Es kommen härtere Tage
[Dias mais difíceis virão],
Ingeborg Bachmann
Para ser lido ao som de “Der Abschied”, de Gustav Mahler
Sei que meus poucos amigos e amigas ficarão chocados com este derradeiro post. Paciência. Não é apenas a eles e elas que me dirijo, já que meu perfil nesta rede social é público. Preciso contar parte de minha história, não para me justificar, mas para dar alguns esclarecimentos. Acredito em testemunhos, amo os documentários em que as pessoas falam de suas experiências, boas ou más. Porém não sou escritor nem filósofo, não esperem de mim nenhum discurso sublime: palavras, palavras, palavras. Me limitarei ao essencial. Meditei muito nos últimos anos, meses, semanas, dias, horas, minutos, segundos, não tenho desejo de recuar da decisão tomada. Tudo começou alguns anos depois da morte de meu companheiro. Até então eu era bastante saudável, sem ser atleta, praticando musculação três vezes por semana numa academia próxima de casa. Sou um homem de mentalidade mediana, dotado de inteligência suficiente para me tornar funcionário do Banco Central, onde exerci cargo de confiança bem remunerado. Meu negócio são os números e não as letras. Sou hábil em assuntos de contabilidade e finanças, raramente utilizo máquina para meus cálculos. No entanto, dividi o mesmo teto durante vinte e dois anos com um professor cultíssimo da Universidade Federal, com quem aprendi muito por simples convivência e algumas leituras por ele sugeridas. Não chegamos a nos casar, pois não viveu o suficiente para alcançar sequer o contrato de união estável entre iguais, que já nos daria alguns direitos. Foi, contudo, um relacionamento pleno: tínhamos a mesma idade, nos conhecemos em torno dos dezoito anos e passamos a morar juntos logo que assumimos empregos regulares. Tivemos uma vida em comum tranquila, meu temperamento moderado conseguia acalmar suas grandes ansiedades. Ele fomentava muitos projetos, imaginava livros fabulosos, que não conseguia escrever, mas tinha fama de excelente professor de língua e literatura italiana — seus avós foram imigrantes da Úmbria, e ele aprendera o idioma em casa com os pais perfeitamente bilíngues. Viajamos diversas vezes à Europa e conhecemos quase toda a Itália, inclusive visitando seus parentes, branquíssimos como ele próprio. Já eu sou um mestiço nato da capital baiana, que nunca perdeu o sotaque. Alguns me veem como “mulato” (palavra hoje proibidíssima), com traços afrodescendentes, brancos e indígenas, outros como simplesmente moreno, e mais outros como negro; ter cor definida se tornou para muitos uma questão de morte ou vida. Pouco me importam as qualificações, porque raramente fui interpelado de forma racista; que eu lembre, apenas duas ou três vezes, nada muito relevante se comparado aos negros da periferia, que morrem todos os dias de bala, tortura ou fome. No sul da península da bota, muitos me viam como um tipo italiano, e me reconheci em alguns homens de mesma cor da pele, com quem cruzamos. Todo o mediterrâneo é muito mestiçado, embora nem sempre se reconheça isso. Sou filho de um pai negociante abastado, o que me permitiu estudar em bom colégio particular de Salvador e depois vir fazer faculdade de economia no Rio, onde assim que cheguei encontrei o futuro marido — sempre o considerei desse modo, a despeito de não ter havido cerimônia oficial. Logo em seguida meu pai morreu, deixando uma boa herança, com a qual comprei o grande apartamento onde fomos morar em Ipanema, no décimo quinto andar de um prédio luxuoso, com vista para o oceano sem fim. Meu irmão passou a tomar conta dos negócios, e durante alguns anos me enviava rendimentos, depois parou. Não reclamei porque, nesse meio tempo, entrei para o Banco e, junto com o salário de Sandro, pudemos levar uma vida extremamente confortável. Não sou ambicioso. Além da Europa e da maior parte dos estados brasileiros, rodamos pelas Américas de sul a norte, fomos ao Marrocos e ao Egito, dois países de meus sonhos: o deserto era para mim um grande