Velho radical

O homem é o único animal que mata por crueldade, por vingança, por ódio, até por prazer em alguns casos de desequilíbrio mental. O homem faz porque é racional, e a razão é cega.
José Saramago: em sua melhor forma.
01/01/2001

Por Marcio Renato dos Santos, Paulo Krauss, Paulo Polzonoff Jr., e Simone Mattos

Depois que ganhou o prêmio Nobel, em 1998, o português José Saramago deixou de ser escritor e transformou-se em turista. Ele, que sempre foi meio avesso à civilização (auto-exilou-se na Ilha de Lanzarote, na Espanha, em 91), começou a rodar o mundo numa interminável série de conferências, palestras, entrevistas e merecidas homenagens. Nas horas de folga, foi tecendo mais uma obra. A espera dos leitores foi recompensada com A Caverna (Companhia das Letras, 350 págs.), que contextualiza a caverna de Platão, em A República. O novo romance acabou sendo o desfecho de uma trilogia involuntária, completando uma linha de pensamento iniciada com Ensaio sobre a Cegueira e continuada em Todos os Nomes. “Nestas obras, passei a olhar para dentro da estátua, para o interior do ser humano”, afirma o escritor.

Mal acabou de escrever o livro, Saramago pegou o passaporte e iniciou nova turnê, incluindo duas dezenas de cidades em sete países no lançamento, entre eles o Brasil. A equipe de Rascunho também teve que se desdobrar para poder entrevistar o autor, pois o assédio ao Nobel, no primeiro trabalho após a premiação, naturalmente foi intenso. Paulo Polzonoff Jr. conversou com Saramago em São Paulo. Marcio Renato Santos acompanhou a entrevista coletiva no Hotel Bourbon, em Curitiba. Finalmente, Paulo Krauss o ouviu na conferência no Centro de Convenções da capital paranaense. Tudo para apresentar ao leitor de Rascunho um trabalho, se não totalmente exclusivo, pelo menos o mais completo sobre a passagem de Saramago pelo Brasil:

• Com quase 80 anos, o senhor ainda lança livros como A Caverna. O senhor vai morrer pessimista?
Não me considero pessimista, talvez eu seja um homem sem esperança de que o mundo vai um dia melhorar. Mas foi o próprio mundo quem me deixou assim. É só olhar para os lados. Há injustiça em toda parte. Nasci num mundo injusto e vou morrer num mundo injusto.

• O senhor já pensa na morte?
E há como não pensar? É a única certeza que temos na vida, de que um dia vamos morrer, ainda mais na minha idade. Até já sei os dizeres que vou querer na minha lápide, se é que vou ter uma.

• E por que não haveria de ter?
Hoje em dia nunca se sabe, com essa história de cremação. Você morre, te incineram e suas cinzas se perdem ao vento. Devia haver uma lei contra isto, pelo menos para os prêmios Nobel.

• Por que uma exceção para os prêmios Nobel?
Para que eles pelo menos tenham uma lápide. Que as pessoas possam visitar e ver quem eram. Porque se forem cremados, as cinzas se perderão.

E qual será sua lápide então?
Pois, teria o tradicional Aqui jaz, que eu acho muito bonito, seguido da palavra indignado, a data de nascimento e aquela outra data que ainda não sei qual é nem nunca saberei.

• Por que indignado?
Primeiro por deixar de viver, e segundo, como já disse, porque nasci num mundo injusto e vou deixá-lo da mesma forma. 

• O senhor vai morrer infeliz então?
Particularmente, até que sou uma pessoa bastante feliz, mas não totalmente, acho que ninguém o é. A felicidade não resiste a uma dor de dente. Mas ninguém que vive neste mundo de desigualdades pode ser feliz por completo, a não ser que seja muito egoísta.

Voltando ao pessimismo…
Não é pessimismo, é a realidade. Vejamos. Metade da riqueza do mundo está concentrada na mão de umas duzentas multinacionais. Enquanto isso metade do mundo passa fome, miséria, dificuldades.

