A confissão de Borges

Crônica de Rubem Mauro Machado
Ilustração: Ricardo Humberto
01/11/2005

Foi assim: eu visitava Buenos Aires e, o jornal me disse, Borges estaria, “a las cinco en punto de la tarde”, como no poema de Lorca, autografando suas obras completas recém-lançadas, numa livraria da Calle Florida.

Vou lá, pensei, ver o monstro de perto. Não era e não sou um especial conhecedor da obra borgiana, longe disso, mas, caramba, já lera diversos contos dele, fantásticos em todas as acepções da palavra. Percorrera os labirintos das infindáveis bibliotecas que guardam o conhecimento humano, rira perturbado das eruditas referências a autores e obras inexistentes (mas que podiam ter existido) e relera algumas vezes (o que periodicamente continuarei fazendo) um conto chamado Jardin de los senderos que se bifurcan, para o qual só encontrei esta definição de um novo gênero: é o policial-metafísico.

E por falar em metafísico, essa principal característica da obra do velho bruxo faz muitas vezes esquecer que ele é autor de ácidos, sumarentos, contos sobre o gaúcho dos pampas, de que o exemplo máximo seria Sur (sul, em português). Quem o leu certamente não esquece o impacto de soco no peito dessa exemplar situação-limite sartriana, numa moldura de machismo, bravata e gratuita violência.

Ah, e havia ainda o autor de um punhado de poemas perfeitos, como Ajedrez, para citar apenas um. Na primeira estrofe ele consegue, a meu ver, dar a mais cabal e definitiva definição do jogo de xadrez e, não houvesse prosseguido, acredito que esses quatro curtos versos já constituiriam obra que se basta a si mesma: Em su grave rincón, los jugadores/ rigen las lentas piezas. El tablero/ los demora hasta el alba en su severo/ ámbito en que se odian dos colores.

Vocês devem imaginar que Borges, então um disputante com Cortázar do titulo de maior escritor argentino vivo e eterno candidato ao Prêmio Nobel de Literatura, que acabou não ganhando (em mais um entre os numerosos exemplos de miopia da Academia Sueca), deveria catalisar uma legião de admiradores. Era o que eu também pensava.

Meu hotel não ficava longe, mas os descompromissados afazeres de turista quiseram que eu me atrasasse um pouco e quando cheguei à livraria não vi qualquer movimento, apenas um ou outro cliente habitual, entretido no nobre passatempo de folhear livros.

Certamente eu não prestara bem atenção à data, os tais autógrafos seriam no dia seguinte ou num outro mais. Culpei-me pela distração, assumi a hipótese como verdade e não pensei mais nisso. Mergulhei na veludosa atmosfera daquela livraria (as nossas em comparação parecem pobres), passeando por sugestões de realidades e fantasias, mitos e sonhos, nomes e títulos, sabidos e desconhecidos.

Acabei por chegar a uma pequena sala nos fundos. A curiosidade me fez entrar e eis que dou de cara com quem? Sim, com Jorge Luis Borges em pessoa. Estava sentado sozinho junto a uma comprida e sólida mesa de madeira, a mão direita apoiada na bengala. A um canto, três ou quatro pessoas conversavam com discrição e me lançaram um olhar distraído. Desse modo, a primeira impressão que Borges me deu foi de solidão.

Então houvera realmente uma tarde de autógrafos. E como mal decorrera uma hora do horário marcado, ficava evidente que ela não chegara a ser precisamente o que consideramos um êxito.

Compreendi imediatamente o porquê. Pelo menos metade dos argentinos (na época) detestava Borges por suas críticas ao peronismo, derivadas, penso eu, não tanto de um suposto horror a ditaduras quanto do elitismo de sua formação. Ao velho aristocrata repugnava tudo o que cheirasse a povo e populismo. A esquerda, por sua vez, estava simplesmente furiosa com ele, pelos elogios que havia feito à ditadura chilena do general Pinochet. Elogios esses retribuídos com uma comenda, que o grande escritor não tinha hesitado em pregar no peito, mesmo sabendo que vinha manchada de sangue. Restava, é verdade, a direita. Mas quem é que disse que a direita lê?

A solidão de Borges era a penalidade, acreditei, imposta pelos portenhos ao contista e poeta, em resposta a seu conservadorismo. Nem por isso deixou de me doer. Via a caneta-tinteiro sobre a mesa, símbolo humilde de digno ofício, à espera de convocação.

Voltei ao salão, comprei um livro, pedi a Borges que o autografasse. Ele desenhou penosamente o nome, em palavras miúdas, compactas, quase incompreensíveis nos seus garranchos de cego, em que apenas o Jorge se lê claramente; e quase lastimei impor-lhe aquela dificuldade (vou à estante agora e verifico que Borges não datou a assinatura). O que mais me impressionava em sua figura naturalmente robusta e compacta, de mediana altura, era a tez de extrema brancura, como se jamais tocada pelo sol. Os olhos claros eram perturbadores na sua descompassada imobilidade.

Afável, lastimou o preço das obras completas, que considerou absurdo (eu, confesso, aniquilado pelo câmbio desfavorável da ocasião, comprara uma pequena brochura de El informe de Brodie), e começamos a conversar.

Diante de um gigante da literatura, não tive coragem de dizer que também escrevia ficção, mas lhe confiei ser um jornalista brasileiro. Ele pareceu, mais do que nunca, olhar para dentro de si mesmo e me respondeu:

— Eu tenho uma recordação muito forte do Brasil, um fato que me impressionou muito.

Fez uma pausa, deixando-me na expectativa muito grande de ver se ia contar. E continuou:

— Eu estava exilado em Santana do Livramento (alguém por aqui sabe disso?) e vi matarem um homem na minha frente, num bar.

Pareceu-me que Borges revia naquele momento a cena e fiquei imediatamente impressionado, e grato, como lhe sou até hoje, que ele, uma celebridade, se dignasse a contar algo de sua intimidade a um jovem desconhecido; que fosse capaz de dar um conteúdo de revelação, uma densidade humana a essa coisa tão necessariamente superficial, chata, provisória que é um papo rápido de tarde de autógrafos. De repente, ele ali era apenas um homem, confiando, não sei por qual impulso, gratuitamente, alguma coisa de si a outro homem. Foi, considero, um gesto de humildade de quem disse: “Como todo escritor, comecei um gênio. Hoje me resigno a ser Borges.”

Arrependo-me hoje de não haver explorado mais sua confissão, ter procurado me inteirar das circunstâncias desse exílio e desse assassinato. Tive a nítida sensação de que ele queria continuar a conversa. Mas uma jovem miúda, de gestos maternais, se aproximou e insistiu que era hora de irem embora. Apertamos as mãos com firmeza e ele se foi, apoiado no braço da jovem, que acreditava uma sobrinha e hoje sei tratar-se de Maria Kodama, com quem se casou nos últimos dias de vida, talvez apenas para fazê-la sua herdeira.

Anos depois, em 1986, a Sociedade Freudiana do Rio de Janeiro anunciou três conferências de Borges no Rio. Aguardei ansiosamente a oportunidade de ouvi-lo falar sobre os sonhos. Ele não veio. Nunca mais virá. Mas os sonhos que viveu como ninguém, exceto talvez Kafka, estarão sempre à nossa disposição, fonte de fruição e aprendizado, graças à transcendência da arte que nos legou.

Rubem Mauro Machado

É escritor, jornalista e tradutor. Autor de livros como A idade da paixãoO executante e Lobos.

Rascunho