mistério, que, apesar da visita, permaneceu intocado — os dias tórridos e as noites gélidas do Saara estão entre minhas mais pungentes lembranças dessa bela época que gozamos. Atravessamos a África do Sul e a Angola do pós-guerra. Conhecemos também um pedaço da China, com sua Grande Muralha, bem como grande parte do Japão. Por fim, noutra ocasião passeamos pela Austrália. Demos a volta ao mundo em duas décadas. Pensamos em adotar um ou dois filhos, mas pressentíamos que perderíamos a grande liberdade de viajar quando e para onde quiséssemos. Pode ter sido simples desculpa, o tempo passou e o sonho de sermos pais foi enterrado sem remorsos. Tenho sobrinhos lá na Bahia que me dão atenção, embora os veja pouco, somente quando vêm a passeio no Rio. Com eles, obtenho alguma dose de afeto quase filial. Quando completamos quarenta anos, Sandro adoeceu de câncer no pâncreas e faleceu em poucos meses. O universo inteiro desabou em torno e dentro de mim. Passei meses de depressão profunda, pedi licença do trabalho e me tratei com psiquiatra. Não pensei naquela época em morrer, me recolhi num limbo, em que nem mesmo sentia dor, imerso numa anestesia permanente, a qual me tirava o apetite e todas as energias. Foi o homem de minha vida, não concebia viver sozinho nem arranjar um substituto. Depois de um ano, voltei ao Banco, com medo de ter forte redução salarial se continuasse ausente. Foi bom, me entreguei de alma, corpo e membros ao trabalho, virei funcionário exemplar, daqueles que ficam depois do expediente sem exigir hora extra. Ascendi meteoricamente na carreira e passei a ganhar muito mais. Após três anos da perda amorosa, conheci um rapaz de uns trinta e poucos, com quem tive um curto relacionamento. Na hora de fazer amor, vinha a imagem do outro. E desde então é sempre assim: a figura dele me aparece como uma alucinação, instalando-se entre o eventual parceiro e eu mesmo, quase reencarnando no momento e no lugar inadequados. Depois de algumas tentativas frustradas, desisti de namorar quem quer que fosse, no máximo aceitei transas casuais, marcadas por aplicativo em algum hotel do centro. Foi quando comecei a sentir dores intensas, a princípio nos músculos, depois também nos ossos, me automedicando com anti-inflamatórios. Não dando mais conta sozinho da situação atroz, procurei um especialista. Diagnóstico: enfermidade degenerativa irreversível. O universo voltou a entrar em convulsão, dentro e fora de mim. Desde criança, nunca aguentei bem as provações físicas. Li em algum livro, que Sandro me emprestou, a seguinte frase, creio que de um autor francês: “Sofrer é embrutecedor”. Poupo meus eventuais leitores e leitoras de detalhes, narro por alto, tudo o que posso dizer é que sou um corpo que dói. Oitenta por cento do tempo me doo todo, os medicamentos e um pouco de sono são responsáveis pelos vinte por cento indolores. Faz alguns anos que não tenho sensação alguma de prazer, apenas de alívio quando os males dão trégua. Isso para mim não é viver. A única diversão é postar aqui algumas das belas fotografias que tiramos nas viagens pelo globo, recebendo curtidas e alguns comentários elogiosos — meu público quase anônimo, pequeno e fiel. Busquei terapias alternativas, acupuntura, medicina chinesa, hindu, africana, simpatias, banhos de ervas, homeopatia, tudo o que me recomendaram, nada fez efeito. No centro de tudo, como potência cósmica, somente ela, a Dor. Motivo pelo qual me decidi pelo autocídio; evito o termo clássico de propósito, pois vem cheio de uma carga moralista insuportável. Se você é católico, pentecostal, adventista, espírita, budista, xintoísta, xamã, adepto de macumba, ou de qualquer outro culto, não desperdice seus juízos morais. Apenas se for capaz de sentir comigo a dor que deveras sinto poderá entender e quem sabe aceitar meus argumentos. Me acompanhe, portanto, com atenção e paciência, como deve ser sempre a leitura dadivosa. Não sou um bruto materialista, apenas alguém que não tem religião, embora nascido em família bastante