A impossibilidade de, naquela quarta-feira, diplomar o marechal Hermes da Fonseca como senador pelo Rio Grande do Sul era uma derrota para Pinheiro Machado. Mas os “pernas-finas”, como tratava os adversários, não perdiam por esperar. Haveria troco. De modo que, disfarçando a contrariedade, no início da tarde deixou a sede da Câmara Alta, onde, havia duas décadas, imperava como chefe inconteste da política nacional.
Saiu como entrara, pela porta da frente. Enfrentando, agora, demonstrações de hostilidade ainda mais velhacas. Aos poucos correligionários que se ofereceram para protegê-lo, rogou que não lhe fizessem tamanha afronta. Se tivesse de cair como César, às portas do Senado, preferia enfrentar sozinho os assassinos, encarando-os de frente, sem esconder o rosto com a túnica como fizera o grande romano no derradeiro momento. E avançou em direção ao automóvel que o aguardava à beira da calçada. Em temeroso silêncio, a turbamulta se afastou como as águas do Mar Vermelho ao toque do cajado de Moisés.
Até hoje a cena não me sai da lembrança: um homem de sessenta e quatro anos, carregando sozinho contra o inimigo com o garbo do comandante da Brigada Ligeira na Batalha de Balaclava. Com a diferença de que a cavalaria inglesa foi destroçada pelos canhões russos, enquanto o general Pinheiro cruzou incólume as hostes inimigas.
É a última imagem que guardo dele com vida. Quem poderia imaginar que ali, naquele momento, o mais importante líder do país caminhava para o próprio fim?
Alto lá que estou colocando o carro adiante dos bois. Preciso começar pelo princípio. Pelo princípio talvez não. Seria exagero. Não preciso perlongar, de fio a pavio, a vida dos envolvidos na história. Admito uma referência aqui, uma curiosidade ali. Nada, porém, de relatos minuciosos. Não se trata de transformar a morte do senador Pinheiro Machado num roman-fleuve ao modo de Roger Martin du Gard. Muito menos num feuilleton à Eugène Sue. Pretendo, do modo mais objetivo possível, me ater aos fatos. Seguindo as lições do mestre João do Rio. E limitado ao meu parco engenho.
Isto posto. Encerrada a sessão no Senado, segui a pé até a Avenida na companhia dos colegas. Diante do Correio da Manhã, juntamo-nos a um grupo que trocava acaloradas idéias sobre o momento político.
Os alarmistas previam o iminente rompimento público entre o presidente Venceslau e o senador Pinheiro Machado. Havia, porém, quem jurasse que tudo não passava de fogo de palha. Nem ao mineiro nem ao gaúcho interessava uma briga de facão em noite escura. Não eram pacóvios para se envolver numa guerra de extermínio.
E por aí rolava a conversa quando nos surge à porta, transido como quem viu alma penada, o secretário de redação do Correio. E vai e diz, botando os bofes pela boca:
— Acabam de me comunicar que o general Pinheiro Machado foi assassinado.
As primeiras reações são de incredulidade.
— Impossível. Isso deve ser trote de algum desocupado.
— O sujeito que telefonou disse que o crime aconteceu no saguão do Hotel dos Estrangeiros.
— Em pleno Hotel dos Estrangeiros? Mais uma razão para não dar ouvidos. Como poderia um desconhecido passar pela portaria e ir invadindo o hotel assim, à galega, para atacar um senador da república?
— Ademais, o general Pinheiro anda sempre armado. Prevenido como é, não hesitaria em fuzilar o agressor.
Ainda correriam alguns comentários desencontrados, até um dos presentes berrar que bastava de conversa fiada, precisavam tirar o assunto a limpo, uma notícia como aquela requeria imediata confirmação.
Pronto. Foi como atear fogo ao rastilho. Sem ser convidado, me meti num dos carros de aluguel que zarpou em disparada rumo à Praça José de Alencar, onde ficava o hotel. Nenhum dos companheiros reclamou da intrusão. A gravidade do momento desobrigava-nos de luxos e melindres. Se, de fato, Pinheiro tivesse sido assassinado, a situação fugiria ao controle do governo. A coisa poderia degenerar em guerra civil. Enfim.
Passados vinte minutos das cinco da tarde, saltei diante do Hotel dos Estrangeiros. A essa altura, a entrada do prédio já estava tomada de curiosos. Abri caminho aos trancos até uma das salas de espera do pavimento térreo, do lado esquerdo da escada, onde jazia sobre uma mesa de jantar o cadáver do general. Quase ao mesmo tempo chegava o socorro da assistência, chamada às pressas logo após o incidente. O enfermeiro, um mulato gordo trajando avental branco com uma cruz vermelha ao peito, aproximou-se do corpo para, após sumaríssimo exame, confirmar o que todos já sabiam:
— Já não vive. O senador está morto.
Confirmado o passamento de Pinheiro Machado, telefonei para Eduardo Salamonde, meu chefe n’O Paiz em busca de instruções. Ele me mandou para o distrito onde se encontrava recolhido o criminoso. No caminho, um turbilhão de idéias me agitava a mente. Quem seria o assassino? Como planejara o atentado? Agira a serviço de quem? Sim, porque não restava a menor dúvida. Tratava-se de um sicário a soldo dos inimigos do senador. Importava, agora, obter o nome dos mandantes. O que não seria difícil. Nas garras da polícia, em poucas horas o mal-parido abriria o bico. Com os métodos de convencimento usuais em nossas delegacias, mais tardar na manhã do dia seguinte, o país saberia quem tivera o atrevimento de eliminar de modo tão vil o homem mais poderoso da república. Na minha santa ingenuidade, estava convencido de que a comandita logo seria desmascarada.
Na delegacia, deparei-me com os mais desencontrados boatos. De ordem do delegado-titular, doutor Nascimento e Silva, estava o criminoso recolhido a uma sala reservada. Os jornalistas ainda sem qualquer informação oficial.
Transpirara, no entanto, tratar-se de um homem branco, aparentando trinta anos, estatura mediana, cabeleira negra, bigode ralo, magro, ex-investigador da polícia civil de São Paulo, por nome João Rego, ou João Régis, que alegava ser o único responsável pelo crime. Cometido, segundo ele, com o fito libertar o povo brasileiro do infame caudilho que o tiranizava.
Certos jornais, na ânsia de furar os concorrentes, embarcariam nessa versão. Desmentida de cabo a rabo no dia seguinte. Na verdade, o criminoso não se chamava João Régis, não era paulista, nem agira por conta própria. Mas essa já é outra história, que não sei se terei paciência de contar por inteiro. Veremos. Por hoje é só. Ponto. Parágrafo.