Universo íntimo

Entrevista com Maurício de Almeida, autor de "A instrução da noite"
Maurício de Almeida, autor de “A instrução da noite”
02/04/2016

Natural de Campinas, Maurício de Almeida é formado em Antropologia pela Unicamp e reside atualmente em Brasília. Estreou na literatura em 2007, com Beijando dentes, ganhador do Prêmio Sesc de Literatura, na categoria Contos. E agora, em 2016, lança seu primeiro romance, A instrução da noite, que retrata a degradação de uma família, narrada por um jovem que ensaia um acerto de contas com o passado: a partida do pai e, em seguida, da irmã. A linguagem poética e, por vezes, introspectiva, adotada à narrativa, se alinha como uma espécie de norte, levando o protagonista a uma pungente viagem interior.

Na entrevista a seguir, Maurício de Almeida fala sobre a construção do romance, o trabalho com a linguagem, seu encontro com a literatura, além de comentar a respeito da atual situação política no Brasil.

• A instrução da noite fala sobre um rapaz atormentado com o fantasma do pai, que retorna após um longo período de ausência. E o retorno dessa figura gera mais ainda desconforto e revolta a esse filho, que viu aos poucos o seio de sua família ruir em decorrência desse episódio. Em sua narrativa é usada a técnica do fluxo de consciência, e desta forma, a leitura se torna uma experiência de imersão na psique deste filho volvido num arsenal de busca, mágoa e tentativas de reconciliação com o passado e o próprio presente. Como foi chegar a esta voz tão densa que protagoniza todo o discurso do livro?
Foi um longo e intenso exercício, muitas tentativas e inúmeras revisões. As primeiras anotações de A instrução da noite já possuíam um registro não muito coloquial e que privilegiava mais o aspecto interno do personagem que o externo. E, na medida em que elaborava a história e conhecia melhor esse personagem, a voz assumia cada vez mais as características que lhe compunham, principalmente no que diz respeito à hesitação quase paralisante e a relação com a irmã, que, igual ao pai, também partiu (ou, na perspectiva do narrador em seu momento mais explosivo, também o abandonou). Uma vez que compreendi a história que queria contar, assim como tomei um grande conhecimento da figura que a viveria, trabalhei a voz com base nesses elementos. Portanto, devido à relação com a irmã (que considero tão fundamental ao livro quanto a figura do pai), sabia que o livro teria de assumir um tom evocativo, pois todo o diálogo/monólogo que o compõe é direcionado à irmã, figura que, ao mesmo tempo, simboliza a coragem que o narrador não tem e o abandono do qual é vítima e a partir do qual se vitimiza. E também sabia que o discurso do personagem tinha de ser vacilante, dúbio e contraditório. Assim, lanço mão não apenas da recuperação errática do passado (que encontra significação em coisas comezinhas como os amigos no bar ou a antiga casa da família), mas também da repetição de motes (ou leitmotivs) que reiteram sentimentos e, por vezes, os subverte. A expectativa era compor um homem combalido e algo orgulhoso, que, mesmo quando permite vazão ao desespero, prontamente se tolhe e se repreende.

