“Um poeta de veneno nas veias não se faz; nasce pronto, ou quase pronto. (…) A partir do primeiro poema, começa a arder na fogueira de sua infernal inquisição (…). Ele próprio se condena e nos arrasta consigo, denunciador e verdugo a um só tempo. Mas sai absolvido no fim, como se purificado pelo fogo, por obra de uma misericórdia que é nele inata.”
Com essas palavras tão contundentes quanto plenas de sensibilidade poética, o crítico literário e ficcionista baiano Hélio Pólvora apresenta o poeta e conterrâneo Luís Antonio Cajazeira Ramos, 46 anos, autor de Temporal temporal, livro que reúne toda a produção literária do poeta soteropolitano.
Vencedor do Prêmio Gregório de Mattos 2000, da Academia de Letras da Bahia, entre centenas de concorrentes, Cajazeira Ramos recebeu, na época, a maior quantia destinada a premiação de livro inédito, no País: R$ 15 mil (recentemente, a Fundação Catarinense de Cultura elevou o valor do Prêmio Cruz e Sousa, também destinado a obra inédita, para R$ 80 mil).
A comissão julgadora, composta pelos escritores Antonio Carlos Secchin, Florisvaldo Mattos e Ruy Espinheira Filho, isenta de preconceitos, reconheceu os méritos da polêmica obra de Cajazeira — a qual aborda, de forma simples e direta, temas delicados e controvertidos, como o homoerotismo, a poesia fescenina e a religião. Essa postura iconoclasta gerou reações adversas, por parte de alguns acadêmicos baianos, mas em nada esmoreceu a vontade de Cajazeira de dar vazão à sua arte, à sua veia poética — por vezes venenosa, seguindo a trilha aberta, entre nós, pelo próprio Gregório de Mattos —, bem como às suas idéias, algumas das quais expostas nesta entrevista.
• Temporal temporal reúne seus dois livros anteriores, mais os poemas inéditos premiados, além de uma nova safra de textos. Por que resolveu intitular sua reunião com o mesmo título do livro premiado? Acredita que esse título aparentemente específico resuma o conjunto da obra?
O título de um livro, para mim, não precisa resumir a obra. Ele é apenas uma possível denominação. A expressão “temporal temporal” surgiu-me e foi usada no poema Bolero ou coisa assim, mas ganha novos sentidos e mais densidade quando destacada para ser título de livro — seja o trabalho premiado pela Academia, seja a obra reunida. Acho que ficaria meio sem graça algo como “Temporal temporal e poesia anterior”, ou “Temporal temporal — Obra reunida”. Prefiro o título simples, enxuto. Um temporal enxuto.
• Em que esses novos poemas diferem dos anteriores?
Algumas pessoas afirmam que tenho um estilo próprio, apesar de a obra ainda não ser tão grande. Myriam Fraga disse-me que logo me identificou como autor de meu segundo livro, Como se, ao ter os originais em mãos — e ela evidentemente só conhecia Fiat breu, o livro anterior. Os novos poemas acrescentam-se harmonicamente aos outros, e vou ampliando aqui e ali o universo temático, as sugestões semânticas, as cores rítmicas, as fronteiras da linguagem, pois desconheço barreiras e limites para a poesia. Assim, para exemplificar com a temática do “eu” lírico essa ampliação de horizontes, arrisco dizer que no primeiro livro o “eu” conversa mais consigo mesmo; no segundo, o “eu” projeta-se no “outro” por mais vezes; e nesse terceiro o “eu” dialoga freqüentemente com o “outro”.
• Houve um mal-estar por ocasião da entrega do Prêmio, na Academia de Letras da Bahia. Gostaria de falar sobre esse assunto?
A comissão julgadora que me premiou decidiu com soberania. Mas houve resistência de um ou outro acadêmico depois, ao tomar conhecimento da ousadia e irreverência de alguns poemas. Cheguei a receber conselhos para não publicar os mais polêmicos. Evidentemente ignorei os apelos. Marquei posição deixando de comparecer à entrega do Prêmio. Dei tempo ao tempo, e hoje tudo está superado: o livro foi publicado, incluídos a poesia anterior e poemas posteriores. Minha revolução é pacífica, mas determinada.
• Ao reunir sua poesia, você optou pelo critério cronológico. Algum poema ficou de fora ou sofreu alterações?
