Vozes solitárias

Eliana Alves Cruz lança "Solitária" — romance em torno de uma empregada doméstica soterrada pelos preconceitos e violências de uma classe média hostil e racista
Eliana Alves Cruz, autora de “Solitária” Foto: Chico Cerchiaro
01/09/2022

Após três romances históricos bem-sucedidos, a jornalista e escritora carioca Eliana Alves Cruz inicia um novo capítulo em sua carreira literária: uma narrativa de ficção debruçada sobre o tempo presente. Em Solitária, ancoram-se vozes eclipsadas em espaços capitaneados por uma classe média ainda perversamente hostil e racista. Uma empregada doméstica e a sua filha denunciam a problemática do proletariado numa bem articulada polifonia que se funde com as próprias observações do cômodo onde a contratada se retira para descansar.

Misto de Carolina Maria de Jesus, Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz é um dos nomes femininos da nova safra da literatura brasileira contemporânea que apontam para a amplitude do debate de gênero e raça entre homens e mulheres ainda silenciados em um Brasil miscigenado, o qual exibe de forma translúcida as suas bifurcações da casa grande e senzala.

Em entrevista ao Rascunho, a escritora fala sobre o interesse pelas pautas etnico-raciais, a pesquisa histórica em benefício da criação, o gosto pela literatura infantojuvenil, além da rotina de escrita.

• Após três romances baseados em pesquisa histórica a respeito da ancestralidade negra, surge agora Solitária, que traz uma narrativa mais contemporânea a respeito da vivência de duas mulheres, mãe e filha, que são empregadas domésticas em uma residência de alto poder aquisitivo. Como surgiu o livro e por que falar sobre essas personagens?
Até então tinha escrito romances históricos com conexões fortes com a contemporaneidade. Durante a pandemia, observando o comportamento da classe média e classe média alta, o perfil das pessoas que mais morreram e as funções que foram consideradas essenciais e, portanto, não poderiam se dar ao luxo de ter pessoas confinadas, achei que era hora de fazer o contrário, ou seja, escrever algo contemporâneo com fortes ligações com a nossa história. O trabalho das empregadas domésticas e certa parcela dos trabalhadores rurais no Brasil, na minha opinião, exercem as atividades que mais frequentemente nos remetem ao período escravocrata. Os números, estatísticas e também noticiário diário estão aí para não nos deixar mentir, com um número absurdo de eventos de trabalho análogo à escravidão e cárcere privado. No caso das trabalhadoras do lar, são relações tão naturalizadas no país, que as violências geradas ali entram na corrente sanguínea da nossa sociedade. As plantas dos imóveis reproduzem até hoje uma lógica de casa grande e senzala, onde o espaço determinado para a empregada é um lugar confinado, sem janela, todo no diminutivo e perto dos dejetos, da lixeira.

• O que mudou na experiência de composição de Solitária em relação a seus livros anteriores, considerados romances históricos?
Foi um processo completamente diferente, embora calcado também em alguma pesquisa. Foi preciso um exercício de afastamento do meu próprio tempo e de deslocamento para outros lugares que não são meus como, por exemplo, o dos homens da história. Nos livros anteriores, foi um deslocamento para trás na linha do tempo. Neste foi o contrário. Precisei olhar a história que acontece no meu tempo presente como se estivesse no futuro observando. As fontes de pesquisa também mudaram. Saí dos jornais antigos para os portais de notícias e de dados sobre emprego doméstico no Brasil. Deixei de ter cidades inteiras, países como personagens da história para ter cômodos ou espaços muito reduzidos. Solitária pode acontecer em qualquer grande cidade brasileira. Os romances históricos foram sempre oceânicos, mas esta é uma trama que se passa na gota, nas partículas pequenas e aparentemente inofensivas, mas que, na verdade, são gotas de um veneno poderoso.

• Como se deu a escolha de o romance ser apresentado por três vozes distintas, inclusive, sendo uma delas o próprio quarto da empregada?
Quis dar profundidade a uma história que é sempre retratada nos seus aspectos mais bizarros, mas poucas vezes entra na miudeza, nas fissuras e violências diárias. Para alcançar este objetivo entendi que seria mais interessante apresentar diversos pontos de vista: o da criança que cresce naquele ambiente, o da mulher que se vê forçada a submeter a filha às suas condições de trabalho e de testemunhas mudas, oniscientes… quem seriam? Pensei no ditado que diz que “as paredes têm ouvidos”, então entendi que além de ouvidos elas têm bocas. Um ambiente fala muito sobre nós. Os espaços da casa são testemunhas do que ninguém vê. Ter estes três olhares poderia trazer uma riqueza e uma praticidade no entendimento do enredo. O próprio edifício conta uma história.