• Ao ler o romance, nota-se um meticuloso trabalho com a linguagem. A realidade construída nos pensamentos do protagonista o tempo todo é diluída por certo grau de vertigem ou nebulosidade, em que o texto, por vezes, nos leva a uma experiência às cegas com o terreno indizível. De onde vem essa maneira de concatenar sentimentos e sensações de uma forma tão perturbadora e intensa?
Creio haver ao menos duas origens para tal intento: o trabalho com a linguagem e a influência de alguns autores que considero fundamentais a minha formação de escritor. Sobre o primeiro ponto, desde o início me interesso muito pela relação entre forma e conteúdo. Não por acaso cada um dos contos de Beijando dentes assume uma forma diferente: desde a concepção dos textos havia uma análise sobre o tema em questão, a intenção do conto, os personagens envolvidos e assim por diante. Embora o livro seja perpassado por uma temática comum e o enredo busque averiguar conflitos derivados da comunicação entre as pessoas, esse processo resultou em uma obra multifacetada, no qual cada conto possui forma própria que corresponde à situação ou tema específico. Essa análise entre forma e conteúdo aconteceu também no processo de concepção de A instrução da noite. No desenrolar da criação do romance, a questão norteadora era: como a forma pode representar o conteúdo e vice versa? Veja que não é uma determinação unilateral, mas, ao contrário, é um processo que surge da tensão entre esses dois elementos. A história me fornecia a voz do personagem na mesma medida em que a voz do personagem me fornecia a história. E nesse jogo complexo e ininterrupto encontrei o rumo do livro. Houve (como sempre há) uma gama de ponderações e escolhas a serem feitas que acaba determinando o resultado final. Interessante notar, por exemplo, que a escolha da voz em primeira pessoa funcionou ao tema e ações escolhidas para A instrução da noite, pois queria explorar a desestruturação final de um personagem apático e conformado que, quando posto em meio a um torvelinho, não sabe como reagir e se entrega. A mesma voz, por sua vez, não funcionaria no romance em que trabalho atualmente, pois a intenção é outra: quero compreender o processo de transformação pelo qual os personagens passam quando colocados em situações limite. Creio que eles não poderiam assumir a voz narrativa plenamente, uma vez que desconhecem aquilo pelo que passam e apenas depois de superado o processo podem revisitá-lo e compreendê-lo. Por isso, a escolha por um narrador onisciente me pareceu mais acertada.

• E as influências literárias durante esse processo…
Nesse ponto, em vez de citar nomes de livros e escritores, convém dizer que me afeiçoo com a literatura que se dedica à compreensão daquilo que é interior, o universo íntimo e o conflito entre esse e o universo exterior. Afinal, por mais que se concebam organizações, estruturas e assim por diante, no limite há o ser humano e a percepção dessas situações e entidades que o rodeia e (não raro) o cerceia. Destaco que também nesse ponto a relação de determinação entre parte e todo, indivíduo e coletivo/sociedade, não é unilateral, mas múltipla e complexa. A mim interessa compreender como se processa esse jogo no íntimo do indivíduo. A instrução da noite se detém em um ponto específico: o personagem em um círculo familiar crítico. Pretendo continuar nesse processo e ampliá-lo, perscrutando o homem em círculos maiores, como, por exemplo, a sociedade, a divindade ou a morte. Ademais, para alguns dos autores que admiro, a compreensão do ser humano a partir da escrita, que é algo unicamente humano, impõe um limite que precisa e deve ser tensionado: a própria palavra. E, consequentemente, a lógica, o raciocínio. Mas nada disso deve ser hermético, pois, de uma forma ou de outra, o livro deve prescindir o autor e precisa se comunicar com o leitor. A relação entre livro e leitor não precisa ser exclusivamente objetiva, mas pode também ser sensorial. Essas coisas todas só fazem sentido devido a um compromisso anterior e inegociável, que é o compromisso com o livro. Se será publicado, se é o livro que o leitor espera e quer ler, se renderá boas resenhas ou muitas curtidas, nada disso faz parte da relação entre escritor e livro e, se for o caso, deve vir depois do livro concluído.

 

A relação entre livro e leitor não precisa ser exclusivamente objetiva, mas pode também ser sensorial.

Você publicou um livro de contos premiado, além de elencar antologias do gênero e co-assinar roteiros teatrais. Desde a sua estreia na literatura até hoje o que mudou na sua percepção quanto ao fazer literário?
Tenho notado um grande processo de conscientização do fazer literário. E quando digo conscientização me refiro ao processo intelectual que movimenta esse fazer. Ao menos comigo, o processo de descoberta da literatura (em primeiro lugar) e da escrita literária (em segundo lugar) passaram pelo mesmo processo inicial de encantamento. No caso da descoberta da literatura, o encantamento não é necessariamente ruim, pois é possível admirar um escritor ou uma obra sem se debruçar analiticamente sobre o livro. Entretanto, quando redigi meus primeiros textos, é fato que a escrita ainda era um grande mistério e que a motivação oriunda das leituras e a inspiração talvez fossem os elementos norteadores. Um ponto importante de superação desse estágio inicial deveu-se a um questionamento feito justamente às leituras que me cativavam: por que tal livro ou trecho ou poema me comovem? Como o autor conseguiu que me comovessem? Não é uma questão de mágica, pois se trata de um processo de comunicação. A análise desses autores forneceu os primeiros materiais conscientes para redação de meus textos. A partir desse passo, então, a inspiração enquanto iluminação criativa deixou de ser elemento válido. O ponto seguinte foi analisar criticamente meus próprios textos, tentando criar o efeito desejado em quem os lessem. E parte importante desse processo foi a redação dos contos de Beijando dentes, tal como descrevi. Neste momento, fica cada vez mais claro um processo maior que, apesar de soar óbvio, a prática é complexa.

