4 contos de Iacyr Anderson Freitas

Quatro contos de Iacyr Anderson Freitas
Iacyr Anderson Freitas, autor de “Viavária”
01/09/2003

Escavações de um andarilho

Com o maior prazer eu faria — por que não? — uma excursão em companhia de absolutamente ninguém. É claro que para as montanhas, onde mais?
Franz Kafka

Do modo como a coisa se deu, sua intrincada tessitura, tinha ele agora pouco tino. Parara o carro num restaurante da serra e, enquanto sua família terminava de almoçar, resolvera sair para apreciar a paisagem e tomar uma brisa mais fresca na varanda. Uma varanda muito ampla, que circundava um salão todo em estilo colonial, com dotes de mirante. Lembrava-se também do ar difícil daquele começo de tarde, da sua titubeante luminosidade, do silêncio que a tudo cingia e, naquele momento, como um comboio alucinado dentro do seu peito de homem, tão fortemente ecoava.

Então sentiu aquela coisa estranha que era o mundo. O mundo que cultivara. E olhou, através do vidro embaçado, a família que ainda não se levantara da mesa. Naquele instante, como num passe de mágica, ele não mais a reconhecia. Viu o filho que não deixava de lhe perguntar sobre tudo, como se o tempo, os relógios, o próprio ato de viver fosse explicável. Como se fosse possível a algum vivente visitar cada um dos cômodos de sua própria morte. Viu a filha mais velha, que tanto se parecia com ele, que tanto a ele se agarrava para tentar compreender o que jamais teria resposta. Olhou a imagem de sua própria avó, que brotava nos gestos, nos cabelos muito pretos, no jeito esquivo da filha mais nova. Essa que nada perguntava, que parecia trazer sempre um rol de respostas prontas dentro do vestido. E compreendeu que estes três rebentos deveriam crescer, deveriam crescer para trair a espécie. Como ele mesmo o fizera. Para isto o corpo de cada um se preparava, os dentes, as unhas como facas vivas, o feitio ainda desconjuntado dos braços. Era inevitável trair.

Fitou o vulto distante de sua própria mulher. Sua distância de mil anos. Vulto que decidira a sós, em alguma hora perdida, que não deveria mais caminhar sem a fotografia 3 x 4 do marido dentro da bolsa, sem o ar um tanto derrotado do seu marido. Vulto que se apoiava nele para enfrentar os filhos, para respirar além dos limites do pequeno apartamento em que viviam. Para existir. Para existir, sim, ostentando a custo uma insuportável dignidade. Fitou o vulto de sua mulher contra a vidraça. O vulto dos filhos, dessa família que ele não pedira e que, em verdade, pouco conhecia.

Mas nada, nada em sua vida lhe parecia girar sob a sua esfera de decisão. Tudo estava ali, a postos desde o princípio, qual uma tatuagem amanhecida em seu ombro. Ele não escolhera o trabalho, sequer o modo rasteiro de dizer “bom dia” ou “como tem passado?” ao síndico do prédio ou aos demais funcionários da repartição. Não buscara aquela família ou qualquer outra. Pouco cultivara as horas que lhe doíam no pulso. As coisas tomaram assento em seu sangue e pesavam-lhe, naquele instante, feito uma pedra no estômago.

Foi quando, deslocando os olhos da vidraça, filtrou a paisagem. E contornou a varanda, caminhando até uma das margens da estrada. Pelo caminho, foi deixando um rol de entulhos que, como tudo em sua vida, aos poucos se fixara dolorosamente em seu corpo. Objetos criados à sua revelia e que também à revelia ele carregava, com cuidado, para destinos ignorados. Assim, largou os molhos de chaves, a pequena bolsa de moedas, o cinto, o cordão de ouro, o talão de cheques e a velha carteira. Viu à frente uma trilha que escorregava pela encosta, afundando-se na mata fechada. Desceu sem pressa. Sim, agora ele deveria escolher. Esta era a sua mais íntima grandeza. Um pouco antes do primeiro desvio lembrou-se também de afrouxar os sapatos e jogar fora os papéis que, nos bolsos, como num último esforço, ainda insistiam inutilmente em chamá-lo pelo nome.

 General

Os fatos explicarão melhor os sentimentos; os fatos são tudo.
Machado de Assis

Era a sua quinta premiação consecutiva. Ele, que começara como um reles contínuo na fábrica, agora outra vez aclamado funcionário modelo. Na solenidade, o diretor-superintendente teceu um longo elogio ao seu trabalho, a cada naco de frase evocando a relevância da sua dedicação à empresa. Ao final do discurso, entregou-lhe o troféu e colocou-lhe a medalha ao peito, pedindo-lhe que, doravante, com o intuito de distingui-lo ainda mais, não deixasse de portar, assim bem reluzentes em seu uniforme de torneiro mecânico, todas as cinco medalhas conquistadas. Veio daí o apelido de General.

