ainda esquecido no peito, caminhou para a saída.

— Não, não me atrapalha — disse-lhe tocando-lhe no ombro, quando ia passando por mim. Olhou para minha mão.

— Só vou fechar a porta; tia Cida pode me ouvir, e ela sim, me entrega a papai.

Notei-a de costas. Usava uma dessas calças que desciam justas até o joelho e que se chamavam na época de pescador; a camisa era clara e fina, muito fina, e não se percebia por baixo outra peça. Pensei ter então descoberto por que Marcela não desgrudava do livro, era um bom escudo contra olhos inesperados. Mas sentindo-se assim desprotegida, poderia ter aproveitado a desculpa dada e a porta aberta para sair, ao contrário, trancou-a.

— Tia Cida é meio surda, mas a gente nunca sabe, do jeito que gosta de uma fofoca, não tem surdez que a vença. Agora sim,… se não atrapalho mesmo o senhor?…

Marcela parecia querer um pedido formal para que ficasse. Disse-lhe mais uma vez que não me incomodava, que estava eu ali só para uma breve consulta, não iria abusar da ausência de meu anfitrião.

— Que abusar, abusar nada! Não sei se o senhor sabe, mas papai lhe quer muito bem; e se quer lhe agradecer o favor, o melhor modo é que o senhor gaste umas boas horas por aqui.

Marcela foi sendo assim muito gentil, pondo frescor bom em cada frase. Nunca havíamos conversado desta maneira. Lembro-me que na última visita, apanhei-a escutando minha conversa com seu pai. Curiosidades de menina, pensei. Agora, no entanto, pensava outra coisa; os olhos que me buscavam e fugiam, um certo tremor na voz, o jeito de morder o lábio cortando ao meio um pensamento, este conjunto todo me dizia que a moça me enredava em namoro. Um certo pudor, em que entrava não sei em que medida o respeito pelo pai, me fez de imediato desmentir essa impressão; tinha na época o exato dobro de sua idade. Mas depois de alguns minutos de conversa, aqueles seus modos se repetiram e desmentiram meu desmentido. Não devia me iludir com aquilo, pensei então, era o típico caso da jovenzinha que se apaixona por um sujeito mais velho, um professor ou coisa assim.

— Quer que lhe ajude a procurar… o que é mesmo que o senhor procura? Pode dizer, olha que papai nem suspeita, mas conheço até as partes mais íntimas desta biblioteca.

Diante da minha indecisão, Marcela sorriu.

— O senhor não confia em mim!… Pois vou lhe mostrar eu que confio no senhor, vou lhe confessar o que estava vendo quando chegou?

Aproximou-se, pediu-me com um gesto que me sentasse à mesa do pai. Ela ficou ao lado, quase de frente, e colocou à vista o livro aberto. Tratava-se de uma obra de pintura.

— Não sei de quem é ou como se chama, mas me deu uma coisa quando o vi.

A pintura era Olímpia, um quadro em que Manet compôs um fascinante jogo de claro e escuro: a mulher negra, quase desaparecendo confundida com o fundo, segura um buquê de flores; a mulher branca e nua em grande contraste com todo o escuro do quadro tem a mão pousada sobre o sexo e olha serena para o espectador. Ao ser surpreendida pela minha entrada, Marcela tinha abraçado o livro não por pudor do que visse dela, como havia imaginado anteriormente, mas antes para esconder o que ela mesmo via e… Não, também não era isso, ou não era só isso, engano sobre engano que tive que corrigir um após outro: assim que levantei os olhos do quadro e olhei para a mulher que estava comigo, percebi, por baixo da camisa clara, que os bicos dos seios de Marcela estavam acesos, iluminando a transparência do tecido. Não podia ser que não percebesse, ela não estava me namorando, estava me seduzindo, e o que antes me ocultava com um livro, agora aos poucos se oferecia através dele. Não caio nessa, menina; amanhã, provavelmente, estaria rindo com as amigas à minha custa.