católica. Amo a vida acima de tudo, tirei o máximo proveito dela enquanto meu amado viveu, sofri o inferno com sua partida, mas sobrevivi. Agora ninguém pode me obrigar a suportar até o fim esse sofrimento desmesurado, que só faz aumentar, dia após dia. Sou muito racional, porém não desprovido de sensibilidade. Não se deixa um animal sofrer até o fim, praticando-se o sacrifício quando sua moléstia não tem solução — por que se deveria deixar um humano viver sem esperança, penando como um condenado aos piores suplícios? Não nasci para me resignar à via crucis deste meu corpo! Penso que falta piedade aos que se declaram cristãos e repudiam as mais do que justificadas decisões alheias, como se fossem o maior pecado. Até mesmo Jesus teve seu momento de dúvida: Pai, por que me abandonaste? Completo a frase: se sabias que não sou Deus?! Se Ele não era, imaginem eu?! Peço-lhes apenas um pouco de… humanidade. Defendo apaixonadamente o direito à morte em certas circunstâncias, como defendo o direito à vida. Um homem, uma mulher, qualquer vivente, deve ter o direito de findar quando lhe faltam os recursos para viver bem, sem dores exacerbadas e com dignidade. Faz alguns anos estou recluso com três cuidadoras que se revezam nas vinte quatro horas dos sete dias semanais. Poucos amigos me visitavam, eram mais de telefonar ou de enviar mensagens pelo celular; com um deles costumava conversar às vezes por vídeo, da mesma maneira que com os sobrinhos. Todos à distância. Como verdadeira companhia, somente a Dor. Depois da pandemia, tudo piorou, as pessoas se fecharam ainda mais, os telefonemas, mensagens e bate-papos minguaram de repente. Também não sinto vontade de falar, pois virei monotemático, nem eu mesmo suportaria alguém que só sabe reivindicar o direito a morrer quando bem desejar. A política nacional e mundial agravou meu desgosto: quem imaginaria, décadas atrás, que algumas das maiores nações estariam hoje tomadas por governos extremistas, que só pregam o ódio xenofóbico, racista, misógino, homofóbico, etc.? Como era previsível já há algum tempo, a Amazônia e o Pantanal neste momento em que escrevo queimam, a Califórnia também arde em chamas, o mesmo acontece durante os verões de alguns países europeus, como em Portugal e Espanha, e até na Argentina e na Austrália. Enquanto isso, os polos derretem, a Sibéria superaquece, e é somente o começo do horror — por deliberação humana, as forças da destruição se apossaram do planeta. Tudo muito natural. Parece que a maioria da humanidade resolveu praticar o suicídio coletivo… Nunca fui politizado mas tenho aversão ao autoritarismo, pois cresci numa ditadura e conheço a falta de liberdade. O horizonte asfixiado destes tempos me tornou ainda mais sombrio. Tampouco gosto da palavra “eutanásia”, que quer dizer “boa morte”. Não existe morte boa! Nem ruim! Depois que se parte, o ato de morrer perde todo sentido ou valor. Para mim, tudo acaba, viramos pó, névoa, nada. Adão foi o primeiro boneco de barro, Eva foi sua companheira, feita de mesmíssima matéria. À lama original voltaremos todos e todas, sem salvação. O que existe, sim, é morte mais ou menos dolorosa, mais ou menos prolongada — algumas parecem não chegar nunca, por mais anunciadas, sem que nenhuma autoridade ateste o ponto final. (A existência de uma pessoa pode ser contada a partir dos inúmeros documentos oficiais: registro de nascimento, atestado de vacinação, certidão de casamento, comprovante de residência, diplomas de todo tipo, escritura de imóveis, petições, certificado de idoneidade financeira e/ou moral, procurações… até chegar a vez da geralmente indesejada certidão de óbito. Depois que me aposentei por invalidez, todo mês de meu aniversário sou obrigado a entregar minha “prova de vida”, um documento assinado de meu próprio punho, me autodeclarando “vivo”. Muitas reticências nisso… É um dos poucos momentos em que saio de casa, não imagino que alguém possa fazer a declaração em meu nome. Não tem como passar uma “procuração de vida” para