Pouca coisa ficou de fora. Só não coloquei poemas inacabados e os textos que não me convenceram como poesia. Acho até que fui muito condescendente comigo mesmo. Já as alterações, foram muitas. Na obra reunida, Fiat breu está muito modificado, enquanto Como se sofreu menos alterações. Mesmo quando ainda eram inéditos, praticamente todos os poemas dos três livros foram retocados várias vezes, em maior ou menor grau, seja numa palavra, num verso, ou em toda a composição. Minha poesia é provisória todo o tempo.
• Seus poemas mais antigos — como se vê no livro — datam de 1979. No entanto, sua primeira obra só veio a ser publicada em 1996. Por que demorou tanto para estrear na literatura? A formação e a carreira técnica atrapalharam?
Não demorei a estrear, e sim a escrever. Não fiz um único poema na infância e na adolescência. Meu primeiro verso é de dezembro de 1979, aos 23 anos. No início dos anos 80 escrevi uma overdose de besteiras, que dava para encher uns dois ou três grossos volumes, mas joguei quase tudo fora. Depois veio uma longa fase bissexta. Só em junho de 1995 baixou forte em mim o poeta, e de lá para cá não parei mais. Minha carreira técnica também começou tarde, na Receita Federal, em 1990, aos 34 anos. Mais do que formação específica e linear, tenho tendência para informação, generalidade e desalinho, com aptidões aparentemente contraditórias. Estudei para cadete do Exército, cursei Engenharia Elétrica, Agronomia, Educação Física, Medicina e Direito, gostei de matemática, ciências, filosofia, religiões, arte, literatura, experimentei drogas, meditação, malhação, alimentação natural. Larguei tudo, hoje sou funcionário do Banco Central e dirigente sindical, gosto de sexo, de sofismas e de poesia.
• Alguns críticos já disseram que você ri, sarcasticamente, dos outros e até de si mesmo. Acredita que o riso — irônico, crítico — é fundamental para a arte?
Fundamental em arte é exprimir a intenção estética de forma criativa e tocante, seja pela sugestão intelectual, emocional ou sensorial. Cada linguagem artística tem seus fundamentos, e não resta dúvida de que o humor perpassa todas elas. Há várias tonalidades de humor, desde o doce enlevo de uma leve afetação, até o impacto corrosivo de uma grave provocação. O humor é um instrumento da linguagem, um veículo que ela utiliza para se movimentar sem amarras e truncamentos, mas também é resultado, é um elemento do objeto artístico em si. A arte e a poesia contemporâneas propiciam leituras cada vez mais críticas, com base no humor que regeu ou tangenciou o momento criativo do artista.
• O poeta, contista e professor universitário Aleilton Fonseca, na introdução crítica de Temporal temporal, afirma que a galhofa, em você, viria, em parte, porque, no fundo, sabemos que a poesia “perdeu a aura”. Concorda com essa afirmação?
A galhofa em mim não me parece ter motivação numa tendência da poesia contemporânea, como o foi o poema-piada dos modernistas. É sim um modo pessoal de expressar-me poeticamente, juntamente com outras características bem próprias de minha poesia. Tenho freqüentemente um comportamento galhofeiro no convívio familiar, na vida social, até mesmo nas relações profissionais. Justamente porque faço poesia como quem vive, muito de mim impregna meus versos. O poeta que invento acaba sendo eu mesmo. E não sei se a poesia perdeu a aura, justo agora, quando ela me chega áurea, auroral, areando os horizontes.
• Como define seu estilo? Num de seus versos, você diz estar “destacado do tempo”. Assis Brasil afirma que você é um poeta pós-modernista. Aleilton Fonseca diz o mesmo, embora de forma sutil. Eu também já o classifiquei assim. O que pensa sobre essas opiniões?
Adoro essa coisa cartesiana de classificar para efeitos didáticos, de que resultam os enumeráveis ismos taxionômicos. Embora eu me proclame destacado do tempo, posso e devo aceitar ser enquadrado na contemporaneidade, nesse tal de pós-modernismo. Com certeza não sou modernista, pois não tenho as preocupações e pretensões dos que fizeram a poesia brasileira na primeira metade do século passado e dos que lhes seguiram a cartilha e o discurso. Muito menos ainda tenho a ver com os que na segunda metade do velho século abandonaram o verso e pretenderam estabelecer novos fundamentos formais para a poesia. Poetar, para mim, é pegar um pretexto qualquer e fazer disso um texto, com palavras e em versos, pleno de ritmo, carregado de sentido, capaz de provocar comoção.