Marcela apanhou um pedaço de papel de cor salmão que havia sobre a mesa, amassou-o delicado com os dedos e, improvisada uma flor, colocou-a nos cabelos.

— Eu bem que daria para ser uma modelo como ela! O que o senhor acha?

E me olhou com os mesmos olhos serenos que os da moça do quadro. Vamos lá, pensei já pegando gosto da situação, vamos ver até onde essa menina era capaz de chegar.

— Acho que sim — respondi.

— Mas beleza só não basta, não é?

Disse isso como se respondesse a um pensamento meu e acho que piscou de leve um olho. Ainda que esse jogo me envaidecesse, pois Marcela era mesmo muito bonita e eu bem mais velho, devia tomar cuidado; entrar de gaiato numa dessas! Então o que tinha de fazer era o que fazia, dava uma de bobo. Bobo mesmo, ela dizia uma coisa para que entendesse outra e eu, cara mais de santo, entendia tudo ao pé da letra. Estratégia que me colocava à distância e me permitia que saboreasse toda sua habilidade. O que não imaginei, no entanto, é que ao agir assim acabava por diminuir minha idade e, forçosamente, aumentar a dela; por estranhos caminhos assim nos aproximávamos.

— Que coisa linda essa mulher, essa massa de cor, a gente tem até vontade de tocá-la, não é?

— Tenho — respondi indeciso em saber se olhava para Marcela ou para o quadro.

— Sabe que mamãe ficaria muito brava se me pegasse olhando esse quadro. Mamãe não entende nada de arte. Outro dia, queria ir ver Os Pássaros no cinema aqui próximo, e ela não me deixou. Disse-me que eu já sou bicuda demais e não preciso ver pássaro nenhum. Acho que tem medo que eu tenha a natureza daqueles passarinhos; queria que fosse freira, imagine! E o senhor, o que acha, sou mesmo bicuda?

Disse pousando a mão sobre a minha. As duas imagens evocadas, pássaro e freira, começaram a brincar com a minha razão. A lembrança do cartaz que vira havia pouco na porta do cinema e a referência que tinha na memória do conto que ali me trouxera com que potência colaboraram para misturar as imagens. O conto chamava-se A Flor de Madalena e tratava da estória de uma freira que feliz se entregara ao amor de um homem. Pássaro e freira, que eram também Marcela, começaram a dar voltas na minha cabeça, me benzendo em bicadas, cantando em gorjeio não sei que salmo. Que armadilha era essa que José Bueno me armara! Um segundo,… dois, me dominei respondendo.

— Só um pouco ousada.

Marcela retirou a mão, mas o calor dela ficou um momento.

— Acho que falo demais.

— Não, não…

E a minha negativa teve a propriedade de arrancar-lhe um novo sorriso. Marcela afastou-se da mesa e foi até a janela; virei na cadeira para vê-la e ela estava como que distraída olhando para fora, talvez pensasse no próximo passo, mas, por um momento, temi que fosse embora. Eu é que não podia me levantar, estava muito excitado e as calças finas e largas da época não esconderiam, se me levantasse, o teso volume que lutava contra o pano.

Marcela virou-se para mim e acho que suspeitou do meu estado, não sei. Sei que recomeçamos a falar do modelo de Manet e daí sobre vestimentas e modas.

— Os homens gostam de ver as mulheres…. com pouca roupa, não é? Sei como os meninos nos olham quando jogamos vôlei. Não prestam atenção no jogo antes nas nossas sainhas ou o que elas não cobrem.

Ao dizer isso, colocou as mãos na cintura olhando para o corpo como se se imaginasse com camiseta de jogador de pólo, saia branca mínima cobrindo o maiô igualmente mínimo, meia soquete e tênis. Dirigia com esse seu gesto também meu olhar. Olhando novamente para mim, sorriu como se tivesse tido uma idéia.

— Já volto, vou lhe fazer uma surpresa.