Como você avalia seu trabalho inicial com os contos de Beijando dentes ao lado do recente romance?
A confecção de A instrução da noite só foi possível porque passei pelo processo de redação (e análise) de Beijando dentes — e o livro que estou escrevendo agora só é possível de ser escrito como o concebo porque escrevi os livros anteriores. Isto é, compreendo que os questionamentos que me faço hoje ao escrever só são possíveis devido a inquietações anteriores, mais incipientes, mas não menos importantes. E que a busca por respostas é que viabiliza novas questões. Se por um lado esse procedimento significa o desmonte de certo romantismo ligado ao fazer literário, por outro me parece um caminho a evitar a simples e reiterativa articulação de elementos óbvios e vazios que, se dependessem apenas das palavras escritas no papel (isto é, perfeitamente do que depende a literatura), não significariam nada.

De que forma a literatura chega em sua vida?
A literatura chegou em minha vida por meio da música, que descobri e pela qual me apaixonei na adolescência. Por ser um adolescente de certa forma arredio e introvertido, meu interesse musical recaiu no rock. Evidentemente, tive algumas bandas nesse período. Coincidência ou não, nesse mesmo período também as aulas de literatura no colegial eram minhas preferidas, fato que me levou a ler os primeiros livros de poesia e escrever as primeiras letras de música para as bandas nas quais tocava. Não preciso dizer que eram letras de qualidade duvidosa, mas, afinal, foram meus primeiros flertes com a escrita. Um evento importante que aconteceu no mesmo período foi a organização do acervo do colégio em que estudava. Ação promovida pelo professor de história e que contou com a ajuda de poucos, mas fiéis alunos. Essa ocasião me proporcionou um encontro absolutamente casual e contundente: a poesia de Carlos Drummond de Andrade. As impurezas do branco, se não me engano, foi o livro que encontrei, folheei e levei para casa. Naquele momento, Drummond fez pouco sentido para mim, mas abriu caminho para que eu conhecesse o Vinicius de Moraes e (certamente igual a tantos adolescentes roqueiros e introvertidos) arriscasse escrever sonetos às garotas de que gostava. Mas a literatura ainda era coisa periférica. Tive antes de assumir que não possuía habilidade e dedicação necessárias à música (tampouco aos sonetos), começar a trabalhar em meu primeiro emprego no centro da cidade para então descobrir os sebos e os livros e a literatura enquanto parte essencial de minha vida.

E como a rotina da escrita passa a fazer parte do seu dia a dia?
A partir de uma questão simples e que derivou dessas tantas leituras que estava fazendo. Pensava: se esses livros dizem tanto sobre mim, será que eu não posso escrever também? E desde o primeiro texto que escrevi (já se vão pelo menos 15 anos) a literatura é parte de minha rotina, seja ela qual for.

 

Ilustração: Maurício de Almeida por Osvalter

Há tempos a maioria dos partidos abandonou qualquer direcionamento ideológico e os projetos de governo soam como listas demagógicas esvaziadas de sentido.