• Mas tem um pouco de riqueza nas suas mãos também. Só do prêmio Nobel foi quase um milhão de dólares…
Parece muito mas não é, comparado a uma vida de muito trabalho.

• Mas o senhor parece dar importância ao prêmio Nobel, pois até gostaria de evitar que os ganhadores fossem cremados quando morressem…
É um prêmio importante sim. Mas muito mais do que o dinheiro, o prêmio me aproximou das pessoas, dos meus leitores. O assédio foi cansativo, mas foi um reconhecimento. Eu pude sentir a dimensão da responsabilidade de meu trabalho. Eu já sabia que tinha responsabilidade, mas não imaginava a dimensão.

• Foi por isso que se dispôs a cumprir essa maratona de lançamento de A Caverna?
Sim. Eu percebi que as pessoas não se contentavam apenas em ler meus livros. Elas querem me ver, me ouvir. E tem sido gratificante. Eu também estou vendo e ouvindo àqueles que lêem minhas obras. É uma experiência gratificante, cansativa, mas gratificante.

• O senhor vive numa caverna?
Todos vivemos. Eu gosto da minha. É uma ilha tranqüila. Quando chego em casa a porta está aberta, não precisamos de chave, o que já é uma conquista. Todo ser humano que precisa chavear sua casa, colocar grade nas janelas, alarme no carro, morar em condomínio fechado, vive numa caverna. De certa forma, eu também vivo numa caverna, pois preciso estar cercado pela água para ter tranqüilidade.

• O centro comercial é a caverna institucionalizada?
O centro comercial, que aqui no Brasil vocês chamam de shopping center, é uma caverna. Foi minha inspiração para o livro. É um local fechado, sem janelas, mas com muita vida própria. Meu livro não é uma crítica aos centros comerciais, apenas uma constatação de que eles são uma das poucas opções para as pessoas hoje em dia. O  centro comercial é seguro, tem ar-condicionado, não chove, tem diversão. Mas é triste que não hajam mais opções para as pessoas se sentirem seguras.

• No livro, os personagens abandonam o centro comercial e saem em busca destas opções…
E depois dizem que sou pessimista. Sim, eles fazem uma tentativa, mas o capítulo final diz que é uma viagem que não tem destino conhecido e que não se sabe como nem onde terminará…

• O velho pessimismo…
Não sou pessimista, mas também não vejo motivos para ser otimista. Vou ser otimista com o quê? Com a chegada do homem à Lua, a Marte. O homem chega a Marte mas não chega a seu semelhante. De que nos valem conquistas espaciais se há gente passando fome na Terra? Há algo errado nisso tudo. Não deveríamos começar nossas conquistas pelo que está próximo, em vez de enviar uma sonda a anos-luz de distância? O mais lógico não seria usar todo este poder para colocar um prato de comida para quem tem fome? Colocar a mão no ombro de quem está abatido, será que isto é tão difícil?

• O senhor está cutucando o capitalismo agora?
Meu amigo Norman Mailer disse-me uma vez que Bill Clinton seria o último presidente americano. Sabe por quê? Porque as multinacionais estão estabelecidas, aliás, são pluricontinentais. E não precisam mais de um intermediário político para defender seus interesses. O Norman disse isto e ele está certo.

 • Mas os americanos ainda têm dificuldades para lidar com as coisas simples como uma contagem de votos na eleição.
A burocracia é um absurdo, mas às vezes há absurdos na democracia. Parece que para o homem, as coisas simples é que são difíceis. A Caverna, por exemplo, muita gente não percebeu, é um livro simples, de sentimentos simples. Uma pessoa é capaz de chorar apenas com o carinho de um toque no ombro.

• O cachorro Achado também desempenha este papel.
Sem dúvida. Achado foi fundamental na obra. Ele aglutina todos os sentimentos de todas aquelas pessoas em torno de si. Sem ele, o livro teria um outro caminho que nem imagino qual seria.

