8 de janeiro de 2023

Conto de Fernanda Hamann
Ilustração: Denise Gonçalves
01/09/2024

Era novembro quando o Povo acampou na Praça dos Cristais, em Brasília, ao lado do Quartel-General do Exército, em protesto contra a fraude nas eleições presidenciais de outubro de 2022.

O Povo fazia adorações e orações, de braços erguidos, para que o Senhor Jesus Cristo derramasse sobre as Forças Armadas todas as bênçãos, e a coragem de libertar o Brasil dos esquerdistas, dos discursos de gênero, dos insultos à Pátria e à Família.

O Povo acompanhava os louvores amplificados pelo carro de som, improvisado na boleia de um caminhão estacionado no acampamento.

O Povo cantava: Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.

O Povo agia conforme os pedidos do Presidente Bolsonaro.

O Povo pedia que o Presidente Bolsonaro também agisse.

Povo clamava: Se for preciso, a gente acampa / Mas o Ladrão não sobe a rampa.

O Povo dormia em barracas em forma de caba­na, ou de iglu, ou em tendas grandes que acolhiam muita gente.

O Povo prendia faixas para identificar as tendas: “Exército de Gideão”, ou “S.O.S. FFAA: Praças e Oficiais”, ou “Rancho Front de Guerra: Família Militar”.

O Povo se orgulhava de acolher membros da Família Militar.

O Povo festejou a presença da esposa do General Villas Bôas.

O Povo se honrou com a visita do General Lourena Cid, direto dos Estados Unidos.

O Povo se emocionou com a mensagem do General Braga Netto, para que continuassem todos firmes na luta, sem perder a fé.

O Povo não fugiu à luta no dia 12 de dezembro, quando o Ladrão foi diplomado.

O Povo fabricou bombas caseiras.

O Povo saiu com pedras, paus, fogos de artifício.

O Povo quebrou e incendiou carros.

O Povo tentou empurrar um ônibus de cima de um viaduto, mas não conseguiu.

O Povo tentou invadir a sede da Polícia Federal, para libertar um líder bolsonarista que tinha sido preso, mas não conseguiu.

O Povo voltou ao acampamento e ornamentou as barracas com mensagens de esperança: Generais, confiamos nos senhores — Novas eleições já!

O Povo gostava de pontos de exclamação: FFAA, queremos a restauração da lei e da ordem com Bolsonaro no poder!!!!

O Povo não lia jornal, preferia se informar pelas redes sociais.

O Povo recebia comida dos benfeitores, preparada em panelões, na barraca da cozinha.

O Povo usava os banheiros do Clube dos Subtenentes e Sargentos do Exército.

O Povo organizava jogos cívicos, para entreter adultos e crianças.

O Povo portava armas brancas, batia continência, cultivava saudações: Selva!

O Povo compartilhou a ceia de Natal, dedicada à Família Patriota.

O Povo celebrou o nascimento de Jesus Cristo e implorou ao Senhor que zelasse por sua nação: Brasil acima de tudo, Deus acima de todos.

O Povo orou pelos guerreiros que foram detidos na missão de explodir um caminhão-tanque no aeroporto de Brasília.

O Povo repudiou a repressão comunista ao exército dos cidadãos de Bem.

O Povo se multiplicou, uma semana depois do Ano-Novo.

O Povo contabilizou mais de cem ônibus, com milhares de soldados, vindos de todo o país.

O Povo entoava hinos: Brava gente brasileira/ Longe vá, temor servil/ Ou ficar à Pátria livre/ Ou morrer pelo Brasil!

O Povo vestiu trajes militares, camisetas da sele­ção brasileira, bandanas e bonés verdes e amarelos.

O Povo amarrou bandeiras nas costas, como capas de super-heróis.

O Povo se inspirou em Donald Trump, na invasão ao Capitólio, que fazia aniversário de dois anos e dois dias, naquele 8 de janeiro de 2023.

O Povo marchou rumo ao Eixo Monumental, escoltado pela Polícia Militar do Distrito Federal.

O Povo tirava selfies com os policiais, que sorriam e tiravam selfies com o Povo, para postar no Facebook.

O Povo atravessou a barreira das viaturas do Choque, que abriu passagem para a Esplanada dos Ministérios.

O Povo avançou até a Praça dos Três Poderes.

O Povo se dividiu entre o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

O Povo gravava vídeos da ocupação, para postar no TikTok.

O Povo gritava: Liberdade!

O Povo berrava: Intervenção!

O Povo urrava: Agora é guerra!

O Povo queria tacar fogo nos edifícios da República.

O Povo pedia: Sem fogo! Sem fogo!

O Povo atirava os extintores de incêndio nas vidraças.

O Povo rezava um Pai-Nosso.

O Povo levava facas e canivetes.

O Povo quebrava e furtava objetos de valor.

O Povo rasgou uma tela de Di Cavalcanti.

O Povo estragou uma tapeçaria de Burle Marx.

O Povo escalou a escultura A Justiça, em frente ao STF, e pichou no peito da estátua: Perdeu, mané.

O Povo se sentou na cadeira dos ministros e pos­tou uma live no Instagram: E agora? Quem manda aqui nessa porra?

O Povo bradava: O governo é o Povo!

O Povo chorava em júbilo.

O Povo cometia erros de português nos cartazes e pichações.

O Povo não sabia o que estava fazendo.

O Povo sabia muito bem o que estava fazendo.

O Povo sabia onde estavam as câmeras de segurança e os quadros de luz.

O Povo mijou nos carpetes.

O Povo cagou numa mesa.

O Povo derrubou computadores no chão.

O Povo não tinha um plano, saía aos galopes, dissolvido na massa.

O Povo tinha uma clara intenção: ocupar os Palácios, atrair as Forças Armadas, exigir que to­massem o poder.

O Povo não contava com a reviravolta no comando da polícia do Distrito Federal.

O Povo levou bala de borracha.

O Povo correu das bombas de gás.

O Povo arremessou as bombas de volta.

O Povo foi expulso da Praça dos Três Poderes.

O Povo retornou à Praça dos Cristais.

O Povo se sentiu seguro, no seu Quartel-General.

O Povo cuidou dos feridos.

O Povo comeu e descansou.

O Povo foi protegido pela Polícia do Exército.

O Povo foi surpreendido, na manhã seguinte, pela ordem de desmontar o acampamento.

O Povo foi preso.

O Povo voltou para casa.

O Povo começou a planejar o contra-ataque.

O Povo jurou fazer guerrilha no WhatsApp.

O Povo prometeu conspirar no Telegram.

O Povo perdeu a batalha, mas não perdeu a guerra.

Todo o poder emana do Povo.

NOTA
O conto 8 de janeiro de 2023 pertence ao livro Estilhaços de junho, a ser lançado em breve pela EditoRia.

Fernanda Hamann

É escritora e psicanalista, com pós-doutorado em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Publicou o romance Cativos (2015), a autoficção Coisas bizarras que você só descobre quando está grávida (2015) e o ensaio Nelson Rodrigues e a psicanálise (2022), entre outros livros. Organizou e participou da antologia Coronárias (2022), com contos de 16 autoras brasileiras. Em 2022, ganhou uma Bolsa Criar Lusofonia, do Centro Nacional de Cultura de Portugal, para escrever em Lisboa seu novo romance, em fase de finalização.

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