• Empregadas domésticas, em geral, não são protagonistas na literatura brasileira. Você sentiu que era necessário estreitar as raízes dessas vozes específicas? Qual é a urgência desse romance, sobretudo quando ainda há mulheres e homens vivendo em situações análogas à escravidão?
Não é fácil fabular em cima de temas tão complexos. O que me move na escrita é uma vontade de ver outros corpos ocupando o centro. Corpos não num sentindo que vem de Descartes, que separa corpo e mente, mas no entender de outras filosofias que enxergam um corpo em sua pluralidade. O lugar de empregada doméstica pode ser ocupado por qualquer pessoa, mas a experiência do corpo negro neste lugar é única. É uma imagem que remete a uma história que o Brasil teima em “adocicar”, em atenuar, em relativizar. A urgência que sinto em ver estas pessoas com centralidade na literatura é contribuir para, como diz a Chimamanda N’gozi Adiche, fugir da história única, visto que a literatura é um lugar de disputa de “verdades” e eu não acredito em verdades absolutas. Não acredito nos lugares cristalizados em que fomos colocados, ainda que disfarçados em democracia. A lacuna de cidadania no Brasil é profunda e entendo que a literatura também é um espaço para falar sobre isso.

• Como você se sente por ocupar uma posição de privilégio na nova literatura brasileira, sendo mulher, negra e falando sobre as questões que são apontadas em seus romances, num país que segue desvalorizando as mulheres e, sobretudo, os negros?
Eu me sinto um tanto estranha, pois nunca pensei que seria vista assim. Se você me perguntar se planejei estar neste lugar vou te responder com um “sim e não”. Sim, na medida em que escrever literatura foi o que quis a vida inteira; e não, porque a minha entrada no mundo da publicação, pois escrevo desde os 18 anos, é relativamente recente. Para uma mulher como eu, aconteceu de uma forma absolutamente impensada e, depois que comecei, rápida. O romance Água de barrela foi o meu primeiro romance. O primeiro texto que escrevi com intenção de que se transformasse em livro. Como é um relato bem peculiar e sem muito parâmetro no Brasil, ou seja, uma família negra que sabe suas origens remotas e fabula em cima disso, escrevi muito sozinha. Foi muito surpreendente quando ganhei um prêmio nacional com ele, mas a partir daí comecei então a planejar esta outra vida como autora. Fui percorrendo os caminhos que achei necessários para me fortalecer como a escritora como você disse, negra e falando sobre o que falo. Busquei meus pares, outras pessoas como eu que escreviam e publicavam. Aprendi não apenas com a escrita delas, mas com suas posturas. Consegui um parâmetro que nunca tive e a partir daí pude estabelecer os meus limites e as minhas posturas, que, às vezes, divergem destas mesmas pessoas, mas que são respeitadas porque não são artificiais, observam uma coerência e não são negacionistas diante da nossa exclusão por tanto tempo do mundo editorial mais convencional. Eu já possuía muita coisa escrita porque o ato de escrever veio muito antes da possibilidade de publicar. Atualizei e aprimorei muitas coisas depois que comecei a publicar, mas a matéria-prima já estava lá. Demorou, mas apesar de ainda sentir certa estranheza por esta posição, creio que hoje estou muito mais consciente do meu caminho percorrido e do papel que desempenho neste cenário.

• A necessidade de se comunicar através da ficção surge quando?
Quando eu tinha cerca de 18 anos, resolvi escrever uma história infantil. Foi um momento em que comecei a compreender as violências que tinha sofrido ao longo de uma infância e de uma adolescência vividas em ambientes onde eu era minoria total. Estudei em escolas e convivi em ambientes em que eu era uma das cinco pessoas negras, vivi uma solidão imensa num tempo em que uma ditadura estava no fim e em um bairro de classe média repleto de militares, filhos e filhas de militares… todo tipo de coisas me aconteceram. Então, resolvi escrever sobre esta solidão, sobre como é se sentir um ponto num mundo estranho e hostil, mas com o qual você se acostuma até o ponto de perder a medida do próprio sofrimento. Até que chega um elemento novo que te faz despertar e ter vontade de construir outras relações em outros espaços. Assim nasceu O desenho do mundo, história que acabo de lançar pela Ediouro, com ilustrações do Estevão Ribeiro.

