A decisão

Conto de Lílian Ávila
Tonga seria algo entre o primitivo e o confortável. Entre o azul e o dourado.
01/06/2024

Emílio decidiu-se por Tonga. Não, Tonga não era uma suposta namorada ou um exótico prato de restaurante. Era um lugar. Para ele, o melhor lugar. O único lugar. Mas onde era Tonga? Não sabia, só ouvira o nome. Gostara. Parecia longe, bem longe. Um desses lugares dos quais se diz onde Judas perdeu as botas ou o vento faz a curva. Já se via em Tonga. Sim, cidadão de Tonga, com todas as regalias dos cidadãos de Tonga. Não sabia quais seriam, mas imaginava que um lugar tão longe e com um nome desses devia ser cheio de regalias.

Decisão tomada à noite, na cama, enquanto olhava o teto e escutava Caetano. Baixinho. Quase um sussurro nos ouvidos. Levaria quase nada. Documentos, alguma roupa. Sempre algodão branco, admitindo alguma estampa em tons de verde. Abandonaria tudo em favor do menos. Havia possibilidades para um computador, jamais um celular. A casa com janela aberta, nada de trancas, nem cerca, nem alarme, nem firma de segurança. Muito menos circular de condomínio. Um bangalô singelo à beira da restinga, mistura de troncos com palha e sem telha. Para quê? Telhado só quando a gente precisa estar seco, passado, engomado, esticado, o que não seria o caso em Tonga.

Sem trânsito, sem carros e ainda haveria uma lei contra as buzinas. Tonga seria algo entre o primitivo e o confortável. Entre o azul e o dourado. Nada de cinzas que não tivessem um toque de chuva. E sol. Claridade ideal para óculos escuros estilo aviador. Dormir sem hora. Sem relógio. Sem despertador. Sem barulho de secador. Sem saltos altos no corredor às quatro e vinte e cinco da manhã. Haveria uma lei contra eles também. Permitido apenas chinelos, com premiação para os que escolhessem apenas as solas dos pés. Sem chefe, supervisor, gerente, fiscal, atendente. Burocracia resumida ao formulário de chegada, com apenas uma página.

Nada de conta em banco, nem cartão, nem múltiplas senhas. Sem reservas em restaurantes ou convites RSVP. Sem o carro do ano, o último escândalo, o novo presidente, o velho presidente, a mesma notícia em todo jornal todo santo dia. Essa seria Tonga. Sua Tonga. Ilha, cidade, departamento, bairro, o que fosse. Só precisava ter mar e silêncio e dias de vento e dias de sol e dias de chuva. Lugar onde todos os segundos pingariam sem pressa, sem correria. Viver o tempo, vestir-se de tempo, sorver lentamente o tempo. Degustá-lo com a satisfação de um sommelier seria o propósito. O único.

Emílio sentia até mesmo o gosto de Tonga. Lembrava alguma coisa entre o macio e o crocante, acidez na medida certa, alguma doçura e com pouco de sal, banquete na praia. E a praia seria longa e branca como a cambraia vestindo um corpo de mulher, onde andaria vagarosamente, abandonado do mundo, solto e só. Os pés de Emílio, na cama, já pisavam as areias de Tonga. Areia fresca, pele fresca, brisa fresca. Frescor quase maduro, mas ainda verdejante, ponto de colheita.

E para Tonga o coração de Emílio batia. O pensamento de Emílio acendia. O desejo de Emílio ardia. Amanhã descobriria Tonga nos mapas e compraria a passagem, faria as malas e seria então cidadão de Tonga. Com todas as regalias. Dormiu sorrindo, madrugada alta, sem escutar a buzinada na esquina seguida por um xingamento. Acho que sonhava com Tonga, o vento e a vida.

O despertador acordou Emílio. Sua mulher também. Pularam da cama. A escova de dentes, o banho, o café, a gravata, sapato, algazarra de crianças, cadernos de crianças, a chave do carro. Lá fora as primeiras buzinas, as primeiras vozes. Portas batiam no corredor do prédio. Emílio engoliu o café e atrasado correu com a caçula para o estacionamento. Sua mulher com os outros dois. Era preciso fugir do engarrafamento, fechar o relatório, pagar contas no horário do almoço, buscar as crianças, supermercado a noite. E Tonga? Onde a decisão da noite insone, entre os ponteiros da madrugada? Teria se perdido em algum lugar entre a escova de dentes e as chaves do carro?

Ele virou a esquina e parou no sinal. Uma moça de vestido branco atravessou a faixa. Branco cambraia, espuma do mar. Por alguns segundos vi em seus olhos um tênue lampejo, carregado de alguma coisa. Nostalgia? Desejo? Brisa? Acho que era um grão de areia, uma estrela, ou uma sereia, que logo desapareceram quando o sinal abriu e o carro arrancou. Para frente, sem volta. Ele olhou para o banco de trás, a caçula sorria, batia palmas. Teimava em fazê-lo sorrir. E ele sorriu. Para frente. Sem voltar.

Lílian Ávila

Formada em Ciências Sociais e Artes Plásticas, atua no mercado editorial como ilustradora desde 2010. Publicou oito livros infantis. Desde 2022, ministra aulas de desenho na Gibiteca de Curitiba para crianças e adultos.

Rascunho