Disse isso e saiu, deixando-me só. Levantei-me e pus-me a andar. A biblioteca possuía todas as paredes cobertas de livros, vinte e cinco mil volumes, disse-me José Bueno; no centro, uma longa estante, que dividia o ambiente em dois corredores, finalizava em perpendicular com uma estante menor, criando um corredor oculto entre essa pequena estante e a da parede dos fundos. As palavras de meu diálogo com Marcela me acompanhavam enquanto caminhava e era espreitado por taciturnos e recatados volumes. Vou lhe fazer uma surpresa. Que seria? Minha libido brincando comigo me dizia que ela voltaria vestida de jogadora da equipe de vôlei, minha libido fazia grande torcida. Não pensei no meu colega e pai da moça, não pensei, ou se pensei abafei logo a memória, no ensaio em que investiga a superação dos impedimentos internos para a realização do desejo. Pensava apenas em Marcela e então aquela sua última fala me soou muito familiar. Sim, era familiar, outra personagem já a havia pronunciado e eu me lembrava agora, era Madalena. Verdade! Assim estava no trabalho de José Bueno referindo-se ao conto que eu vinha buscar. “E Madalena, freira do convento de… disse a seu amado: Volto já, vou lhe fazer uma surpresa. Sai e volta e, quando volta, está nua.” Olhei em volta, perplexo, os livros continuavam mudos; se riam, riam em silêncio. Não era possível que a vida imitasse a arte, melhor seria pensar que a plagiasse: Marcela devia ter lido, quem sabe escondido, o texto do pai. E será que se utilizara dele para me seduzir? Temi um instante que não voltasse, felizmente estava errado.

Um minuto depois, um eterno minuto, estando eu no fundo da biblioteca, ouvi o movimento da maçaneta, e um grande alívio tomou conta de mim. Coincidentemente, neste momento, dei com o livro de meu colega numa prateleira e, dentro dele, havia os manuscritos de A Flor de Madalena. Ouvi Marcela me chamando e de novo o tesão, que me havia por breve momento abandonado, voltava. Teria ela retornado vestida de jogadora de vôlei para me provocar como provocava os meninos? Ou mais ainda, teria retornado como a própria Madalena retornara para seu amado? Nem uma coisa nem outra, espanto, espanto absoluto de coração batendo forte, Marcela retornou, mas retornou vestida de freira.

— O que o senhor acha? Mamãe mandou fazer pra mim.

E riu com muito gosto. Abaixou os olhos, viu agora o volume crescido sob minhas calças. Apagou o sorriso e aproximou-se sem pressa. À minha frente, seus lábios ficaram entreabertos querendo desenhar um sorriso; abaixei minha cabeça, ela não recuou a dela, apenas reclinou um pouco para trás para que sua boca se levantasse, e nos beijamos. Quase não nos abraçamos, Marcela recuou depois do beijo, pensei tê-la assustado, enganei-me. Enfiou uma das mãos dentro de uma das mangas do hábito e retirou de lá alguma coisa que não pude ver o que era, pegou minha mão e passou aquele objeto para ela, fechando-a. Quando a abri, uma coisa branca cresceu se desdobrando e preenchendo toda a palma, era sua calcinha, tremia se desdobrando em minha mão como um pássaro ou uma flor. Abracei-a, apertei-a para que sentisse o que antes só havia visto.

Levou-me para que de novo eu me sentasse na cadeira onde estivera. Ela puxou para cima a parte de baixo do hábito, puxou, e vi seus louros e leves pêlos ainda antes que ela se pusesse em cima de mim como se me fosse cavalgar. Com movimentos rápidos livrou-se do hábito, passarinho livre da casca, musa de Manet, surgiu nuazinha nos meus braços. Desabotoou depois, um, dois, três, os botões da braguilha, enfiou a mão pela abertura e teve um gesto de prazer suspirado ao segurar o que procurava. Seus lábios aproximaram-se dos meus e os mais detalhes são silêncio, um silêncio da mesma natureza daquele que preencheu nossas bocas quando do momento do beijo. Digo apenas mais que, antes da penetração, Marcela deixou escorrer estas palavras em meu ouvido: Minha flor é toda sua. Em seguida, sua flor abocanhou o pássaro que tinha entre os dedos.

