Achei graça quando marcaram a entrevista. Não pelo interesse no que tenho escrito, isso até me deixa lisonjeado. É que quando me ligaram para agendá-la, disseram-me que o jornalista que me entrevistaria se chamava Tiago Velasco. Pensei que fosse piada, algum pauteiro brincalhão. Ri. A pessoa do outro lado fez questão de reforçar que não se tratava de pilhéria a coincidência entre os nomes.
Fiquei espantado quando abri a porta do meu apartamento e dei de cara com o jornalista homônimo. Parecia comigo uns dez ou quinze anos atrás. O cabelo liso, a barba aparada como eu a usava em outras épocas, o tênis Adidas preto com listras brancas, a mochila suja nas costas. Era como aquele velho escritor argentino conversando com ele mesmo, meio século mais jovem, em um banco de Genebra ou Cambridge. Não sei qual foi o sentimento do repórter, se houve alguma identificação ou não. Seguiu o protocolo jornalístico e nada me confidenciou, mantendo a relação entrevistador-entrevistado sob uma distância segura, talvez por medo de perder a objetividade que exigem em sua profissão.
Sentamos ao redor da mesa da sala em lados opostos. Ele sacou o celular e o apoiou sobre a mesa. É para gravar a conversa, o senhor se importa? Senhor? De onde ele tirou tal formalidade? Pode me chamar de você, não temos tanta diferença de idade assim. Ele riu e anunciou que iniciaria a entrevista. Concordei, embora não estivesse nada confortável em ser entrevistado por um sujeito que era a minha cara e, pior, com o mesmo timbre rouco que o meu (sempre odiei ouvir minha voz quando digitava a gravação das entrevistas, dez ou quinze anos atrás).
TV: Vamos começar: o texto que li, e sobre o qual vamos falar, é a sua tese de doutorado em Letras na PUC-Rio. Como tese, poderíamos dizer, é um formato um tanto quanto inusitado e
TV: Desculpe te cortar, mas é que se você desenvolver todo o raciocínio, quando eu falar já terei esquecido e acabarei reforçando a ideia que você já tem preconcebida. Sei que em uma entrevista supõe-se que eu aguarde o término da pergunta para responder, conheço a dinâmica, fui jornalista como você. Depois você edita e faz parecer que eu aguardei a pergunta. Você falou que o formato da minha tese é inusitado…
TV: Perdão, mas não é? Digo, não vemos muitas teses assim.
TV: Creio que o mais correto seria dizer que não é o formato mais usual. Na PUC-Rio mesmo é recorrente, não somente teses como dissertações. Várias universidades já aceitam teses em formato de textos poéticos. Inusitado dá um tom de exotismo um pouco pejorativo.
TV: Desculpe, não foi a intenção. Como, então, o senhor, desculpe novamente, você, classifica a sua tese?
TV: Diga-me você, como a classifica.
TV: Quem está entrevistando sou eu, é melhor eu guardar para mim o que penso.
TV: Entendo, mas não acredite que a sua forma de pensar não vá deixar rastros. As perguntas, as edições posteriores, as escolhas que terá que fazer para apresentar esta entrevista, até mesmo a escolha das palavras, como você disse agora mesmo, “inusitada”, carregam marcas de sua visão de mundo. É possível percebê-las sob a retórica de neutralidade jornalística… Mas faça a sua pergunta.
TV: Para mim, que estou fora da academia, a sua tese parece inusitada. E você, o que pensa sobre o formato dela?
TV: Talvez você esteja certo, por estar fora da academia, mas estando dentro, percebemos que “inusitado” é uma palavra muito forte. O termo que uso é “inespecífico”. Parte relevante da produção literária e artística contemporânea vem justapondo uma série de formatos textuais distintos, como e-mail, contos, ensaios, autobiografias, entrevistas, desenhos, teoria, fotografias etc., de modo a gerar algo híbrido, sem gênero definido. Claro que há problemas. Ao chamar o texto de inespecífico, acabo botando ele em algum lugar, mesmo sem determinação clara. Dificuldades que a linguagem impõe a quem a utiliza.
