Segunda-feira de noite. A dor na perna esquerda, já forte durante o dia, ficou intensa. Tomei dois analgésicos, uma pílula para dormir. O sono não vinha. A dor irradiava a partir do quadril, tomava as costas. A perna doía quando esticada, ainda mais se eu a dobrava.
De um lado para outro da cama, sem poder levantar. Gemendo. Madrugada, acordei minha mulher, fomos a uma farmácia. Eu apoiado nela, arrastando a perna inútil. Pedi uma injeção qualquer que aliviasse o sofrimento. Voltei para a cama. Nada. À noite, Polaco Thadeu iria lançar seu novo livro, no Beto Batata. Eu tinha prometido ir.
Talvez um antiinflamatório de última geração resolvesse. Achei duas cápsulas escondidas, as últimas. Mandei ver.
O sono me alcançou pelo meio da manhã. Dormi duas horas, pouco menos. A dor voltou ao meio-dia. A perna parecia estar sofrendo um permanente choque de cotovelo, amor de sogra. Pedi outra injeção, não consegui convencer ninguém da necessidade: remédios demais.
Minha mulher queria saber porque eu precisava levantar. “Txadeu xeti orxeat”, falei em euscadi. “Thadeu é um amigo querido”, repetia sem ninguém entender, minha mulher, a empregada, o cachorro. Comecei a suar. A língua ficou grossa, tinha sido atacado pela sede do deserto. As palavras saíam com dificuldade.
Pedi água, em etrusco arcaico. Por que as pessoas se faziam de desentendidas? Com a mão, fiz gesto de beber. “Beber neste estado nem pensar”, decretou a víbora, Cleópatra do Barigüi. Demorou horas para entender que era água que eu queria. Deu tempo a César para invadir a Lídia e voltar triunfante a Roma.
O suor encharcou o lençol. “O que é isso?” ela perguntou quando chegou do trabalho. “Minha versão do Santo Sudário”, respondi em aramaico. Pensei que fosse ouvir alguma censura à blasfêmia. Silêncio, como se eu falasse grego.
Algumas pessoas estavam sentadas à beira da cama. Um homem alto, de nariz vermelho, apresentou-se como o Secretário das Florestas. Acho que falava em copta. Queria saber se eu ainda dominava o Smith & Wesson, calibre 38, para defender um bosque de coníferas ao pé do Monte Erebus. Não só mantinha intactas minhas habilidades como era capaz de me expressar em grush, idioma de ligação entre o russo e o mongol. “Ninguém lá fala grush”, respondeu o secretário. “Só entendem a língua do K-47”. Discutimos. Meu Smith era mais mortal, garanti. Além disso, sem uma perna, eu só poderia usar a metralhadora se fosse amarrado a algum objeto sólido.
Alguém começou a enrolar fita crepe no meu tronco. O suor atrapalhava, a fita crepe escorria corpo abaixo. O homem de nariz vermelho já não estava mais ali. Resolvi fugir pulando na perna direita. Na minha frente apareceu um estábulo, parecia imenso. Abri a porta, com cuidado. Lá dentro, batendo couro sobre uma bigorna, estava meu amigo Salmo. “Você aqui? Você mora em Israel”, falei em ídiche-ucraíno. “Morava, cansei de Israel.” Pediu para falar em hebraico, ídiche era coisa da diáspora.
Foi um choque. Salmo, o único judeu curitibano a estudar num colégio católico, tinha ido estudar engenharia aeronáutica no MIT, depois migrara para Israel, havia 30 anos. Agora era carpinteiro. “Foi para isso que você estudou?”. Salmo, o calmo, como a gente o chamava no colégio, continuou batendo o couro. “Você não conhece a grandeza da profissão de carpinteiro”, decretou. Não era possível que ele tivesse aderido ao cristianismo. Por que não fez isso no colégio? “Salmo, vocês não reconhecem o Novo Testamento. Só compartilhamos o Velho. São José, o carpinteiro, não está lá.”
Ele mandou eu ficar quieto. “Vou construir um mecanismo para você andar.” Pegou uma roda de bicicleta, aro pequeno, montou um eixo de madeira a partir do centro. Adaptou um sistema de coroa e pinhão de forma a subir uma manivela, a qual eu girava com a mão esquerda. O cotoco da perna esquerda foi amarrado sobre uma espécie de pára-lama. Doía, doía muito, até ele acolchoar o cotoco e o pára-lama com tiras de feltro, pequenos tapetes persas, talvez.
Ali dentro da estrebaria, tentei andar. Caí diversas vezes, depois acostumei. Foi quando vi um rasgo de luz entrando pela porta. Saí para o campo.
Ao cruzar uma ponte me dei conta: estava às margens do Dniester. Um homem aproximou-se, curioso em conhecer a arataca que me impulsionava. Perguntei pela ciclovia do Bosque do Papa. Ele apontou para frente. “Duzentos metros”, disse em armênio.
Encontrei a ciclovia. Agora bastava descer a Cândido de Abreu, tomar à direita na Praça 19. Estava perto de casa, enfim. Segui, pedalandando feliz. Era manhã de quarta-feira, fazia sol em Curitiba.