3 poemas de Veneza

Leia os poemas "Notícia dos campos de morte" e "Visão do Vaporetto"
Fernando Monteiro, autor de “Os vivos /?/ e os mortos”
01/04/2008

1. Notícia dos campos de morte

Não se trata da morte daquele piloto
Muito jovem
Entre altas nuvens cinzentas
Do frio antes do fogo.

[Do que se trata, então?]

Trata-se da suavidade
Da luz coada debaixo
Dos guarda-sóis do verão
Anterior na memória
Do rapaz de férias
Em Veneza,
Antes da guerra
E, de repente, só,
Absolutamente só,
Na praia do vaporetto
Depois que as crianças
Foram tangidas para dentro
Do hotel a separar os ricos
Dos pobres, ainda uma vez
E sempre.

Foi bem antes da guerra,
E, portanto, no tempo da dança
Imitada de Fred Astaire
Quase acima do chão,
De face para o lugar
De onde vinha a música
E agora há sintetizadores
E a falsidade produzida
Com algo do teor esfarrapado
Daquela carta de desculpas
Enviada da América-dos-Pais:
Mesas-de-toalha-de-xadrezinho,
Tortas-de-amora-e-cotovelos
De pele de mármore
Das moças que tremiam
Sob as mãos inexperientes
Dos rapazes mais tarde
Mandados para os ares.

Isso foi há muito tempo.
[Que confusão!]

E nada a ver, ainda, com a combustão
De mãos, braços, pescoços e óculos
Derretidos com as pupilas do piloto
Nascido em 1921
E, vinte e três anos depois,
Prestes a se tornar a parte de sangue
E vísceras queimadas
Dos intestinos de metal
Fumegante onde foi o nervo
Dos restos de uma emoção
Numa tarde de janeiro
De 1943, no Maine.

Ossos humanos desfeitos
Como cartas nunca enviadas
Para casa,
A fim de não saber da namorada
De frases abruptas em letra miúda:
“Vou casar com ele”…
“Você, talvez um dia compreenda
– Depois que tudo isso passar”…
“Mamãe e Papai estão sabendo”…
“Eu não estou grávida, em todo caso”.

Com duas linhas de sublinhado
Ela escreveu “THE END”
Dentro de um quadrado
Infantil e incerto,
No campo restante do papel
De linhas impressas
Como retas veias azuladas.

No ar rarefeito,
O fim do silêncio explode
Muito acima das cabeças
De monges imersos em orações
Num monastério da Europa,
Num Cassino qualquer,
Devotado a Deus
E não aos jogos de azar
No lugar de ostensórios,
Incenso, votos de pobreza
E nenhuma recordação
Pungente
Da parte interna da coxa
De uma estudante com a qual
Foi dividida a infância
De filmes em preto-e-branco,
Uma inocente ignorância
E palavras estranhas e distantes
Como “Meteora”.

O avião caindo:
É belo para os pastores
De cabras da Magna Grécia
Desfigurada pela marcha
Da tropa de Ícaros de óculos
Derretendo-se não mais de amor,
Nos ares limpos da antiguidade
Vencida nos anos e nos costumes
Que cercavam a volta dos heróis
Do Peloponeso juncado de ossadas
Com alguns ornatos de ouro.

“Não há mais heróis”…

Antes que prossiga,
Ponhamos ordem na casa
Deste poema que não ia ser
Sobre a “morte dos heróis”,
Nem teria “retornos de soldados”
Para a solidão dos quartos
Da adolescência entre morte
E religião agora pedestres
Para adventistas do Dia
Não-sei-quanto,
Contado sem novidade,
Exceto a queda do avião
Do piloto irlandês de WBY:
A verdadeira ovelha sacrificada
A um século de messias falsos
E legítimos santos desanimados.

Está bem, eu concordo.
Digamos, então, que este poema
Não é sobre ele,
Nem sobre seus colegas de escola,
De bairro ou de piqueniques
Na relva desaparecida
Com “a glória na flor”
Do rapaz morto há sessenta e quatro anos
Longe, muito longe do Brasil
E desta época sem Heróis
Nem Metafísica.

Este poema quis ser
Sobre um paciente caindo
Da altura da temeridade
E da lembrança do horror
Entre os calores
Das cinzas de uma quarta-feira
Cerrando os olhos daquele
Fisgado pelo anzol definitivo:
O que recordava a infância
De iscas bem preparadas
Nos rios da Polônia
Imolada numa estação
Para sempre interrompida
Pelo inverno dos trens
Por sua vez preparados
Para apagar famílias inteiras
Na fumaça de apenas um dia
Antes dos retratos
De sobreviventes olhando
Para as lentes dos soldados
Da libertação para o pó
De pós-Auschwitz.