Para Roland Barthes, o que importa de verdade na literatura é a obra literária e o seu respectivo leitor. Você pertence a uma geração de escritores em que a autopromoção é uma constante, sobretudo nas redes sociais. De certa forma, as tecnologias têm permitido que novos escritores promovam seus trabalhos, conquistem público e dialoguem com os leitores. Indo de encontro ao raciocínio de Barthes, como você enxerga esse cenário?
Uma vez encerrada a redação do livro, o autor pouco pode fazer senão escrever outro livro, pois a obra já não pertence a ele e se estabelece tão somente na relação com o leitor. Isso significa que a obra tem de se sustentar por si, afinal, espera-se que a longevidade dela ultrapasse o autor, que não poderá argumentar ou justificar o que escreveu. O livro que depende do autor, portanto, terá menos chances de permanecer — posto que o autor não é eterno — ou mesmo se estabelecer em curto prazo — posto que o autor não é onipresente. Percebo que, por diversos motivos (entre eles a internet) e contrariando certa presunção lógica (a educação precária e a falta de interesse na literatura, principalmente a produzida no país), se publica muito no Brasil atualmente. Há uma profusão de escritores que estão publicando por pequenas e médias casas editoriais, e essas, por sua vez, progressivamente assumem papéis importantes no mercado editorial e conquistam respeito e interesse. Um dos poréns da publicação nessas casas é a divulgação e a distribuição dos livros, que, por serem onerosos, não alcançam o público como as grandes casas editoriais. A internet, então, surge como meio eficiente e barato de divulgação dos livros e a distribuição acaba sendo feita por demanda: compra-se o livro online e o recebe em casa. Mesmo que existam outras questões, creio que essa leitura não seja tão incorreta e, aliás, é salutar que se encontrem soluções assim, pois certamente muitos ótimos autores não tiveram a mesma oportunidade em um mundo pré-internet. Entretanto, ao acompanhar esse contexto, a questão da autopromoção é algo que chama atenção. Divulgar o trabalho é essencial a qualquer atividade e não haveria razão para ser diferente com a literatura. Mas, por vezes, tenho a sensação de que há investimento muito maior no que diz respeito à promoção e divulgação do que em outras etapas — e, entre elas, em alguns casos, no próprio fazer literário. E percebo também que há massivo investimento nos autores em si mesmos, muito mais do que nos livros deles.

Por que tem ocorrido isso? Qual é a sua visão a respeito?
Tendo a crer que está havendo uma inversão perniciosa de alguns elementos. Primeiro, a figura do autor está se sobrepondo de tal forma ao livro, talvez, por não conseguir prescindi-lo; e segundo, se escreve um livro antes para se divulgar do que divulgar um livro escrito. Não acredito que seja fenômeno recente, afinal, há autores que são reconhecidos muito mais pela persona do que pela obra; tampouco acredito que seja fenômeno de responsabilidade da internet, mas certamente agravado por ela. E, além de influir na relação entre o livro e o leitor, pois, nesse caso, o livro sem a imagem do autor perde a força (considerando que o investimento foi feito no autor e não no livro), ainda pondero que esse evento implica outro porém: se parte do processo de aprendizado é se confrontar com aquilo que não se compreende o funcionamento, mas que encanta de tal forma que é inevitável se questionar “como tal autor realizou isso? como posso realizar algo assim?”, o processo de aprendizado estará comprometido, pois, nesse mecanismo fomentado pelas redes sociais, fico com a impressão de que as pessoas procuram acima de tudo validação. Assim sendo, ocorre uma desconstrução do ponto de vista de Barthes, no qual a importância está investida antes no autor que no livro, o leitor se transforma em curtidas e, embora aconteça a tal publicação profusa, os livros são questionáveis e muito parecidos.