Embora a rotina duríssima não tenha perdido uma vírgula sequer, a despeito de tantas premiações, ele sentia doer em si, ao vestir seu velho e condecorado uniforme, uma autoridade. Sim, porque doía: um pesar indefinível, delicioso até, bem melhor que o afago brusco da máquina em que trabalhava. Aquela autoridade era, por assim dizer, física, tomava-lhe o ânimo e ofertava-lhe uma presença estranha. Tão fraternal quanto inimiga. O certo é que já não podia prescindir dela, dessa presença. Por isso não deixava mais de lado a vestimenta de tantas e tantas labutas. Sem o amparo de todas aquelas medalhas, sentia como que se mover dentro de si, rebentando pelo estômago acima, marcando a língua com um travo de vinagre ou pimenta ardida, um enorme bloco. Feito do mais denso vazio, todavia palpável e mortificado.

Ao despir-se, em seu quarto para sempre inacabado, sem reboco nas paredes, com as telhas de amianto à mostra, sentia-se sumir. Como se o tal bloco lhe estourasse os ossos todos. Como se lhe ficasse, monstro à espreita, um nada menor que seu nome. Era insuportável. Vestido com roupas de passeio, a calça azul de muitos domingos, não podia se olhar no espelho. Voltava à tona aquela terrível vertigem. Via seu reflexo e não se reconhecia. Contemplava mais e mais, e a cada instante o estranhamento crescia. Aos poucos, a imagem refletida ia formando, como num quebra-cabeça, outra pessoa. Alguém que ondulasse no vapor da hora, sem raízes, com milhas e milhas de esquecimento.

Para evitar tamanho desamparo, passou a não tirar mais do corpo o condecorado uniforme. Chegava a dormir assim, em traje de trabalho, mesmo nas noites mais íngremes de calor, apesar dos protestos da família. Que falassem. Sentia-se melhor desse jeito: um General. O mais perfeito General. Em vigília perpétua, estátua lavrada em cal virgem, armada eternamente de medalhas contra o terror que estreita, de minuto em minuto, a sua estrangeira e inalienável autoridade.

 Tamanhos rigores

Não há dúvida temos um passado

Talvez demais
Talvez tanto que não deixa lugar para o futuro
Manuel Alegre

Conseguira. Poderia agora respirar sem sobressalto. A fronteira sumira no horizonte e o rio estava calmo. Tão calmo naquele trecho, assim tão detido e compassado, que o barco parecia flutuar, um palmo acima da linha d’água. Há pouco recebera, dos companheiros destacados para acompanhá-lo, as notícias dos últimos três meses em que estivera fugindo. Na mais absoluta clandestinidade. Três meses de uma viagem alucinada, sem esperança de sucesso. E só então, naquele momento, as terríveis notícias. Seria uma outra prova, talvez ainda mais dura, talvez insuportável, estar vivo para sabê-las. Um comboio de crimes contra seu corpo. Mas ele conseguira. Esse misto de prêmio e de castigo era seu, custasse o que custasse. Três longos meses sob fome e frio, vagando a esmo, sendo caçado como um animal qualquer, desde que os inimigos tomaram sua cidade. Nela deixara seus pais e irmãos, abatidos no auge dos combates, segundo lhe disseram os companheiros de embarcação.

Por sorte conseguira fugir, com um pequeno grupo de amigos, levando consigo a esposa e a filha de cinco anos. Fazia já um bom tempo que sua cabeça estava a prêmio. Queriam-no vivo ou morto. Era imperativo alcançar a fronteira. Grávida de três meses, sua esposa caiu, entretanto, nas garras do inimigo, cerca de uma semana após a conquista da cidade. Foi assassinada naquela mesma noite. Sua filha adoeceu e teve de ser deixada, sob cuidados médicos, num dos acampamentos encontrados pelo caminho. A despeito dos esforços, não resistiu a uma pneumonia dupla, tendo sido sepultada num cemitério clandestino qualquer, encravado no meio inóspito do chapadão. Do pequeno grupo inicial, restara apenas ele. Seu melhor amigo não logrou atravessar um campo minado, quase às margens da fronteira ocidental. Os outros foram caindo pouco a pouco nas garras inimigas. Enfim, seu solitário mérito poderia vibrar como festa nos demais companheiros. A felicidade dos que o escoltavam reluzia a todo instante. Era-lhe difícil imaginar, após tamanhos rigores, o vinho e a boa comida.

