A brisa, a queda, o Gueto de Vilna

(Sobre o dia da morte de Abraham e um outro, de gratidão)
Ilustração: Matheus Vigliar
27/01/2017

Aquela ligação que todos os escritores esperam. Recebeu com o coração aos pulos. Ouviu, sim, inglês perfeito — com sotaque, mas perfeito. As palavras foram claras: Nobel Prize. Foi para a televisão e ouviu o noticiário. Nobel de Literatura, Abraham Sutzkever. Agora era cuidar da viagem, da roupa, pensou. E pensou muito no que vestir, estranho. E o que escrever no discurso. Abriu a janela, o vento árido, ar de Israel.

Foi preso um dia antes do início da Segunda Guerra Mundial com sua mulher e encarcerado no Gueto de Vilna, na Polônia. Por sua formação, foi destacado pelos alemães para glosar obras de arte e documentos raros. Fez o trabalho sujo, mas conseguiu esconder, atrás de uma parede de tijolo e gesso, um diário de Theodor Herzl, desenhos de Marc Chagall e Alexander Bogen, entre outras joias.

Imprensa, telefonemas, entrevistas e um assédio irritante. Todos falavam sobre o seu Geheymshtot, um poema épico sobre os judeus escondidos no esgoto de Vilna. Há muito nem pensava mais nisso. Temia o pior. Temia lembrar. Temia ter que ser obrigado a lembrar. Fechou-se. Trancou-se. O telefone tocou, novamente.

Sua mulher e filho recém-nascido tinham sido assassinados no Gueto de Vilna. Ele desandou a escrever poemas em iídiche. Conseguiu fazer com que um caderno com os textos chegasse ao comitê antifascista soviético. Eles concordaram em salvá-lo. Fugiu com mais vinte judeus pelas florestas geladas. Sabia que estava sendo perseguido. O ponto de encontro estava marcado: dois dias depois, na clareira de Baltiz. Era simples chegar lá. Era só chegar.

Ele conhecia aquela batida à porta. Pausada, leve e nervosa. Seu irmão, Salvan, não esperou ser atendido. Entrou, longos braços abertos. Abraços, cumprimentos efusivos, há muito tempo Abraham não sentia o cheiro de Salvan. Cheiro de cigarro seco no cinzeiro. Deslizou, sentou-se, ofereceu um chá. Sentiu o torpor do ambiente, viajou nos motivos de toda aquela celebração. É o dinheiro do Prêmio, evitou o pensamento.

Noite alta, aos poucos, todos foram sendo presos novamente e colocados em um campo improvisado, ali mesmo, no meio da floresta. Para evitar fugas, foram cercados com arame farpado, feito bichos. E vigiaram, despertos. A ordem era cavar, pela manhã, um grande buraco, todos ouviram, em bom alemão. Desconexo, Abraham pensava em como iria chegar ao ponto no qual o avião ia buscá-lo, dois dias depois, como combinado.

O telefone não parava em Tel Aviv. Ligações principalmente dos amigos parisienses, fraternos, desde a Segunda Guerra. Mas a cena dos acadêmicos do Nobel, a entrega, a exposição tantas vezes vista na tela com outros escritores, provocava enjoos. Ia fazer setenta e oito anos. Imaginou a viagem até Estocolmo. Só imaginou. E tudo ficou turvo. Não queria lembrar. Mas estava perto.

O olhar fixo no nada de Franz Murer, assassino de sua mulher e filho. A cadeira do Tribunal de Nuremberg era gelada. A madeira tosca e encerada piorava o suor das mãos. A fala era dele, sabia. Mas a imaginação ia longe, perto do mal, longe do real. Um sonho que se desdobra em outro, em espiral. Iídiche, o alemão, o hebraico, línguas se misturam. Sua mulher e o pequeno ressuscitavam. Mas ele falou o suficiente. Ouviu a sentença sem emoção.

O dia amanheceu mais frio que o normal. Chão duro de cavar. Os alemães já tinham avisado, acordem cavando. Não houve como escapar. Cavavam com as mãos. Todos ao redor do buraco, armas apontadas. Olhos ao redor, a visão do conjunto, o timbre delicado do sol nascendo. Em breve, a destruição da alma, do corpo. Espera o estampido. De repente, um mal súbito, ele cai primeiro na vala, antes dos tiros.

A televisão ligada, alta, facilitava as coisas. A surdez do ouvido esquerdo também. Divagou e viu Salvan girando a maçaneta, dando as costas e a porta se fechando. Divagou e sorriu. Mas ele continuava ali, falando e gesticulando. Não havia escrito tantos poemas para isso. Os poemas do Gueto de Vilna eram chaves para a liberdade. Eles foram a chave de sua liberdade. Agora, a chave girava, em outro sentido, em sua alma. As coisas.

Acorda no escuro, gosto de sangue na boca. Cadáveres acima e ao redor. Luta, desesperado, para sair. Aos poucos, vê a luz do dia. Terra, sujeira, horror e sangue. Sai dali sem olhar para trás. Corre, chega ao ponto combinado um dia antes. Espera. O pequeno avião pousa e o leva para a Rússia. Era abril de 1943.

O telefone insiste. Atende, agradece. Imagina a cerimônia de entrega, as palmas, a brisa. A lembrança vem. E agradece, novamente, ao desligar.

Afonso Borges

Nasceu em Belo Horizonte (MG), em 1962. É gestor cultural, escritor e jornalista. Criou, há 30 anos, o projeto Sempre um papo e, há seis, o Fliaraxá (Festival Literário de Araxá), nos quais exerce também o papel de curador. É comentarista da Rádio CBN, com o programa Mondolivro e colunista do jornal O Globo. Seu quinto livro, Olhos de carvão, será lançado em março pela Record.

Rascunho