• Não é insólito que um animal desempenhe este função?
De forma alguma, valorizo muito os cães, os animais. O homem é que deveria se espelhar neles. 

• Em que sentido?
O homem é um ser cruel. Ele é o mais cruel dos animais. Um leão mata uma presa para se alimentar. Não há qualquer sentimento neste ato que não a fome. O homem é o único animal que mata por crueldade, por vingança, por ódio, até por prazer em alguns casos de desequilíbrio mental. Os animais irracionais não fazem isso porque não raciocinam. O homem faz porque é racional, e a razão é cega.

 • Como em Ensaio sobre a Cegueira?
Exatamente. Este era o objetivo do Ensaio…, mostrar que a razão é cega.

• Quando começou a escrever Ensaio…, o senhor imaginou que estaria iniciando uma trilogia?
Não. Foi realmente involuntário. Hoje, analisando estas obras, posso dizer que até Evangelho Segundo Jesus Cristo eu escrevia sobre estátuas, sobre o exterior das pessoas. Com Ensaio…, mergulhei no interior das estátuas, fui em busca do interior do ser humano.

• Sentiu alguma diferença entre o interior e o exterior?
A estátua sabe que é estátua mas não conhece o seu interior. O interior não sabe se um dia será estátua.

 • Por falar em estátuas de barro, algumas delas, no Rio e Janeiro, também lhe serviram de inspiração para a olaria de A Caverna. O senhor disse que uma das coisas que mais lhe marcou nesta nova viagem ao Brasil foi uma pequena igreja com a inscrição: Igreja de Cristo. Fundada em Jerusalém no ano 30 d.C. Será que esta igrejinha também vai lhe inspirar um novo livro?
Esta igreja realmente não me sai da cabeça, principalmente pelos dizeres, Fundada em 30 d.C, ou seja, quando Jesus estava vivo. É incrível como as pessoas são enganadas. E é mais incrível ainda como elas se deixam enganar.

 • Então pode sair um novo livro.
Não sei. Na verdade não pensei sobre isso. Mas a maneira como esta igreja se fixou em minha mente pode ser um sinal de que alguma coisa está sendo produzida no meu subconsciente. Mas não deixa de ser uma boa idéia.

• O senhor disse uma vez que uma língua que não se defende morre. Ao não permitir que suas obras sejam adaptadas para o Português do Brasil, onde elas com certeza teriam a “tradução” mais fiel ao original, o senhor não está impedindo que nós defendamos nossa língua brasileira?
E como vocês traduziriam centro comercial? Shopping center? Nas outras línguas eu não tenho como impedir a tradução, mas no Brasil eu acho que ela não é necessária. Defendo meu idioma e os brasileiros podem conhecer melhor as origens do seu. 

• O senhor é um escritor que é chamado de pensador, comunista, pessimista. Como o senhor se define?
Sou um velho livre, cada vez mais livre. E cada vez mais radical.

 • Há cem anos, Portugal teve escritos relevantes, como Camilo Castelo Branco e Eça de Queiroz, e hoje tem o seu nome. Parece que o idioma rendeu poucos autores para o mundo. Enfim, qual a contribuição que a língua portuguesa tem a dar para a literatura universal?
Saramago: Há cem anos, Portugal tinha Eça de Queiroz, Camilo Castelo Branco, da mesma maneira que o Brasil tinha, por exemplo, Machado de Assis. No entanto, nossa língua existe há oito séculos, e sempre rendeu autores. Recentemente, acompanhamos o aparecimento de novas literaturas em países que falam português, como Moçambique, Cabo Verde e Angola. Enfim, não precisamos nos preocupar se o idioma português, como qualquer língua, dará contribuições para a literatura universal, principalmente, porque já deu, e também, porque o português naturalmente continuará contribuindo, seja por meio do Brasil, de Portugal e também dos outros países em que o idioma é falado e escrito. No entanto, precisamos cultivar o idioma. Você passa nas estradas e as placas são quase todas escritas em inglês. Então, não se sabe se amanhã os escritores brasileiros acreditarão que vale a pena continuar escrevendo em português, ou irão optar pela língua inglesa. A idioma inglês invadiu o nosso cotidiano. Enfim, precisamos nos preocupar com o destino, não da literatura, mas, da língua portuguesa.