TV: Ufa, conseguimos sair da primeira pergunta da minha pauta.
TV: Não comemore ainda.
TV: Sim, claro. Melhor prosseguirmos. Por que escrever a tese nesse formato… inespecífico?
TV: E por que não?
TV: …
TV: Como você deve ter lido, foi uma sugestão da minha orientadora após ler contos de minha autoria. Ela achou que seria interessante uma tese em que se aproveitasse o estilo de escrita que o senso comum costuma atribuir à ficção. O movimento seria o de estetizar a escrita teórica de maneira análoga à absorção da teoria pela escrita ficcional. É também uma forma de questionar a tradicional narrativa totalizante de uma tese — uma tentativa, na forma, de materializar a não fixação de sentido, do autor como legitimador do discurso —, da identidade como uma construção processual e também de mostrar como as fronteiras de gênero estão em constante deslocamento. Você leu a minha tese. Quantas outras já leu antes?
TV: Já li trechos de três outras.
TV: Mas a minha você leu toda?
TV: Sim, até o fim.
TV: Tá vendo? Quando damos um tratamento ficcional, conseguimos atrair leitores que gostam de literatura, mas que não necessariamente leriam teoria; ao mesmo tempo, é um texto que também seduz leitores habituados à teoria. A vantagem, e também o desafio, talvez seja essa possibilidade de conquistar leitores que a princípio não se sentiriam atraídos pelos mesmos textos.
TV: Você está falando de ficção, mas a tese é basicamente uma autobiografia. Um pouco torta, mas uma autobiografia.
TV: A imagem de uma tese torta me interessa. Se você a enxerga como autobiografia, é uma autobiografia torta; se você a enxerga como ficção, uma ficção torta. Se algo se mantém, é a tortuosidade. Quando contamos algo, temos que adequar a uma narrativa. E se eu quero seduzir os diferentes tipos de leitor, vou também usar estratégias que sirvam para mantê-los interessados. Isso quer dizer que as estratégias narrativas empregadas me deixam desconfortável para apontar de forma clara a distinção entre os gêneros. A escrita cria uma outra vida, construída no próprio momento em que as palavras vão para o papel. O Tiago no texto e o Tiago que escreve o texto são demasiadamente diferentes e demasiadamente semelhantes. Como o texto é feito em um momento diferente da experiência vivida, é impossível que esses dois Tiagos sejam a mesma pessoa. O homem de ontem não é o homem de hoje, disse um daqueles gregos antigos. A nossa conversa deixa isso óbvio, não?
TV: Não sei se entendi.
TV: Não se preocupe, parece que me perdi nas associações. Ficção é algo nebuloso. Ela pode ser entendida de várias formas. Há a ideia geral de que ficção é uma invenção. Podemos também pensar em termos de construção, de um artifício, como é o próprio processo de entrevista. Há também aquelas ficções do cotidiano, ficções sociais que são apenas consensos entre as pessoas, simplificações necessárias para que possamos conviver em sociedade.
TV: Acho que me confundi novamente.
TV: Ah, é como falar que você é jornalista.
TV: Mas eu sou.
TV: Sim, claro, mas você não é apenas jornalista e nem todos os jornalistas são iguais. Essa é a sua profissão, parte da sua vida. Em determinados momentos, pode ser útil você se definir como jornalista, em outros, talvez não faça sentido algum. Isso quer dizer que quando você se define como jornalista, você aceita ser reduzido a uma profissão. Aqui, nesta entrevista, é um momento em que ser jornalista é essencial para que ela possa acontecer, independentemente de todas as suas outras versões. Essa simplificação é uma ficção. Jornalista é apenas uma de suas performances sociais encenadas no dia a dia dentre outras.
TV: Isso quer dizer que tudo é ficção?