• Falando nisso, como é a escritora Eliana Alves Cruz para as crianças?
É uma escritora preocupada em não subestimar a criança, mas também em não tratá-la como um “mini-adulto”. É uma autora que tenta ao máximo entrar neste universo lúdico, trazendo lembranças que possam ajudá-las a valorizar seu pertencimento e também encontrar meios para superar algumas dificuldades dessa fase. Não entendo como alguém pode pensar que literatura para crianças é algo menor. É difícil demais fazer boa literatura para essa fase da vida. É complicado porque são muitas “infâncias”. As diversas fases, com seus diferentes níveis cognitivos e percepções, a questão de mediação de leitura, a escolaridade, enfim… não é fácil! Por tudo isso, fico muito orgulhosa que minhas ainda poucas incursões na literatura infantil e também juvenil sejam bem avaliadas por professores, a turma da pedagogia e psicologia. É nessa fase que podemos ganhar mais um leitor para o mundo ou perdê-lo para sempre.

• Você enfrentou dificuldades para publicar no início de sua carreira?
Comecei de uma forma atípica. Minha porta de entrada foi com o primeiro lugar em um concurso que premiou em dinheiro e com seis mil exemplares do livro. A partir daí, algumas portas se abriram. A minha dificuldade enorme não foi para publicar, mas para me reconhecer como escritora e ter coragem de encarar uma jornada grande como é a narrativa longa de um romance. Levei a vida inteira para isso e as causas são fáceis de identificar: o racismo que não nos colocava com visibilidade neste lugar, o descrédito e a falta de incentivo de quem está no entorno justamente por conta do que disse anteriormente e a falta de informação sobre como funcionava o mercado editorial em um tempo sem internet e redes sociais.

• Fale sobre o seu interesse por História, sobretudo voltada à ancestralidade negra. Água de barrela, seu romance de estreia, é uma ficção cujo fio condutor é uma descoberta muito mais íntima e pessoal. Para os leitores, acabam sendo um prato cheio as informações a respeito da historicidade de indivíduos afrodescendentes e todas as suas idiossincrasias.
História sempre foi a minha matéria favorita desde os tempos dos bancos escolares. Ela sempre me intrigou e hoje entendo o motivo. Eu possuía dentro de casa uma trajetória familiar que em muito contradizia tudo o que sempre estudei e li. Obviamente, eu não possuía na infância, adolescência e em grande parte da juventude as ferramentas para entender sobre apagamentos, epistemicídio, eugenismo e todos estes conceitos que explicam as percepções equivocadas sobre tudo o que tange as populações negra e indígena do Brasil. Na época, era apenas uma intuição forte de que estavam me escondendo algo por conta da minha própria trajetória familiar. Com o amadurecimento, as leituras e as conversas que sempre testemunhei dentro de casa e com pessoas que nos cercam, essa sensação se tornou certeza e a partir dessa certeza veio a necessidade de dar a minha contribuição para contar a mesma história por outros pontos de vista. Então o romance Água de barrela foi acalentado e de certa forma pesquisado a vida inteira. Esse livro contém muitos livros. Ele fala sobre outra caminhada da população negra no país, mas também fala de aspectos pouco falados sobre a população branca quando traz o movimento sufragista, os tantos juízes e profissionais do direito que eram filhos de fazendeiros escravocratas e que estudaram em Portugal ou nas primeiras universidades do país, as redes de alianças familiares que faziam todas as fortunas, entre outras tantas coisas. Certa vez me perguntaram se vou sempre escrever sobre “estas coisas”. Quando provoquei para saber a que coisas ela se referia, não obtive resposta. Apenas sorri e afirmei que ainda nem começamos a conversar “sobre estas coisas”.

Foto: Chico Cerchiaro

• Alguns escritores reclamaram da nova abordagem do Prêmio Jabuti, que recentemente perguntou sobre a etnia do autor durante o processo de inscrição. Os escritores argumentam temer que os prêmios literários se tornem muito mais uma pauta política do que restritivamente voltada à qualidade estética das obras. O que acha disso?
Acho bastante cansativas e sintomáticas essas preocupações, pois o que está na raiz delas, a meu ver, nada mais é do que a velha e anacrônica discussão sobre meritocracia. Um discurso altamente falacioso, cheio de armadilhas excludentes. O Prêmio Jabuti é organizado pela Câmara Brasileira do Livro e é o mais tradicional do país. Para ele correm as grandes e médias editoras e, na medida do possível, as pequenas também. Não existe lugar e momento mais oportuno para uma pesquisa sobre um perfil de autorias no Brasil. Embora não atinja uma camada ainda invisibilizada de quem produz literatura por aqui, saber quem conseguiu chegar na inscrição deste importante prêmio é algo que vai fazer com que saibamos melhor quem somos e talvez traçar rumos inclusive de políticas públicas, por que não? Certa vez fui convidada para ser jurada no Jabuti e recusei porque me declarei impedida, visto que fiz a orelha de um dos livros concorrentes. No entanto, deu tempo de entender como funciona essa avaliação. Os julgadores nem tinham acesso a esses dados. São os livros e ponto final. A minha opinião é que existe uma acusação no fundo de todo esse barulho. Isso soa como uma insinuação de que pessoas negras que recentemente começaram a ganhar destaque nesses prêmios maiores só estão lá por conta do “politicamente correto”, das tais “pautas identitárias”, por um “modismo”. Percebo tudo isso como arrogância, elitismo e (a palavra mágica) racismo.