O rio permanece calmo. Somente o seu coração não se acostuma. Desviando de leve os olhos do madeirame encardido, ele tira do bolso a foto que o acompanhara desde o princípio da jornada. Lá estavam, à beira de um domingo sem nuvens, no velho papel amassado e úmido, seus pais e irmãos, sua esposa e sua filha, além do velho cão de guarda. Todos mortos. O barco adeja sem pressa. Rompe uma chuva miúda, de doer nos ossos. Duas aves cruzam o céu de chumbo. Ele está vivo, eis o que importa. Sonda com as mãos o próprio e castigado corpo. Ele está vivo, ele está vivo, segundo lhe disseram.

 Holocausto

Mas a vida muito tranqüila é assim mesmo, uma chatice.
Rubem Fonseca

Dedilho meu método até os detalhes. Adianto-me. Prevejo. Tudo deve funcionar sem acidentes, pois o risco recorre a meu nome. Primeiro escolho os alunos da oitava série. Apenas um por sala. Não há ciência alguma nesse processo de seleção, somente uma obscura inclinação pessoal. Em seguida começa o jogo. Procuro, de início, instigá-los com pequenos gestos, frases repletas de reticências, olhares furtivos ao cruzar as pernas ou ajeitar o decote do vestido. Crio oportunidades de encontro, onde me cumpre inaugurar as primeiras letras da nossa cumplicidade. Esta fase é de longe a mais rica. Analiso com cuidado a personalidade de cada um, toco-a com os dentes, medito. Depois lanço meus veredictos: esse precisa ser mais trabalhado, está verde demais para o holocausto, aquele ali me serve ou não me serve etc. O mais importante, no entanto, é a privacidade. Tudo deve fluir em surdina, coisa difícil entre garotos de quatorze ou quinze anos de idade. O sucesso do jogo pode ser medido pela ausência de comentários nos corredores do colégio.

Só assim posso dar o passo seguinte. Provoco os potros que escolhi para o meu corpo. Provo-os em brasa. Vermelhos acesos, queimando. Por mais ridículo que pareça, do alto da minha experiência, eu os humilho. Faço-os mendigar cada centímetro conquistado, mas não lhes concedo meia palavra acerca das regras do nosso jogo. Que esperem. Que encontrem por conta própria a resposta. A delícia do embate melhor se revela em recato. Sem maiores explicações. Ninguém sonha o minério que extraio de meus escolhidos, ainda rubro de dor e vertigem. De seus músculos já talhados para o ímpeto de toda a força animal. Eu os domo, para que essa força se multiplique sobre mim — e me vença. Digo: assim não quero. Façam isso. Desse jeito não. O que lhes sobra do sexo não supera, ao final, o vinagre do instinto, matéria bruta por natureza, cujo nome não existe ou não poderá jamais ser pronunciado. Lego a meus escolhidos a certeza de nenhum refinamento. Para chegar ao cume, uma boa dose de entrega ao próprio corpo. Ao que ele corpo nos destina, embora ocultemos. Por isso os sussurros sórdidos, o prazer que sinto ao humilhá-los, e que eles percebem em meus olhos, como um carinho extinto.

Penso nisso enquanto espero a hora de fazer o meu discurso, fechando as festas de final de ano do colégio. O diretor me reserva sempre para o encerramento. Segundo ele, eu sou a chave de ouro da instituição, a professora que lustra os eventos e as celebrações. Mas a verdade nua e crua é que ainda me emociono. Nada mais natural. Falo apenas o que sinto. Quando disser, por exemplo, que toda educação deve ser posta a serviço da nossa felicidade — e não do mercado de trabalho ou da mera satisfação curricular —, buscarei no auditório de pais e alunos os meus escolhidos. Eles saberão melhor, na carne, a força do que estarei dizendo. O tempero de cada palavra. Sentindo minha exposta dedicação, uma rasura leve e líquida tomará os olhos da platéia.

Toda educação deve ser um caminho para a felicidade, repetirei o mote que encerrará o meu discurso. Antes que termine a longa sessão de aplausos, o diretor mandará executar o hino nacional.

Iacyr Anderson Freitas

Nasceu em Patrocínio do Muriaé (MG), em 1963. Publicou mais de vinte livros de poesia, os mais recentes: Quaradouro (2007 – semifinalista do Prêmio Portugal Telecom), Viavária (2010 – 1º lugar no Prêmio Literário Nacional do PEN Clube do Brasil), Ar de arestas (2013 – finalista do Prêmio Jabuti e semifinalista do Prêmio Portugal Telecom) e Estação das clínicas (2016).

Rascunho