• Quer dizer que língua portuguesa está ameaçada?
Nascemos, vivemos e morremos. Estamos sempre ameaçados. Enquanto houver língua portuguesa, haverá literatura em língua portuguesa. No entanto, há uma inquietação pessoal ao ler placas em que está escrito shopping center, que em Portugal chamamos de centros comerciais. Como disse anteriormente, nossa língua está viva há oito séculos, e, para que continue viva, é preciso que cuidemos dela.

• O senhor é contra o uso de palavra estrangeiras nos países que falam o português?
As línguas podem se comunicar. Uma palavra usada em uma língua pode ser usada em outra. O que preocupa é que mesmo tendo em nossa língua palavras que funcionam, optamos por expressões estrangeiras. Em Portugal, chamamos de rato o mouse do computador. Afinal, mouse é rato. Conhecer outros idiomas é ótimo, mas isto não significa – necessariamente – adotar uma língua estrangeira invasora. No entanto, adotar medidas drásticas contra uma língua me parece complicado.

• No seu entendimento, existem problemas nas diferenças entre o português do Brasil e o de Portugal?
Se em Portugal não usamos algumas expressões específicas do Brasil, é por que não precisamos delas, mas podemos vir a usar. Por exemplo, se eu ler a obra de um autor brasileiro e encontrar uma expressão utilizada apenas no Brasil, então, busco no dicionário o significado. De certa maneira, incorporo a novidade em minha própria língua. O erro é pensar que o idioma português está dividido em compartimentos: português do Brasil, português de Portugal, português de Angola, etc. Tudo isto faz parte da língua portuguesa.

• Qual a importância e a função do escritor?
Se você está preocupado porque vivemos em um tempo de crise, basta recordar que as crises no passado também foram críticas. Você não pergunta a um médico, neste tempo de crise, qual é a função dele. O médico responderia com toda simplicidade: ‘vou continuar a curar os doentes’. E neste tempo de crise, um escritor diz que continuará a escrever, mesmo quando já não vale a pena. Hipoteticamente, pensemos numa situação extrema, em que ninguém mais lesse. Mesmo assim, acredito que ainda valeria a pena continuar escrevendo.

“Atualmente, o único espaço público onde as pessoas se reúnem são os centros comerciais (shopping centers). Os seres humanos deixaram de se encontrar nas praças, nos jardins, nos parques. Nossas habitações transformaram-se em cavernas.”

“Meu primeiro livro, Terra de Pecado, saiu em 1947. Fiquei praticamente 20 anos sem publicar nada. Sempre me perguntam por que fiquei tanto tempo sem publicar, e, olhando para trás, respondo que silenciei por não ter nada a dizer. Poderia mentir e alegar que parei com a finalidade de adquirir experiência. Seria o mais completo disparate. Quem é que poderia garantir que eu não morreria naquele período? Em cada momento, fiz aquilo que devia fazer. Exerci diversas profissões, como serralheiro mecânico, funcionário da saúde e da previdência, editor, tradutor, e nunca tive nenhuma ambição de fazer uma carreira. Nos tempos atuais, em que todas as pessoas entraram numa correria desesperada para vencer, eu seria um vencido, por que eu não compito. Simplesmente, faço aquilo que tem de ser feito. O resultado também não me preocupa. Aconteça o que tem de acontecer.”

Marcio Renato dos Santos

É jornalista e escritor. Autor de Minda-Au e Mais laiquis, entre outros.

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