• Como tem sido a sua vida nos últimos anos, dividindo-se entre a profissão de jornalista do segmento esportivo com a carreira literária?
Uma loucura! Nunca pensei que poderia viver de escrever, mas hoje eu vivo. Tudo isso que faço é em torno da escrita. Um volume absurdo de texto para ler, estudar, dar pareceres, escrever… Mas não reclamo porque amo de verdade o meu trabalho. Acho que a nossa cultura machista forjou a nós, mulheres, para dar conta de muitas tarefas ao mesmo tempo. Além do trabalho, existem os outros campos da vida: filhos, família, rotinas domésticas e de cuidado pessoal, vida afetiva… Adquirimos uma espécie de superpoder doloroso, que sobrecarrega nossos ombros e alivia o de outros. Também tem sido um aprendizado dar limites e dizer não. Issto passa muito pela autoestima e pela real noção do nosso papel dentro do nosso ofício e da nossa comunidade. Percebo um fenômeno muito comum em um país como o nosso: o uso de pessoas negras com algum destaque para legitimar, chancelar obras, instituições e pessoas que desejam ser vistas como “progressistas”, “empáticas”, etc. Escapar dessa armadilha tem sido um exercício bem cansativo para mim, mas às vezes não tem jeito, pois a população negra com letramento racial ainda não chegou em muitas esferas decisórias. No entanto, tento ao máximo. Escolher atentamente os trabalhos, as trincheiras e os caminhos é, hoje, a minha tarefa mais delicada, pois para mulheres como eu, o Brasil é como um campo minado abandonado, ou seja, se você se distrai, pisa numa mina terrestre.

• Como é a sua rotina de escrita e leitura? Costuma ter horários fixos?
Devido ao que disse na pergunta anterior, não consigo ter horários fixos como gostaria. Esse é o meu grande sonho de organização, mas quando começo a escrever algo que me absorve, sou um tanto obsessiva. Escrevo principalmente à tarde e em todos os momentos que aparece uma brecha. Estou me disciplinando para colocar a leitura em dia lendo sempre à noite, antes de dormir. É uma forma de me desligar do noticiário e do entorno para entrar em outro mundo.

• Qual é a sua opinião sobre a literatura brasileira contemporânea?
Vivemos um momento muito especial, com uma ampliação de vozes muito grande e de gêneros literários. Há uma oxigenação da literatura nacional promovida em muito também pelo advento da internet e das redes sociais como plataformas de leitura e divulgação. Hoje é muito mais fácil conhecer novas autoras e autores. Embora o Brasil esteja demais aquém do seu potencial de leitores, sinto que cada vez mais essa diversificação de narrativas atrai um público novo e que por muito tempo foi solenemente ignorado pelo mercado editorial. Pessoas que também querem ver a si e a realidades próximas às suas relatadas e eternizadas em livros.

• Um livro de cabeceira.
Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus.

• Qual seria o caminho para uma sociedade brasileira mais justa e igualitária na medida do possível, sem distinção de classe, raça, gênero e credo?
Que pergunta difícil! Não tenho uma resposta. Acho que ninguém tem, mas talvez um começo seja estimulando o nosso povo a deixar de negar o passado dilacerador do Brasil. O remoto e o recente também. Vivemos episódios muito novos na linha do tempo, como por exemplo a ditadura militar, que já estão no campo do apagamento e do esquecimento de muitos de seus aspectos mais sórdidos. Isso é proposital. É um método extremamente bem-sucedido no Brasil, esse de jogar areia nos olhos das novas gerações. Precisamos desmontar essa fábrica de mentiras e deturpações convenientes da realidade para que possamos avançar e, aí sim, construir cidadania para todas e todos. A literatura é uma excelente ferramenta para isso.

Solitária
Eliana Alves Cruz
Companhia das Letras
161 págs.
Márwio Câmara

É  escritor, jornalista e crítico literário. Autor de Solidão e outras companhias (Oito e Meio, 2017) e Escobar (Moinhos, 2021).

Rascunho