Quando acabamos, ela me abraçou com tal carinho, que não me lembra de outra mulher que tenha feito igual. Levantou-se e vi então o sangue que escorria. Ela, serena, disse:

— Não se preocupe.

Depois, não sei que tempo depois, ouvimos barulho e Marcela correu a pegar seu hábito de freira e disse-me:

— Ou é mamãe ou papai. Disfarce, há um pouco de sangue nas suas calças.

Beijou-me e saiu. Durante alguns segundos em que fiquei ali sozinho, levitando ainda, não pensava em nada, sentia-me irmanado com o universo. Só então coisas adquiriram novamente o peso do cotidiano, só então me veio à lembrança a frase de Marcela. Como se já soubesse o que iria encontrar, vasculhei o manuscrito do conto que havia trazido para a mesa. Minha flor é toda sua, foi isto o que disse Madalena antes de se entregar ao seu amor.

José Bueno chegou quase que junto com a esposa, desculpou-se por não ter podido esperar-me e me convidou para um café que não pude recusar.

— E então, gostou do conto?

— Muito bom! — respondi sem conseguir perceber se na pergunta havia uma nota de malícia, acrescentei apanhando o manuscrito — Mas me diga a verdade, esta é obra sua, não é?

Meu colega sorriu.

— Que quer que lhe responda como na anedota de Picasso: “Não, é sua!”?

Dona Aparecida havia preparado uma mesa farta. Dona Naná falou, para meu horror, com muito entusiasmo sobre a Marcha e, quase a cada frase, a cunhada benzia-se. Marcela finalmente desceu para se juntar a nós; vestia-se discretamente.

— Ora, mamãe, os comunistas não são tão terríveis assim — e olhou para mim sorrindo.

— Que é isso, menina. Você é tontinha mesmo, não!

— Os comunistas — atalhou a tia — se entram em nossa casa você não sabe do que são capazes.

— Exagero — e dirigindo-se a mim — o senhor acredita que elas acham que comunistas comem criancinha.

E sorriu novamente. José Bueno dirigiu o olhar a mim e não sei o que desconfiou. Procurei fugir dali o quanto antes. Muitas coisas vieram depois, todos aqueles anos de terror que não cabem aqui. Eu e José Bueno nos vimos rapidamente em campos opostos e, conseqüentemente, nos tornamos mais distantes. Antes disso, no entanto, visitei-o algumas vezes. Marcela tratou-me com a mesma cerimônia antiga como se nada tivesse acontecido entre nós. Algumas vezes pensei que ela lera nos livros do pai o que colocou em prática naquele dia; outras, que este narrador, fascinado com o que passara, se iludiu ouvindo frase que não houve; outras ainda, que talvez tenha sido o próprio pai, meu colega José Bueno, quem tivesse criado de alguma forma aquela circunstância, provando com o acontecido as teses de seu ensaio. Fiquei com a simplicidade, a insondável simplicidade: uma moça queria entregar-se a um homem que desejava e assim o fez. Aceitei isso, como tive que aceitar sua falta; não procurei Marcela em outras mulheres. Marcela, e isto colhi algumas vezes em reflexos de espelhos quando estava mais feliz, Marcela morava dentro de mim.

David Oscar Vaz

É escritor e professor de literatura brasileira. É autor dos livros de contos Resíduos (Prêmio da APCA) e A urna. Vencedor do concurso Criar Lusofonia do Centro Nacional de Cultura para a escrita do romance Trem do Atlântico a ser publicado em breve. Vive atualmente entre São Paulo e Lisboa.

Rascunho