A cidade, o inquisidor e os ordinários

Trecho do romance de Carlos de Brito e Mello
Ilustração: Theo Szczepanski
01/09/2013

 

O DECOROSO

Restos de comida, poeira e roupas jogadas asseguram ao réu uma nojeira de entorno. Piso um copo de plástico, piso uma fronha. A apresentação descuidada de si e o descaso com o mundo exterior a este apartamento são algumas das evidências do crime que este homem vem cometendo, agravado, nas últimas semanas, pela definitiva instalação do quadro de apatia e evitação, oneradas, ainda, pela tristeza e pela boçalidade.

Tal quadro, característico dos abnormes, não deve ser reduzido à preguiça nem à exaustão física. Viver não produz mais cansaço do que aquele sanado pela noite de sono. O desleixo e a pose sórdida deste homem, que tenta se aprumar de novo na cama, formam apenas o disfarce que busca encobrir sua verdadeira infração e não indicam, como ingenuamente se poderia supor, simplesmente um mau hábito. A apatia e a evitação social não podem ser tomadas como patologias psíquicas ou neurológicas, mas da moral.

O OLHEIRENTO

A voz da lei ecoa pela cidade. Em apartamentos vizinhos, as cortinas daqueles que anseiam acompanhar o exercício do decoro se abrem, enquanto se fecham as dos que o temem.

O APREGOADOR

Chegará o dia em que o decoro, se ainda não puder imperar sobre todos os olhares, imperará sobre as pálpebras!

O DECOROSO

Depois de muito esforço, o homem colocou-se mais aprumado e direito. Talvez já seja capaz de dizer algo. O ritmo e o timbre da sua voz não o desmentirão quanto à prostração. Da distância a que estou de sua testa, eu poderia distingui-la com meu cuspe, mas não o farei porque nunca cuspo.

Você pode dizer se me reconhece?

Nenhuma resposta.

Preste atenção na minha pergunta. Vou fazê-la de outra maneira: você me reconhece?

O homem abre os olhos, observa o próprio corpo e torna a olhar para mim.

Você me reconhece, bobo?

Finalmente, ele abre a boca, passa a língua sobre os lábios ressecados e fala. Eis a voz inconfundível do abnorme.

Hum… Hum… Reconhecer? Reconhecer… o senhor?
Sim. Reconhecer-me.
Me desculpe…
Não me reconhece?
Acho que… não estou num bom dia…
Por que não?
Porque… me sinto um pouco…
Um pouco?
Um pouco tonto, talvez.
Tonto? Foi o que você disse? Tonto?
Sim, tonto.
Você me reconhece, tonto?
Eu…
Reconhece ou não?
Acho que não.
Pois eu reconheço você. Sei como se chama. Sei que idade tem. Sei onde trabalha. Ou trabalhava. Sei que tem família. Sei que é vergonhoso. Apontando para você continua o meu dedo. Não se desvie! Mantenha o prumo. Mantenha os olhos abertos.

Este homem não sai de casa. Para garantir algumas refeições, ele encomenda a mesma comida pelo telefone. A correspondência que recebeu durante o período foi de contas a pagar, e não foram pagas. Ninguém o visitou. O zelador do prédio foi chamado apenas para interromper um vazamento no cano da pia da cozinha. O novo síndico, eleito há dois meses, não o conhece. Os vizinhos de andar não se lembram do seu rosto nem do seu nome. Do emprego foi demitido por abandono de função. Seus parentes não são visitados há anos. Amigos não perguntam por ele. Não há informações quanto a eventuais parceiros ou parceiras sexuais.

Por que você abandonou o emprego de vigia?
Abandonei?
Você não se lembra de ter abandonado o emprego?
O senhor é da firma?
Pareço com alguém da firma?
Não.
Não sou da firma.

O homem olha para os lados, tateia o colchão, olha em direção à porta do quarto e torna a olhar para mim.

O senhor é da polícia?
Pareço da polícia?
Parece.
Não sou da polícia.

Muitos de nós, se não todos, já tivemos vizinhos semelhantes, e o máximo que soubemos dizer sobre eles foi que eram esquisitos, deprimidos ou artistas. Não se pode garantir, sem os conhecer, que fossem todos infratores da moral. Este homem que fiz réu combina evitação social com apatia em níveis extremos.

