Poemas de Wilson Torres Nanini

Leia os poemas "professora A. do abandono nubente", "N. da cegueira inapaziguaável", "S. dos dois corações exigentes", "D. da beleza soberba"
Ilustração: FP Rodrigues
22/09/2015

professora A. do abandono nubente

o diabo começa
nas periferias da alma
“eu era tão pura tão
capaz de rezar para
que as pedras dessem
à luz pães”

mas o amor lhe foi uma
sede sem cura

pois quanto tudo é
fome malcurada — quando
tudo devora e não passa —
rogamos a esmo: ribanceiras
excrementos (vingança

eloquente como seu
enxoval de solteira-para-
-sempre em que ora com
arames borda
rascunhos para epitáfio)

…..

N. da cegueira inapaziguaável

a orfandade lhe foi um estágio
uma primeira
separação solene
e porque seu anjo
da guarda era de rapina
soube cedo que o amor
é como a imperícia
de um cego de nascença
tentando explicar as cores —
então desde então corações
alheios infeccionados
de cegueiras transparentes
lhe rugem
que amor
afeto e deus podem
muito bem ser obtidos
acendendo
simulacros de éden
em latinhas de alumínio

Ilustração: FP Rodrigues

S. dos dois corações exigentes

no peito dois corações
um para os amores decrépitos
o outro para fenecer
por si
infinitamente

para um sevícias — para
o outro delícias

mas exige dos filhos
poupados do aborto
uma alegria desobediente
ao doer que resta do parto

e então sorri pura
cor-de-rosa turmalina
somente a quem permite
hospedar-se
nas adjacências de seu púbis

…..

D. da beleza soberba

porque um doutor lhe interpelara
o amor —
(aquilo de eternidades perecíveis)
“um mês exato
até seus ventrículos colidirem” —

como lembrança
do órgão
que fedia a amores mortos
ostentará
entre os seios perfeitos
um vertical feia
sutura de açougueiro

Ilustração: FP Rodrigues

P. da L. do a.a.

aceito domesticar
o diabo inato
: aceito que é
progressiva esta necrose

aceito que meu voo
dure apenas doze passos
num só-por-hoje ao longo
de dezoito abstêmios anos

aceito que meu coração
torne-se flor e espoque
pois é mais bendita
a dor no peito
que aceita a faca

só não aceito
que a vida
me seja tão efêmera
como um fósforo

Wilson Torres Nanini

Tem 35 anos, nasceu em Poços de Caldas. Há dois anos, publicou seu primeiro livro de poemas, Alcateia, e este ano lançou Escafandro, ambos pela Patuá. Nanini é cabo da Polícia Militar e poeta. Segundo Luiz Ruffato, “da sua poesia, nascida do espanto com as coisas singelas, jorra a sabedoria de quem aprendeu a ler pelo avesso. É simples e sofisticada; transparente e profunda — tem sabor, tem cheiro, tem cor”.

Rascunho