• A questão do “eu”, do sujeito, na sua poesia, é essencial. Luís Carlos da Silva, na revista francesa Latitudes, destacou isso. No entanto, essa não parece ser uma característica comum a boa parte dos poetas atuais. Muitos, até, afirmam que a questão do “eu” poético estaria superada, já que suas origens estariam no Romantismo, estilo que — segundo alguns — já deu o que tinha de dar. O que acha disso e, mais, como essa questão do sujeito poético se resolve na sua poesia?
O lirismo do “eu” é característica comum à maioria dos poetas de hoje e de sempre. Não é uma questão superada e não se origina no Romantismo. O que caracteriza o Romantismo não é a tematização do “eu” lírico, mas a busca de idealização do mundo, do sentimento, da existência, e com tal intensidade, que o caminho seguido quase sempre levou à fuga da realidade. Como em qualquer época, o Romantismo foi lírico e épico, além de produzir poesia dramática. Os clássicos, os barrocos, os simbolistas, os modernistas, todos foram líricos e trataram do “eu”. Até mesmo os parnasianos. Mesmo quem foge do “eu” e nega o lirismo, como João Cabral, expressa subjetividade.
• O amor, assim como a religião, muitas vezes são vistos por você de forma pessimista, impiedosa. Isso ocorre devido às suas experiências pessoais, ou é uma questão de visão de mundo, baseada em leituras filosóficas?
Vivi as costumeiras paixões de amor e não tive experiências amorosas traumáticas, que me conduzissem a um pessimismo impiedoso, nem vejo o amor dessa forma. Gosto das intemperanças do amor e de sua fugacidade. Quando tematizo o amor, percorre em mim a timidez de mãos roçando fugidias, o ardor de corpos insaciáveis, a baba pegajosa do ciúme, o inquebrantável silêncio da indiferença etc. A religião é outra história. Jamais fui religioso, não creio em deuses, duvido da santidade humana e não sei separar o bem e o mal. Em todo caso, gosto de profanar essas coisas sagradas, como Deus, amor, eu, vida e morte.
• Sua poesia incorpora também a visão feminina e o homoerotismo. Fale sobre essas duas temáticas.
Transito facilmente pela poesia homoerótica por razões óbvias, incorporadas através de minha pele até a raiz da pelugem pubiana. Além do mais, como já disse, não tenho limites de caráter pessoal para a poesia. Minha personalidade histriônica conduziu-me a assumir qualquer papel para o “eu” poético, qualquer estado, qualquer situação, qualquer circunstância. Externo no poema o pensamento e o sentimento de alguém que sou eu apenas ali no espaço da poesia. Algumas vezes me transfiguro com tal intensidade, que invento um personagem. Já fui Deus, mulher, coisa. Ora sou bacana, ora sou malvado, ora vulgar. Às vezes estou bem, às vezes mal. Não há território externo ao chão de minha poesia. Não há face estranha à minha face poética.
• A metapoesia permeia sua obra, só que de uma forma diferente. Você faz uma metapoesia, diria, existencial — característica, de resto, presente na maioria dos seus textos. Parece-me que, o tempo todo, você está tentando se descobrir. Poesia, então, para você, é uma espécie de auto-análise?
Creio que poesia é bem mais uma transformação, uma transportação, uma transição, uma transferência, uma transcendência, ou algo que o valha. Não pretendo me descobrir, nem me auto-analisar, e sim existir no poema, estar no poema, ser o sujeito do poema, o sujeito cujo universo é o poema. Estou no poema como quem está na vida, por isso toda minha poesia é existencial, por isso que estou ali para sempre representado, a quem sempre me reapresento a cada leitura. E em cada nova leitura me vejo e me redescubro. Não é descobrir-me, mas redescobrir-me no que fui, mesmo sem ter sido, e que lá permanece, para ser eu sempre a cada visita.
• Em sua produção recente, há poemas de acentuada carga surrealista. Certos críticos e poetas, contudo, acreditam que o surrealismo, atualmente, está esgotado. O que acha?
