A execução de Dalton Trevisan

Conto de Deonísio da Silva
01/04/2001

“Das ordens militares, amparadas em despacho judicial exarado meses após a aprovação da pena de morte no Brasil: “o escritor será encaminhado ao paredão carcomido das ruínas de São Francisco, nos altos de Curitiba, nas proximidades do Relógio das Flores e da Igreja do Rosário, a caminho das Mercês, onde ouvirá as acusações do populacho, antes de ser enforcado”.

— Quem é DGT?, perguntou o oficial com o papelucho na mão. — Ele é o primeiro da lista em Curitiba. — É melhor perguntar para um taxista, disse o subordinado, um cabo de tez muito branca.  — Para um taxista?!, espantou-se o superior. — Ficou louco, animal?

O cabo, que era polaco, um dos negros do Paraná, segundo a definição de ilustre sociólogo paulista ao estudar as contribuições das diversas etnias do Brasil meridional, tinha senso prático. “É que eles sabem tudo o que nós não sabemos: quais as melhores garotas de programa, onde se come o melhor bife, quais as bancas que vendem jornais de fora, onde é o ponto de ônibus para a Cruz do Pilar, quem se deu bem no bicho e em quanto acumulou a Loteria que ninguém ganhou.”

Foram feitas as pesquisas de praxe. Infrutíferas. Delas saiu desiludida até mesmo uma alta autoridade, com trânsito por todas as ideologias e domínios conexos — sabe-se que a Esquerda, por exemplo, sempre preferiu a Boate Quatro Bicos, assim chamada porque era lá que quatro altos dignitários faziam bicos durante o expediente, explorando algumas sirigaitas e bisbilhotando as visitas.

— O indivíduo não foi localizado, disse o oficial ao comandante.

O comandante tinha seus lustros literários: “sabem de uma coisa? Esta cidade faz por merecer um escritor como o condenado, viram? DGT, sim, sim, esta é do peru! Não perceberam que com a idade ele foi encolhendo até no nome? De tanto resumir os contos que escrevia, resumiu-se a si mesmo. Começou com novelas, estacionou décadas nos contos, depois encurtou-os para hai-cais, depois ais apenas, já que Curitiba, cidade sem mar, não tem cais. Seus últimos cantos serão intitulados is, mas sem ponto, embora quem o conheça diga que ele irá finar-se com apenas um “s”, não por ser indicativo de plural, mas pelo fonema semelhar a brisa que passa.

— Até logo, então, como dizia Ruy Barbosa, disse o oficial.

Dizem que quem, sem querer, entregou Dalton Trevisan foi Luís Gastão. Perguntaram-lhe se era verdade que o segundo nome de Dalton era Gerson e ele confirmou. Mas Dalton não acreditava em nada feito sem querer: não adiantava explicar-lhe que tal ou qual ato era resultado de um sem-querer. Ao contrário, ele só acreditava no querer. É o que dizem. Recolhi de ouvido. Sobre ele teceram-se lendas urbanas e rurais. Certo dia, à beira do rio Iguaçu, o signatário deu-se a divertimentos com certa moça que usava calcinha vermelha para ficar parecida com a Dinorá, mas quando se despiu usava um biquíni de bolina amarelinho, bem pequenininho que na palma da mão se escondia. Mas na mão de quem? Era orgulhosa dos 102 cm de seu — como direi? — derrière. Todas essas divagações têm o fim de registrar, ainda que por ínvios caminhos, que as lendas sobre o celebérrimo escritor ganharam também o campesinato. Inclusive, no exato momento em que a moça disse isso, um boi berrou ali por perto e uns alemães gritaram numa festa: “ele berrou, ele berrou/ ele berrou, ele berrou/ ele/ berrou/ ele, berrou”. E segundo os nativos do lugar aquelas palavras todas repetidas só queriam dizer “seja feliz!”.

Voltemos ao dia de execução de Dalton Trevisan. O editor solicitou economia vocabular no relato e para este cronista é quase como pedir-lhe que não seja mais lésbico.

Foi lida a primeira acusação. “O senhor disse que toda família de Curitiba guarda uma virgem abrasada no quarto.” Um advogado que disputara cargo político tentou contemporizar. “Quem sabe ele tira o ‘abrasada’!” E dirigindo-se a Dalton, usando linguagem para se sintonizar com a turba jovem ali presente: “realmente, o senhor pegou pesado, doutor Trevisan. Não se diz de uma virgem que está abrasada. Isso sugere penis aut vibrator aut digitum intra vas. Só que não os três juntos, né? Afinal fala-se da primeira vez!”. “Quem sabe tenha sido erro de revisão! Ele quis dizer “abraçada”. No português escrito do Brasil é comum trocar esse por cedilha”, disse um professor do cursinho Camões. “Não, não, não”, disse dom Fedalto, com sua boquinha latina, é como o INRI: o que escreveu, está escrito. “Não foi assim que disse Pilatos?” “Eles não têm a dignidade do Nelsinho”, murmurou Dalton, como se dissesse: “perdoemos, eles não sabem o que dizem, quanto mais o que fazem”.

Foram lidas outras acusações.

“O senhor chamou as mulheres de Curitiba de cadelas bem antes dos funkistas nos chamarem de cachorras e tchuchucas. Foi, pois, o senhor quem deflagrou o processo de desvalorização da mulher”, disse, aos berros, uma psicóloga que acumulava sua profissão clínica com a de destaque em escola de samba de Antonina, já que em Curitiba ninguém queria se tratar com ela. “Desvalorização da mulher!”, espantou-se um executivo presente à lapidação: “as acompanhantes mais baratas estão custando R$ 100 a hora”. “Na Visconde de Guarapuava todas fazem muito mais por muito menos”, informou um popular. “Não me interesso por ruminantes”, disse o executivo.