[Agora, estão mortos, afinal.]

Estão mortos?
Estavam vivos?
Estavam prontos?
Estão tristes?

Perguntas.
Não fazem sentido.
Respostas, também não.
E é tarde no asilo de dezenas
De alas de quartos urinados,
Fora do vaso,
Por alguns velhos cansados
Entre lembranças confundidas
No silêncio despertando
Outros sons mais antigos,
Enquanto uma ilusão de lavanda
Da juventude
Chega dos sovacos de enfermeiras
Com perfume barato
E saltos baixos entre as camas
Dos mortos caídos da altura
De meio metro
Para o chão de cimento
Mal lavado
Como o piso de fornos crematórios
Hoje recebendo turistas
Que lancham no coffeeshop
Dos antigos campos de morte.

2. Visão do Vaporetto

O torso de beleza afastando-se
Como se afasta um afogado
Das margens da praia
Também recuada para trás
De onde o Mediterrâneo
Vinha beijar os pés das sílfides,
Debaixo do sol silencioso.

Abandonados pelas crianças,
Os brinquedos da marina
Zunem de calor no metal
Aquecido como as águas.

O planeta está mais quente
E mais enlouquecido
Entre os pios nublados
Do pássaro escondido
Em árvores molhadas
Da chuva ácida que se filtra
De um céu de tempestade.

Aviões caíram nesta manhã,
Levando passageiros
Para o fundo de uma laguna
E o nenhum lugar da selva
Remota que irá retomar
Seu espaço sobre azulejos
Encardidos e embalagens
Não-degradáveis
Num mundo que prefere o desastre.

Tudo o prenuncia, de certa forma,
E nada está perdoado
Nem foi esquecido
Com todas as coisas que já foram
E com aquelas que ainda serão
Ou que apenas dormem na tarde
À espera dos anos sem emoção.

Os humanos repousam
No sono da sombra de toldos
Estalando na Veneza insalubre
Deste lado do Atlântico
De exímios nadadores
Que não viram as crianças
Se afogando.

Sim, eu prefiro estar
Por apanhar um resfriado
Antes da peste
No limite da cerca-viva
De mato e detritos do lixo
Avançando até o antigo gradil
De gladíolos brancos.

É minha a opção de não manter
A saúde, fumar e perder esperança
Na vigilância sem objeto,
Exposto ao vento da tarde,
Ao siroco da mente
Igualmente desistindo
Das perguntas a ninguém
Muito depois de Pã
Anunciado como morto
Antes da morte dos mares.

Então, não importa molhar
Os sapatos da espuma de solfejos
Rumorejando as queixas do Adriático
Como outrora o mar dos gregos
Deixava leve gosto de salgado
Entre os artelhos limpos
De náiades banhando-se
Nos oceanos mitológicos
Que hoje são de plástico
Cor de chumbo.

Surdamente, então, o terceiro poema
Emerge da água pesada
Sobre a cabeça da divindade.

3. Olhar que o sol não confundiu

E o vento não mordeu
E a chuva fez nublar
Só de lágrimas emprestadas,
Quem pode encarar o Deus
Sem a máscara de olhos
Mais que vazados?

Juro que o vi, como Turner,
No olho da tempestade,
Debaixo do miasma dos miasmas
Que engrossam a lama da laguna
Num dia de peixes mortos
Entre camisas de cópula,
Sacos aéreos de vômito
Antes da queda
E sujeira de insetos
No leite talhado.

Juro que eu vi o que eu vi
Em três poemas da morte
No ar, no mar e aqui,
Na terra desolada do poeta
Que também anunciou a Desgraça,
Como WBY (de novo)
Descreveu a marcha para o final
Do tédio de Bizâncio.

Estamos nele.
Melhor: estamos um pouco além
Desse famoso sentimento do nada
Contemplado pelos deuses
Que nos abandonaram ao abismo,
Na branca ausência de espanto
Dos mármores tombados
Em meio à perfeita indiferença
De cariátides feitas de beleza
Extrema e de cálculo
para uma arquitrave.

Navegamos, sim, para ouvir
O pássaro de ouro cantar
A Era de Impiedade.
Passamos do limite,
Do ponto de retorno,
Fomos longe demais,
E nada serve a nada
No futuro que naufraga
Como o rosto cinzelado
Na suspensa piscina
De espaço que responde
Ao mirar de ruína
Com a pura vaga de mormaço
Sobre o lodo que resseca
E (não) sustenta a cidade
Que afunda
Sob os reflexos da água.

Fernando Monteiro

É escritor, poeta e cineasta. Autor de Aspades, ETs, etc., entre outros.

Rascunho