Não sei o que significa “o surrealismo, atualmente, está esgotado”. Deve ser uma expressão surrealista. Não sei o que é assunto, forma ou tendência esgotados em poesia. Aliás, o esgotamento de qualquer coisa é um bom tema para a poesia: o esgotamento, a esgotadura, o esgoto. Pelo escoadouro de meus novos poemas vazaram, como novidade, além do surrealismo, o lirismo amoroso e a poesia licenciosa, pouco presentes nos dois livros anteriores. Quanto ao surrealismo, girou mundo no século 20, foi até Portugal e América Latina, mas no Brasil, ao contrário de esgotado, foi abortado, com o advento do modernismo nacionalista e piadista e dos posteriores formalismos inanes auto-intitulados de vanguarda. Em todo caso, imagens surreais só aparecem eventualmente em minha poesia, com poucos poemas surrealistas no todo.
• Sua poesia oscila, freqüentemente, entre o padrão clássico e a linguagem chula. A que se deve isso? Acredita que a poesia fescenina de Bocage e Gregório também deve ser considerada como alta poesia?
Mais do que oscilar entre o clássico e o chulo, minha poesia associa e integra o que nosso maniqueísmo separa em compartimentos estanques e nossa burocracia mental ordena em departamentos hierarquizados. Assim como eu beijo, eu urino, e a poesia pode falar das duas coisas. Mesmo porque o beijo pode ser um ato de traição, enquanto a urina pode ser um fertilizante agrícola. Não há valores que não possam ser questionados. O barroco de Gregório e o neoclássico de Bocage desassociam o belo e o feio, o sagrado e o profano. Eu não faço assim. Foder é divino, amar pode ser tormento, ser é uma aparência. Alta poesia é qualquer poema bem resolvido, como alguns dos licenciosos de Gregório e Bocage.
• Segundo a maioria dos críticos que já escreveram sobre sua poesia, é no soneto que você se sente mais à vontade como poeta e, nessa forma fixa, estaria o melhor da sua produção. Concorda com essas opiniões? A que ou a quem credita o seu interesse pelo soneto?
Quatro de cada cinco poemas que faço seguem essa forma fixa, de modo que minha melhor produção, estatisticamente, é de sonetos. Prefiro esse modelo pelo tamanho e ritmo da composição. Em minha contabilidade poética, número de versos, métrica, rima, disposição espacial e recursos gráficos compõem o elemento formal extrínseco do poema: o formato. A forma, intrinsecamente, é a linguagem. Não me preocupo em inovar no formato. Deixo que os formalistas façam por aí suas revoluções. Poesia não tem nada a ver com isso, pois não é uma questão de formato, e sim de forma.
• E quanto ao conteúdo?
Não me importa o conteúdo. Posso fazer um poema sobre o insubstituível prazer de atrair uma criança de sete anos, violentá-la, matá-la, esquartejá-la, assá-la e comê-la coberta de sorvete de morango e calda de chocolate. Com alegria hedonista ou medonha crueldade, a poesia se expressa na forma: a linguagem e sua riqueza sintática, semântica e rítmica. Não o valor ético, mas a comoção estética que o texto provoca.
• Em que outros novos nomes da Bahia a mídia do Sul precisa prestar atenção?
A mídia cultural quer saber mais de espetáculos e de celebridades. Quanto à literatura, a divulgação passa pelo entrosamento entre autores, críticos e jornalistas, vida social, correspondência, viagens, concursos. Autores que viveram discretamente, como Sosígenes Costa, passaram despercebidos do grande público e precisam ser redescobertos. Na atualidade, são poucos, como Ruy Espinheira Filho, os que conquistaram um espaço nacional. Alguns, como Myriam Fraga, são conhecidos pelos mais atentos, em razão de um livro ou um poema. Poetas admirados na Bahia, como Florisvaldo Mattos, são quase desconhecidos fora de nosso estado. E há os promissores, como Kátia Borges, que nem a Bahia conhece direito.
• Como vê a poesia brasileira de hoje?
Em vários lugares, neste momento, há gente debruçada sobre o papel, com uma caneta na mão, rabiscando versos. Os lançamentos de livros, os jornais e revistas literárias, os portais eletrônicos na internet, como o Jornal de Poesia, editado por Soares Feitosa, dão uma boa idéia da produção nacional. Existe poesia para todo gosto. Terminou aquela longa noite de ausência criativa, artificialmente mantida pela mídia vesga e pela crítica estéril, quando se produziu muita tolice formalista, muito lixo escrito em letras de luxo. Vivemos um saudável retorno ao verso e à perenidade da melhor poesia.