Chegou o pastor de uma igreja muito barulhenta contra quem o escritor muito imprecara: “ele disse que ia derrubar nosso templo; é verdade que não acrescentou que o reconstruiria em três dias, mas de todo modo é um herege”. Ninguém lhe deu ouvidos. Apenas uma senhora disse “pequenas igrejas, grandes negócios, este mundo está perdido faz tempo, ainda bem que eu vou morrer logo, minha própria neta já não corta mais os cabelos e nem limpa as unhas depois que entrou para a igreja Dele; perdida, sim, mas de unha suja, neta minha, não!”

Aproximou-se uma coordenadora pedagógica: “o senhor disse que todas as normalistas eram prostitutas disfarçadas que à noite desfilavam no salão de espelhos com meia preta e liga roxa”. Quando foi descer do tablado, rasgou-se a saia e apareceu a liga roxa. O público caiu na risada.

Foi pedido silêncio enquanto o relato ia sendo repassado. Sem perceber o rasgo, ela ainda se virou e fez uma segunda acusação. “O senhor só escreve mal das mulheres: uma degolou o casal de garnisés, outra estrangulou o canário no arame da gaiola, outra furou o olho do peixinho vermelho e ainda escreveu também que beijo de virgem é mordida de bicho cabeludo, que o senhor gritou vinte e quatro horas e desmaiou feliz.”

O escritor sorriu com o canto dos lábios. Eram tudo memórias de alegria, como escrevera Camões, agora apresentado nos cursinhos com o pseudônimo de Paulo Caolho para ver se os alunos se interessavam pelo vate renascentista. Que pena que a moça não tivesse lido o fim do mesmo conto: “não posso ter dó de mim, daí estou perdido, o amor é uma corruíra no jardim — de repente ela canta e muda toda a paisagem”. Os amigos acharam, depois de longas discussões sobre o canto do pequeno pássaro, que o mais acertado na segunda edição seria escrever que a corruíra trina.

Foi lida a última condenação. Era do alcaide. O senhor escreveu, disse ele mascando os esses para fora da boca, vou ler ipsis litteris: “dá uivos, ó Rua 15, berra, ó Ponte Preta, uma espiga de milho debulhada é Curitiba: sabugo estéril”. E, para ser breve como senhor gosta, digo que escreveu também que “Curitiba é província, cárcere, lar”. “Dixi”. Pelo menos, sabia latim. Todos escrevem “dixit”, como se fossem terceiras pessoas.

Foi lida a sentença. O carrasco perguntou a Dalton Trevisan, tirando-o do silêncio obsequioso que lhe fora imposto por estranhas autoridades que manipulavam, como sempre, a turba presente: “qual é o seu último desejo?”

— Viver, disse o escritor.

Como se tratasse de diálogo do pescoço com a forca, ele não pôde ser tão lacônico como no papel e reiterou, olhando distraído para o capuz do carrasco: “o meu último desejo é viver”.

A surpresa final foi quando o carrasco tirou o capuz e disse: “então, vai, anda, vai viver; aliás, vamos começar com uma coalhada com mel na famosa confeitaria”.

O espetáculo foi muito aplaudido. No papel de Dalton tinha atuado Dante Mendonça, desta vez sem palitos nas mãos, herança perdida de quando começou sua frustrada carreira de ator na década de 1970, no Teatro Paiol, em Doce Primavera, de Manoel Carlos Karam. A seleção de frases de Dalton tinha sido feita por Miguel Sanches Neto e Valêncio Xavier. Maí Mendonça ia fazer o papel de Ritinha e José Ghignone o de Nelsinho, mas ela teve que levar os filhos para Nova Trento, deu uma enchente e não pôde voltar a tempo, e seu José tinha tirado o bigode. O célebre livreiro ofereceu-se para ser Pio XII, mas disseram-lhe que o Papa não era personagem de Dalton. Ghignone ainda replicou: “eu poderia dizer aquelas poucas palavras que o Pontífice pronunciou ao receber certa delegação diplomática brasileira: ‘língua bonita o português: saber, sabor, sábio, sabiá’”. O diretor, José Nélson de Freitas, não aceitou. E morreu depois disso, mas não por causa disso, morreu por causa de Teresa, mas esta é outra história. E em algum momento, se não interrompermos, seremos interrompidos. Eu só tive tempo de enviar um telegrama a Dalton Trevisan, uma frase de John Updike, que me fora passada por Rubem Fonseca: “a celebridade é uma máscara que come o teu rosto”.

*escritor e professor universitário, Deonísio da Silva é catarinense, mas morou e namorou em Curitiba, onde se casou na Igreja das Mercês. Sua filha, Manuela, foi batizada pelo padre Affonso de Santa Cruz na Igreja do Rosário. Nos tempos de seminário, ele leu dez vezes o livro Despistou Mil Secretas, da autoria daquele padre que ele encontrava tantos anos depois. Quando publicou seu primeiro conto, que lhe rendeu a condenação a dois anos de prisão, morava no Paraná e respondeu a inquérito na Polícia Federal, nos altos da Rua 15 de Novembro. Anos depois soube que Dalton Trevisan morava ali pertinho. Considera Dalton o maior contista do mundo e o lê quase todos os dias, junto com a Bíblia, Machado, Borges e poucos mais dignos de releituras.

Deonísio da Silva

É escritor. Autor de Avante, soldados pra trás, entre outros

Rascunho