Voz feminina não é canto de sereia

Em entrevista ao Hoje & Sempre, a presidente da entidade, Helonilda Furacco, promete recuperar a dignidade das mulheres escritoras
Helonilda Gladys Furacco, presidente da CNLF: distribuição de “bolsas maravilhosas”.
01/08/2005

A escritora e funcionária pública Helonilda Gladys Furacco, atual presidente do Conselho Nacional de Literatura Feminina, que aos 59 anos já publicou 12 romances e foi vencedora do Prêmio Maria Julia da Confederação Internacional de Escrita Feminina 2003, revela os projetos que desenvolverá frente ao Conselho a partir deste momento histórico em que a escrita feminina passa a ter maior visibilidade.

H&S — Helo, antes de tudo, parabéns pelas conquistas do CNLF. Claro que vou começar lhe pedindo que defina “literatura feminina” (risos).
HF — Obrigada! Olha, a questão da liberação feminina, quando se exacerbou nas décadas de 1910/20, acabou gerando uma verdadeira “crise de gênero”, do gênero literário sobretudo. E levantou uma problemática que já existia lá atrás: muitas formas literárias sempre foram femininas (a prosa, a poesia, a épica), e nada justifica que tenham permanecido no domínio exclusivamente masculino por tanto tempo. Veja a palavra “romança”, por exemplo; ela praticamente elucida a nossa questão! Hoje a discussão sobre “literatura feminina” está praticamente superada e o tema já não suscita dúvidas: por razões culturais — desnecessário detalhar (risos) — a escrita feminina é aquela que envolve o gênero humano, aborda elegantemente temas universais e universalizantes, temas “psicossocioerotizados”, para se usar a terminologia de Maister.

H&S — E a chamada “escrita masculina”, onde fica?
HF — Desde o início do século 20, a escrita masculina passou a representar uma expressão menor, uma vez que os escritores, em sua sensibilidade, acharam por bem se restringir à descrição de temáticas ligadas só ao universo do homem. Hoje, a escrita masculina se caracteriza por abordar temas repetitivos, como a relação peculiar que os homens têm com o gozo, produzindo assim, fatalmente, uma literatura barata, quase uma subliteratura. Considere a escassa produção masculina — refiro-me à produção de qualidade — dos últimos 30 anos; são obras frágeis e sem pesquisa por trás, que evidenciam o tropismo masculino por aquelas perorações chatíssimas sobre o estado de ânimo dos autores. Via de regra, a literatura masculina descreve amor, filhos, netos, infância, a natureza como locus amenus, e as infalíveis dores de corno. E depois reclamam que não vendem! (risos).

H&S — Em sua declaração pós-reunião com o ministro você mencionou “as regras que nos orientam”. Qual a política de articulação das tais regras?
HF — A literatura feminina não estaria onde está se não tivesse sido determinada por regras. Regras bem definidas, periódicas e que fazem toda a diferença. Estamos redigindo um manifesto, sabe, que elenca os princípios que regulam o status da literatura feminina. Não posso revelar muito pra não estragar a surpresa (risos), mas posso adiantar que a nossa prática envolverá o seguinte: 1) buscará eliminar, dos nossos textos e contextos, orais e escritos, qualquer referência direta ou indireta a expressões que carreguem aquele “ranço do machismo imperialista”, nas palavras de Simolli; 2) proibirá a construção de personagens passivas (aquelas com complexo de Bela Adormecida — chega, gente, vamos dar um basta nisto!); 3) startar um reconhecimento das diferenças entre os gêneros (ninguém vai querer correr o risco de ser confundida, né? [risos]); 4) estabelecer um rol de temas femininos, o que vai de encontro a nossa longa tradição de elaborar textos essenciais sob a forma de róis (lista de supermercado, nomes pro bebê, filmes a pegar na locadora, aniversários importantes); 5) …ah, não posso falar sem o consentimento das outras, me perdoem!

H&S — Como será empregado o dinheiro repassado ao CNLF? Desculpe ser assim tão direta, mas acho que, neste momento, todos nós gostaríamos de saber.
HF — Nossas ações práticas continuarão totalmente transparentes, como sempre. Queremos promover debates sobre a nossa literatura, em eventos, encontros, bate-papos, mesas-redondas, feiras em todos os estados possíveis. Vamos organizar a série de 24 CDs A voz feminina — que é um projeto belíssimo da Marinette de Lyra — com depoimentos, trechos de obras, imagens (são CDs interativos e bilíngües), históricos, gráficos, enfim, tudo que estiver ligado a nossa produção. Vamos espalhar estes CDs por todos os lugares, aqui e lá fora. Também vamos publicar e distribuir gratuitamente nosso manifesto, visando iniciar uma democratização dos nossos ideais. E tem mais: vamos distribuir bolsas às escritoras. Bolsas maravilhosas! Como fomento à produção, tá entendendo? Olha, temos novidades que vão enlouquecer o mercado!

H&S — Quer dizer que o CNLF vai botar pra quebrar, quer dizer, vem com tudo?
HF — Com certeza! Vamos recuperar, a exemplo do que acontece nos EUA, na Islândia e recentemente na China, a dignidade da produção literária feminina, seja de elite ou não. Faremos valer a voz silenciada há tanto tempo — vamos reverter a historiologia literária, prenhe de pontos obscuros no que se refere a nossa escrita. Vamos mostrar que nossa voz não é enganação, não é engodo; temos o famoso jogo de cintura, somos otimistas, somos férteis, somos seres humanos e vamos estabelecer o devir da nossa literatura qua ideologia. É essa a nossa batalha, contemporânea e eterna, afinal, “o feminino está sempre na moda”, nas palavras de Kranosky, que eu faço, aqui, minhas.

Luci Collin

Nasceu em Curitiba (PR). É ficcionista, poeta e tradutora. Tem 19 livros publicados, entre os quais Querer falar (poesia, finalista do Prêmio Oceanos 2015), A palavra algo (poesia, Prêmio Jabuti 2017), Nossa Senhora D’Aqui (romance) e A peça intocada (contos). Participou de diversas antologias nacionais e internacionais. É professora de Literaturas no Curso de Letras da UFPR.

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