31º dia

Conto de Márcio Silveira
01/04/2003

Estávamos havia trinta dias entocados numa trincheira. Eu, o capitão e mais
dois soldados. De dia o calor tirava o ânimo, a concentração e a razão.
Aquela areia quente fervia no horizonte, a claridade nos cegava como se nos
derretesse a retina. Tínhamos que revezar de uma em uma hora. À noite o frio
enrijecia até os ossos. No silêncio seco do escuro só os dentes atritando.
No horizonte via-se os fios de luz cortando o céu, desaparecendo atrás dos
morros. Era tão longe que não nos chegava o barulho das explosões.
Aquela trincheira fora feita pela tropa anterior, ainda fedia a podre. Assim
que chegamos, tratamos de retirar os pedaços humanos crivados de vermes. Em
meio às náuseas, tive a sensação que estávamos apenas trocando os inquilinos
daquela cova, logo seríamos o novo manjar.

Já se passavam trinta dias e nada havia acontecido, dava a impressão de que
tínhamos sido esquecidos naquele pedaço de fim do mundo, nem um vulto ou
sombra sequer passara por aquela terra. Até que no trigésimo
primeiro dia surgiu um rato do deserto com dois filhotes a uns trinta metros
da trincheira. Pulavam em vez de correr naquele chão queimando. Ríamos das
dificuldades e trapalhadas até o momento que uma sombra surgiu por trás da
trincheira e num rasante garfou os dois filhotes. Uma espécie de águia ou
gavião, difícil de definir tal a velocidade. Certeiramente com cada uma
das patas agarrou-os, ficando só a ratazana com alguns pingos de sangue
penetrando na areia quente ao seu redor. Desatinada, cambaleava cheirando o
terreno, vinha em nossa direção e à medida que se aproximava, pude ver que
era maior do que pensava. Quando percebemos sua intenção, nos afastamos para
o fundo da trincheira e o animal parado na boca da cova olhou-nos um a um,
quando me olhou pude notar que seus olhos eram como duas metralhadoras
engatilhadas, um rato cuja espécie eu nunca vira. Então cheirou o ambiente e
num ato de fúria pulou guinchando sem parar, corria tentando nos morder
enquanto pulávamos fugindo das dentadas. Divertíamo-nos com aquela
brincadeira. O capitão ria tanto que esqueceu de pular e levou uma dentada
no tendão de Aquiles, tão forte que respingou sangue na hora. Perplexos, no
outro lado da trincheira, assistíamos ao capitão berrar de dor; e ainda com o
animal grudado em sua perna direita, sacou a metralhadora, puxando com ira o
gatilho, disparando uma rajada no animal que fugia. Com agilidade, o bicho ao
pular para fora da cova saltou alto, o suficiente para o capitão metralhar
os dois soldados e estilhaçar minhas pernas. Percebendo o insucesso, pulou
mancando para fora. Quase perdendo os sentidos, pude ainda ver o capitão
gritando atrás do animal. Os dois pulavam e cambaleavam na terra quente
quando a sombra de uma grande ave surgiu por trás da trincheira e acertou em
cheio com uma rajada de projéteis o corpo do capitão, restando apenas o
animal cheirando as gotas de sangue que vertiam do corpo do outro animal.

Márcio Silveira

É professor, contista e dramaturgo.

Rascunho