Voltemos ao tema do seu trabalho de vigia.
Está bem.
Diga como trabalha.
Eu trabalho de vigia num prédio que fica numa rua perto daqui.
Que rua?
Rua? Não me lembro. Dá para ver da janela o prédio que fica ao lado de onde eu trabalho.
E você vigia o prédio daqui?
Dou umas olhadas.
Nessas olhadas, você consegue controlar quem entra e quem sai do prédio? Se alguma coisa de estranho acontecer lá dentro, você é capaz de averiguar? Se alguém precisar de alguma informação, você será encontrado?
Hum…
Não podendo realizar nada disso, você ainda pode dizer com essa sua certeza idiota que vigia o prédio que diz vigiar?
Hã?
Pode ou não pode? Eu consigo ver o prédio que fica do lado. É quase igual.
Pode ou não pode?
É que tem outros prédios na frente.
Então…
Não posso.
Então, estarei certo ao dizer que você nada vigia.
Eu queria…
Não me interrompa. Pare de olhar para os lados e para a porta. Olhe apenas para mim. E pare com essas interjeições: ué, hum, ah, hã.

Um homem, em geral, se o chamo de bobo, toma este termo por corriqueiro e alusivo à tolice, não podendo imaginar que, empregando-o, refiro-me à enfermidade que sofre e ao crime que comete. Um bobo se comporta com a habitualidade de todos os seus dias mal vividos e acredita, com freqüência e escorado justamente no caráter vil que o condenará, que apenas vive a vida que lhe coube viver.

Você sabe me dizer se este dia em que estamos vai pelo início, pelo meio ou pelo fim?
Pela luz lá de fora…
Sim…
Não sei.
Aproximadamente?
Pelo início?
Isso foi uma resposta ou foi uma pergunta?
Eu…
Você sabe me dizer em que dia do mês nós estamos?
Não.
Da semana?
Também não.
Você pode me dizer há quanto tempo está neste quarto?
Muitos dias.
Esteve sempre nu?
No início, não.
Quando foi o início?
Não sei. O início foi no início.
Não me responda nesses termos. Quando não souber a resposta, pode dizer apenas, e para o seu próprio bem, que não sabe o que responder.
Tá.
Por que decidiu tirar a roupa?
Não sei o que responder.
Você confirma que ninguém esteve neste apartamento nas últimas semanas além, obviamente, de você, do zelador, que veio reparar um vazamento de água, do entregador da comida que você pede por telefone e, agora, de mim?
Nunca recebo visitas.
Então você confirma o que eu disse?
Confirmo.
Você é capaz de confirmar também a impressão que tenho de que você é mesmo desprezível?
Hã?
Confirma ou não confirma?
Hum…
Confirma ou não confirma?
Confirmo.

Um condenado por bobeira não deve mais usar o seu nome próprio. Um condenado por bobeira fica reduzido a bobo. Eis um qualificativo que, impermeável tanto à água benta usada na pia batismal quanto à tinta do carimbo do tabelião, designa melhor o qualificado.

Você foi batizado na igreja, não foi?
Fui.
Foi registrado em cartório, não foi?
Fui.
Doravante, você é apenas bobo, e é assim que será conhecido.
Bobo?
Levante-se da cama, bobo.
Bobo?
Eu ordeno que se levante da cama.
O senhor me chamou de quê?
De bobo.
Esse não é o meu nome certo.
Não estou preocupado com o seu nome certo. Você não o tem mais. O que o batismo e o cartório fizeram por você eu desfaço agora. Bobo é como o classifico e como, por todos, você será chamado.
Por que bobo?
Porque é isso que você é, e nada mais.
Não entendi.
Você não entendeu exatamente porque é bobo.