um parente, amigo ou advogado, ninguém pode se apresentar “vivo” em meu lugar. Faço então o sacrifício. Só espero que não me peçam uma “prova de morte”, quando tudo terminar — já imaginou a assombração voltando para dizer ou escrever Ex-me aqui?! Seria hilário, não fosse tenebroso.) Se pudesse iria para a Suíça, a fim de alcançar o repouso imediato e definitivo, segundo minha vontade. Mas a burocracia para obter essa licença especial é imensa, e com esse governo neofascista que temos, se tornou impossível. A morte assistida nos casos terminais deveria ser um direito irrevogável de qualquer cidadão. A responsabilidade incumbiria ao Estado, com o consentimento do maior interessado, no caso, eu mesmo. Sei que no momento isso é utópico, daí resolvi tomar as rédeas de meu destino nas mãos. Descobri na internet uma nova droga, que extermina o usuário de modo fulminante. O efeito leva uns dez minutos para ocorrer, antes disso nada acontece, nenhum sofrimento, só a espera do momento liminar, a última fronteira. Tomarei alguns soníferos poderosos, junto com a pílula fatal, e deixarei que o veneno atue durante o sono. Não gostaria de assistir ao espetáculo do instante de minha morte, o pífio grand finale — é preciso muita fantasia para acreditar no final grandioso de um indivíduo comum. Nas cirurgias a que fui submetido, desejei fervorosamente que não despertasse depois de passar o efeito da anestesia. Não temo aquele “país não descoberto”, do qual fala uma peça de Shakespeare, que vi no Teatro Casa Grande com Sandro, creio ter sido o Hamlet. Não há país nenhum mais além, nem mesmo há paz, nem o vazio, o qual ainda seria alguma coisa. Nada, tudo acaba no Nada. Esse Nada absoluto que é, provavelmente, o mais difícil para nós imaginarmos. Mas há: Nada de nada vezes nada. Porém não quero servir de exemplo a ninguém, minha vida é inexemplar (se o adjetivo existe), a experiência só serve para mim mesmo. O sentido do viver me escapa em definitivo. Pouco importa, existir foi sempre para mim uma arte do improviso planejado. Quando tentei driblar o acaso, ele me passou a perna, e desabei. Seja como for, me reconheço até certo ponto como bon vivant, que já não deseja sobreviver. Na juventude, condenava o suicídio, achava uma covardia; hoje o compreendo em toda sua extensão, mas penso também que muitas vezes pode ser evitado. Meu autocídio terá uma finalidade precisa — acabar com o sofrimento extremo e gratuito, quando não há mais cura. Cada caso é um, nenhuma existência pode ser medida por outra. Repito: suspendam vossos julgamentos, a responsabilidade dos atos só recai sobre meus ombros. Por vício de profissão, contabilizo tudo, entretanto não estou certo se o saldo final é credor ou devedor. Em meu livro de razão, o balanço geral aparece como positivo. Sei, todavia, que a conta não fecha nunca, pois falta a visão do orçamento geral, dos custos imprevistos, das dívidas ignoradas (aquilo que se deixou de fazer, e depois acaba sendo tarde demais). Já não importa, abro mão do cálculo exato, que é mesmo inviável. Nem o maior matemático conseguiu equacionar sua própria existência. De qualquer modo, como já deixei claro, o resultado para mim é sempre noves fora ZERO. Me desculpo pelo longuíssimo texto sem pausas nem respiros, que preferia ter resumido em poucas palavras, mas a gente se excede por força da paixão, e a minha é sair de cena o quanto antes. O resto, silêncio. Era só isso o que tinha a declarar. Finalmente, depois de muitos anos sofridos, terei alguma satisfação: em minutos será realmente o ansiado FIM.
P.S.: apesar da amargura manifesta nas linhas acima, guardo esperanças de que a humanidade encontrará uma saída para seus impasses. Dias piores ainda virão, e aí quem sabe chegará também a Idade da Razão (rima involuntariamente pobre).
P.S. 2: não terei tempo para ler os comentários a esta postagem. Não adianta apelar para sessão espírita a fim de contestar ou apoiar minha atitude — como deixei claro, a existência póstuma é um mito…
(15.09.20)