A estremeção do padre colorado

Conto inédito de Lourenço Cazarré
Ilustração: Carolina Vigna
10/08/2018

— Tu, Negãozinho? Não me vem!
— Venho. Até fiquei chapa do padre.
— Tu tá brincando? Tu, Negãozinho, nem pintado!
— Se eu tô te falando é porque foi.
— O que é um padre ia tratá contigo, Negãozinho? Comprá maconha?
— Nem tinha disso naquele tempo. Meu negócio era ovelha, cara. Carneava e vendia.
— O padre comprava de ti?
— Não, seu burro! Fiquei amigo dele na cadeia.
— Ah, aí é outra coisa. Mas o que é o que padre fazia lá? Rezava pros preso?
— Não! Tava condenado. Como nós.
— Não me enrola!
— Te juro! O padre também tava encanado.
— Mas por causa de quê?
— Não sei direito. Parece que era meio comunista.
— Olha: eu sou grosso, grosso mesmo! Mas se tem uma coisa que não existe é padre comunista. Minha mãe que me ensinou isso.
— Mas era, dizem. Usava até camisa vermelha.
— Vai vê que era colorado.
— Colorado em Bagé? Tu tá é lôco!
— Mas tu foi preso também em Bagé, Negãozinho?
— Em Bagé, Lavras, São Gabriel e agora aqui. Lá me pegaram com meia ovelha na cacunda. Não deu pra menti.
— Mas em que ano foi isso?
— Que te interessa?
— Pode sê que seja que tu tá me mentindo.
— Tô nada. Era setenta e pôco.
— Tu tá com quantos anos agora, Negãozinho?
— Cinquenta e nove.
—Mentira!
— Sessenta e pouco, vá lá que seje.
— Volta pro padre.
— Gente boa.
— Mas como é que tu ficô amigo dele?
— Fiquemos na mesma cela.
— Um padre e um chinelão?
— Foi o que aconteceu.
— Mas por que tu foi pará na cela do padre?
— Porque eu era o mais guri dos preso. E tinha pena baixa. Abigeato. Não iam botar com ele um condenado de crime doloroso.
— Aí até faz sentido.
— Gostava de bola o padre… Jogava direitinho.
— Para de me atochar, Negãozinho! Além de comunista, jogava bola?
— E não era pouca. Chutava forte e não tinha medo de coice.
— E tu, jogava?
— Eu ciscava direitinho, na frente. Batia bem de canhota.
— Jogasse com esse padre?
— Só uma vez. Contra. O danado tentou me dá um balãozinho.
— E tu?
— Bah, sentei-lhe um pataço nos bago! Fechô o tempo. O padre veio babando pra cima de mim. Tiveram que apartá.
— Quem ganhou?
— Nós. Com um golo que fiz de mão no finalzinho. Foi por isso aí que o padre me pegô pra courinho. Naquela noite ele me chamou na chincha. Só os dois na cela, ele disse que o que eu tinha feito era muito feio. Pecado brabo. Mas eu falei que era só futebol. Ele não se deu por convencido. Queria que no outro dia eu dissesse, na hora do almoço, pra toda a cadeia, que a gente tinha ganhado na malandrage. Eu disse: isso eu não faço, seu padre, nem morto. Mas Deus viu que tu robô no jogo, Hermenegildo. É, eu disse, mas Deus não vai se incomodá por uma mixaria dessa…
— Bah, mas tu errô feio, Negãozinho! Deve de ser um tri pecado enganar um time dum padre.
— Mas ele era meio comunista, eu já te disse.
— Quer dizê então que tu não confessô que fez o golo de mão?
— Confessei.
— Ah, para com isso! Tu qué me deixá lôco? Te explica!
— Aí tem um detalhe. O nosso jogo foi num sábado. Quem ganhava ia pra final, no domingo. O time do padre ficou de fora. Por isso, de noite, ele me aporrinhou com o negócio do pecado. Foi me enchendo, me encheu tanto até que eu disse: tá bem. Aí no domingo, na hora do almoço, eu levantei na mesa e falei bem alto: a gente ganhamos na sacanage. Fiz golo de mão. Deu um baita rebu. Mas o time do padre foi pra final. E acabaram ganhando o campeonato da cadeia.
— E os caras do teu time?
— Ficaram puto. Até tomei uns tapa.
— Bem feito!
— Bem feito nada! Eu só confessei depois que o padre me deu o sacramento.
— Que sacramento?
— A estremeção.
— Estreme o quê?
— Estremeção é o que fecha o corpo do cara.
— Como é que foi?
— Como eu já te disse, o padre ficou insistindo, insistindo: que o time dele era melhor, que a gente tinha ganhado no rôbo, que aquilo era uma vergonheira. Lá pelas tantas me veio uma ideia. Eu disse: confesso, mas tem uma coisa. Que coisa, Hermenegildo? Ele só me tratava pelo meu nome. Eu quero o sacramento, seu padre. Que sacramento, Hermenegildo? Nunca que ele me chamou de Negãozinho. A estremeção, para o cidadão que vai morrê, seu padre. Mas tu não vai morrê ainda, tu é um só um guri, Hermenegildo. Que guri que nada, seu padre, eu tô é jurado. O senhor conhece o dom Romário? O fazendeiro castelhano, Hermenegildo? Esse mesmo. Pois é, seu padre, ele me jurou. Só porque eu carneei umas ovelha dele. Mandou me avisar que vai pagar um cara pra me fazer o serviço aqui dentro da cadeia. Disse que vão botar as minhas tripas pra fora, que vou sangrá mais que dez ovelha. Não demora e eles vão me defunteá. Tá bem, Hermenegildo, me disse o padre, eu te confesso e te dô depois uma benção. Benção eu não quero, seu padre. Só me serve a estremeção. Aí, quando eu morrer, tanto faz quando for, já tô santificado. Bah, o padre ficou puto dentro das calça. Porque tem mais isso: não usava batina. Ele ia de um lado a outro, como tigre de circo, pensando. Pensando e me olhando de atravessado. Lá pelas tantas ele arreglô: tá bem, Hermenegildo, eu vou fazê o que tu tá me pedindo, mas em troca tu vai confessá o gol de mão. Confesso. Aí ele pegou um livrinho grosso e leu numa língua estranha…
— Devia de ser latim!
— No fim, ele fez um pelo-sinal na frente da minha cara e disse: tá consumado. Depois disso, Murcilha, eu e padre fiquemos amigos.
— Mas foi mutreta! Tu só te mete em rosca, Negãozinho! Contigo nada nunca é no branco e no preto. Tu passô a perna no padre!
— Por isso é que eu te disse que tenho o corpo fechado, Murcilha. E não foi trabalho de mandinga, como tu disse. Foi a estremeção do padre.
— E se o padre te enganou, Negãozinho? E se ele não fez a reza certa? Tu mesmo disse que não entendeu o que ele falô!
— Como é que ele me enganô, Murcilha? Sete condenação, vinte e oito anos atrás das grade e eu ainda tô vivo até hoje. E tem mais: nunca me enrabarô!

Lourenco Cazarré

É jornalista e escritor.

Rascunho