O OLHEIRENTO

A bobeira deste homem é feita da combinação da apatia, boçalidade, evitação social e tristeza, resultando em abatimento físico, perda de ânimo e embotamento intelectual. A bobeira guarda parentesco com o antigo pecado da acídia, mas desta difere, entre outras razões, porque não supõe o Destinatário como o ofendido. Atualmente, com Ele mais preocupado em expandir o cosmos e desviar-se de satélites artificiais do que em interferir na capina terrena, incapaz que é de pagar crediário, embelezar esposas e afastar maridos do vício, ninguém Lhe dedica muito mais que umas poucas velas e lágrimas nas lamúrias dominicais.

O APREGOADOR

Os velhos pecados perderam a graça, e nós, os desgraçados, fomos obrigados a abaixar os olhos do céu. Agora, em nossos horizontes nada belos, a aurora e o poente ficam encobertos pela pachorra do vizinho. Foi nesses covis de gente ordinária que se produziram os novos pecados e pecadores que o sr. Decoroso tem perseguido com afinco.

O DECOROSO

Em que você crê, bobo?
Eu não creio.
Em quem você confia?
Em ninguém.
Do que você gosta?
De nada.

O OLHEIRENTO

Bobo!

O APREGOADOR

O sr. Decoroso não pretende ocupar o picadeiro onde o Destinatário, ao longo de muitos séculos, para embevecimento das entusiasmadas platéias cristãs, sacou da cartola as descendentes da pomba que Noé soltou para avaliar o nível das águas do dilúvio. Mas o homem tem estado a se consumir de diversas maneiras, e sua consumpção fere esta sociedade com o exercício e a difusão de maus valores.

O DECOROSO

Agora, levante-se da cama.
Levantar?
Sim.
É difícil para mim.
É claro que é.
Levante-se.
Estou cansado.
É claro que está.
Tenho um pouco de tontura.
É claro que tem.

Com muito custo, o homem fica de pé. A barriga, a bunda e as mamas são grandes e flácidas. As costas têm escaras em formação. As pernas, varizes muito grossas. O pênis é um descorado pepinilho. O cheiro que vem das suas axilas e de outras dobras do corpo traz náusea. Para não cair, o homem agarra a cortina; então, passa ao beiral da janela; depois, agarra-se nos móveis ao lado; finalmente, consegue se equilibrar.

Como o nome que você se acostumou a ter, a sua idade também não interessa. Seus dias e anos contarão, somente, a partir de agora. Considere-se novo.
Novo?
Novo naquilo que ainda pode se renovar. No que não pode, o que é bastante coisa, você continuará como é.
E como sou?
Bobo.
Hum.
Apesar do seu aspecto odioso, devo admitir que é bom vê-lo mais aprumado. Assim poderá conduzir-se até o local de cumprimento da pena.
Que pena?
A pena a que estou prestes a condená-lo.
Serei punido?
Cale-se e me acompanhe.
Eu preferia ficar onde estava.
Sei bem o que você preferia. A sua preferência não importa mais.
Posso vestir um calção?
Você ficou nu durante esse tempo todo. Para que quer um calção agora?
Minha bunda. Ela não é bonita.
Nisso concordamos. Vá vestir o calção.

O réu caminha até o guarda-roupa e abre a gaveta da esquerda. Vasculha-a. Fecha-a. Volta-se então para as prateleiras da direita e não encontra o que procura. Como é deselegante um abnorme!

Apresse-se.
Não estou achando o meu calção.
Aquilo ali no chão não é um calção?
Onde?
Ali, azul, com listas dos lados.
Ah, é.
Seja rápido.
Obrigado por apontar.
E dê um nó nesse cordão.
Ah, tá.
Coloque o cordão para dentro do calção.
Assim?
Vamos.
Para onde estamos indo?
Para o telhado deste prédio.
O que o senhor vai fazer?
Vou condená-lo.
Lá em cima?
Sim.
É longe.
Não resmungue. Você mora no décimo primeiro andar. Basta subir um pouco mais.
Levo a chave?
Não importa.
Mas é a minha casa.
Esqueça a sua casa. Você não tem mais porta, não tem mais casa, não tem mais nada. Você não vai voltar tão cedo. Talvez não volte nunca. Vamos.

Começamos a subir. O bobo é lento.