TV: Não disse isso, seria leviano se fizesse uma afirmação categórica desse tipo. Depende de como você entende ficção. Você estava falando que escrevo uma autobiografia torta. E eu te pergunto, como você pode distinguir a autobiografia de uma ficção? Não tem nada no texto que permita. Se você pegar qualquer volume da série Minha luta do Karl Ove, é possível me garantir que ele está narrando o que aconteceu na vida dele? Como ele lembra do sol que entrava pela janela quando tomou um copo de água após uma briga com o pai trinta anos atrás? Ou mesmo da temperatura da água enquanto escovava os dentes antes da partida de futebol? Ele não lembra, claro. O que ele faz é tentar criar um clima que, este sim, é o que ele quer narrar e que condiz com o ambiente e com o personagem. O que ele faz é contaminar a autobiografia com a ficção e vice-versa. Tudo só vivido seria monótono; tudo só imaginado seria cansativo.
TV: Ah, eu tinha anotado essa sua última frase, você a utiliza na tese.
TV: Li num livro. Gostei. Depois que escrevi na tese, passou a ser minha.
TV: Isso é plágio, não?
TV: É como samplear um trecho de uma canção e inserir em uma que está compondo. É uma apropriação. Ao mesmo tempo em que faz referência ao texto original, há o diálogo com o novo texto no qual ela está inserida, modificando-a. É um movimento duplo. Há várias partes assim na tese, e até mesmo nas minhas respostas nesta entrevista.
TV: Você pode apontar onde fez isso aqui na entrevista?
TV: Não gostaria — e talvez nem conseguiria. O que está no papel é uma coisa nova, diferente daquela a que possa fazer referência. Aqui também: se eu utilizei o que li para responder, por vezes reproduzindo palavra por palavra, agora elas fazem parte do meu repertório e também são minhas. É um trabalho de seleção, reordenamento, enfim, de criação. É muito difícil saber a origem das coisas. E nem acho que vale a pena perder esse tempo.
TV: Ah, assim como você fez com Roland Barthes por Roland Barthes?
TV: Justamente. Precisei escrever no papel, marcar com a minha própria mão para que as palavras dele pudessem também ser minhas. Naquele caso, foi algo do corpo mesmo, de precisar sentir nos dedos que eu estava construindo aquelas palavras.
TV: Você disse que gostaria de ter escrito esse livro do Barthes.
TV: Sim, acho Barthes impressionante. As ideias, a forma com que escreve. Sinto inveja de Barthes.
TV: Inveja não é um sentimento ruim, daqueles que a gente se envergonha? Por que revelar esse tipo de sentimento?
TV: Ah, acho que só é ruim para os que querem ser canonizados, para os que se preocupam com a posteridade. Não creio que isso faça muito sentido. Se canonizado após a morte, nunca saberá que o foi; se canonizado em vida, é como se tivesse morrido precocemente, antes mesmo de o coração parar.
TV: Vamos falar um pouco sobre o formato da tese. Você a dividiu em três partes majoritariamente retrospectivas e uma outra parte que permeia o texto, narrada no presente. Além disso, há os fragmentos, as interrupções deles no meio do período. Fale um pouco sobre essas escolhas.
TV: Rapaz, vou ficar te devendo. Já falei mais do que gostaria. Não quero facilitar muito a vida dos leitores. Leitor que tem vida mansa é como aquelas pessoas que ficam sentadas no sofá domingo assistindo a programas de auditório. Quero que meus leitores trabalhem. “Quero que os meus leitores trabalhem” é uma boa frase para fechar a matéria, né?
Percebendo que seria impossível tentar me demover, Tiago Velasco concordou e desligou o gravador, reuniu seus pertences na mochila e se levantou da mesa. Levei-o até a porta de saída.
— Foi um prazer te conhecer. Aviso quando a entrevista for publicada — disse o meu entrevistador.
— Agradeço. O prazer em revê-lo é todo meu.