Estou cansado.
Nós mal começamos.
Podemos parar um pouco? Só um pouquinho?
Só um pouquinho.
Posso perguntar uma coisa?
Pergunte.
O senhor vai me matar?
Matar você? Eu? Não. Você podia ter morrido por conta própria. Agora não morrerá mais e poderá reeducar-se.
Reeducar-me?
A pena reeduca.
Tem certeza?
É claro que tenho. Fui eu que inventei a pena.
Que bom.
Morto, obviamente, você não poderia nunca ser reeducado.
Não?
Mortos não sentem culpa. Mortos não prestam atenção nas coisas. Mortos não se empenham em nada. Toda punição depende da vida para exercer-se. Reeducar significa, entre outras coisas, mostrar ao reeducando a sua culpa.
Sentirei muita culpa?
Sentirá. Tendo sido o autor de graves infrações morais, você participará ativamente da própria correção.
Não entendi.
Entenderá.
Vamos.

O OLHEIRENTO

Ouço daqui o bobo. Ainda há degraus para escalar. Que ele poupe seus ais.

O APREGOADOR

Viver não ocorre sem bastante sofrimento. Para os que se esquecem desse mandamento, o Decoroso está aí.

O DECOROSO

Não se afobe. Mantenha o ritmo. Respire fundo.
Tá.
A educação leva tempo e deve solicitar todo o empenho e a atenção do deseducado.
Entendo.
Quem pretende morrer deve morrer por sua própria conta. Eu não mato. Sou um cultor da vida.
Entendo.
Que bom que entende. Estamos quase lá.

Subimos o último lance de escadas. Abro a porta de acesso ao topo do prédio. Há espaço suficiente para nós dois andarmos, contornando a casa de máquinas do elevador em direção a uma das beiradas do telhado de onde se observa bem a vizinhança. Adianto-me, resoluto, sensato, exultante. O réu caminha atrás de mim, mas vem lento, escorando-se. Diminuo a extensão dos meus passos para esperá-lo. A caixa-d’água faz sombra, e uma imensa antena de televisão projeta-se acima das nossas cabeças.

É aqui que paramos de andar, bobo. Pode descansar um pouco.
Ai!
Respire.
Uf!
Olhe em torno. Você gosta do que vê?
O que há para ver?
Prédios, ruas e pessoas.
Não sei. Uf!
Não sabe ou não gosta?
Não estou nem aí.
Ah, você não está nem aí.
Não. Uf!
Não sente amor nem ódio por tudo o que está à sua volta?
Não.
Você acha esta cidade feia?
Não.
Acha bonita?
Não.
As janelas, os postes, os toldos, os letreiros, os canteiros e todo tipo de gente… nada interessa?
Não.
Há tanta imoralidade em você que eu gostaria de tirá-la a tapa. Recuperou o fôlego?
Um pouco.
Ótimo. Está vendo essa antena acima de nós?
Sim.
Não há nada mais alto do que ela no topo deste edifício, concorda?
Concordo.
Que bom que concorda. Prepare-se para subir.
Onde?
Na antena.
Para quê?
Para reeducar-se.
Lá em cima?
Lá em cima.
Não conseguirei.
Não se subestime.
Por que tenho que subir?
É chegada a hora de dependurar-se.
Dependurar-me?
Você negou seu pertencimento a esta sociedade, enfurnando-se em seu quarto de dormir e desfazendo-se dos hábitos e normas que regulamentam uma civilização. A condenação que seguirá vai devolvê-lo ao seu entorno, bobo. As fachadas, as calçadas e os semáforos, as janelas, os postes e os toldos, os letreiros, os canteiros e todo tipo de gente que lá embaixo transita serão a extensão do cimo gorduroso que você, dependurado no alto dessa antena, se tornará de agora em diante. Dependurar-se será, pois, a sua pena, o seu anti-inflamatório, o seu banco escolar.
E quem a decretou?
Eu.
E quem é o senhor mesmo?
Eu sou o Decoroso, inquisidor desta comarca.

Carlos de Brito e Mello

Nasceu em Belo Horizonte, em 1974. É mestre em comunicação social e professor universitário, autor dos contos de O cadáver ri dos seus despojos (2007) e do romance A passagem tensa dos corpos (2009). A cidade, o inquisidor e os ordinários será publicado neste mês pela Companhia das Letras.

Rascunho