Brasília tem sido palco, nos últimos tempos, de um verdadeiro espetáculo de intrigas e escândalos relacionado à corrupção, e que tem afetado negativamente a imagem da política brasileira. Especialistas garantem estarmos vivendo umas das piores crises econômicas do país. Quais medidas poderiam ser adotadas para que um futuro mais favorável e menos utópico pudesse entoar na realidade do país?
Creio estar acontecendo um grande ruído no debate nacional e as consequências estão sendo trágicas. Em grande medida, a política depende do afinamento ideológico com tal ou qual programa, respeito ao processo democrático e um debate profundo e constante daquilo que vem sendo proposto e realizado. É verdade que podemos remontar a ruína desses elementos desde o descobrimento deste país, mas, a título de exercício, recupero apenas a última eleição presidencial, pois considero um evento exemplar do que quero dizer. O último processo eleitoral foi pródigo em declinar todos esses elementos e não por acaso estamos vivendo o agravamento de uma situação complicada. Há tempos a maioria dos partidos abandonou qualquer direcionamento ideológico e os projetos de governo soam como listas demagógicas esvaziadas de sentido. Passada a eleição, acompanhamos, por um lado, um governo que se desdiz e se contradiz, subvertendo as poucas e incipientes propostas, ignorando e sobrepujando bases e aliados históricos, promovendo distribuição de cargos para manter um castelo de areia em pé e assim cavando tenazmente o buraco sob os próprios pés, e, por outro lado, uma oposição ressentida e desarticulada, investindo naquilo que é ignorância e desinformação para desafiar não apenas o processo democrático, mas realizando esse desafio à custa do país. Qual o limite disso? Intuo que a eles não exista limite, muito embora tudo aponte para um confronto campal, que, afinal, nada mais é que o extravaso do paroxismo que foi o processo eleitoral como um todo e que perdura até o momento. Dada amplitude da questão, acredito que seja importante se pensar em etapas e, sem dúvida, acredito que o primeiro movimento a ser feito é que os formadores de opinião reestabeleçam o bom senso e a honestidade. Articulistas, comentadores, jornalistas, cabos eleitorais e políticos abandonaram o papel que lhes cabia de elevar o debate e desceram à arena do embate corporal. Portanto, talvez seja o momento de abandonarmos as paixões que mobilizam a política (pois as paixões existem e devem existir, mas certamente devem ser minimizadas quando cegam) e analisarmos com seriedade o que está acontecendo. Destaco que não acredito na imparcialidade da imprensa, esse mito de origem. Sugiro apenas que recuperemos a disposição para o debate e não tratemos a diferença como controversa ou afronta. Aliás, acredito que isso deva ser um dever enquanto cidadão. Aos articulistas, comentadores, jornalistas e políticos, acredito que isso seja uma obrigação.

 

É verdade que a vida na Terra (e o próprio planeta) é resultado de infinitas e indefinidas contingências e que, por isso, a falta de sentido seja uma sensação recorrente.

Qual é a sua lembrança mais emblemática ligada a uma experiência de leitura?
Descobri e li muitos autores e livros nas idas aos sebos do centro de Campinas nos horários de almoço do meu primeiro emprego. Foi nessa época que fiz a base de minha formação enquanto leitor e que, apesar de eclética (ou justamente por isso), tem sido fundamental para minha escrita. Então, a lembrança mais emblemática ligada à leitura é desse período. Estava no sebo Iluminações (um dos meus lugares prediletos em Campinas) e encontrei sem querer um livro até então desconhecido por mim da Clarice Lispector, uma edição surrada de Água viva. A leitura das primeiras páginas do livro em pé na loja foi estarrecedora: o que era aquilo? E me lembro até hoje da descrição que ela fazia do modo como ouvia música, colocando a mão sobre a vitrola para sentir a vibração pelo corpo.

O que tem lido ultimamente?
Desde meados do ano passado tenho me dedicado à leitura de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. E tenho descoberto o porquê de cativar leitores excelentes e ser uma referência (não somente, mas também) em termos de estruturação narrativa, construção de personagens, as análises ensaísticas em textos ficcionais e assim por diante. No entanto, por se tratar de empreitada robusta e que não pretendo vencer com pressa, mantenho uma rotina de leitura paralela. Essas leituras variam entre livros que considero importantes ou interessantes, livros que servem de referência e pesquisa aos projetos que estou realizando e, na medida do possível, os livros que recebo de autores contemporâneos, seja para conhecimento do que está sendo produzido ou para resenhá-los. No entanto, como é impossível ser sistemático quando se trata também de gostos, há alguns autores que revisito com certa constância e a despeito de programações. Além desses, sou também um constante leitor de poesia, gênero que me agrada e me influencia muito e, neste momento, estou lendo dois poetas portugueses que admiro: Herberto Helder e Al Berto.

No ato cinco de Macbeth, de Shakespeare, é dito que a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, sem significado algum. E para o escritor Maurício de Almeida, o que é a vida?
Pactuo com essa definição de vida. Penso, no entanto, que devamos destrinchar essa máxima, pois, uma vez que estamos vivos, não podemos e nem devemos deixar que essa experiência passe em branco. É verdade que a vida na Terra (e o próprio planeta) é resultado de infinitas e indefinidas contingências e que, por isso, a falta de sentido seja uma sensação recorrente. Entretanto, contingência das contingências, temos a capacidade de simbolizar, a incrível e incomparável capacidade de criar. Por isso, sendo nós os idiotas que somos, que criemos um significado a essa história movidos pelo desconforto que é estar vivo.

Por que literatura?
Por continuar sendo um músico incompetente e um roqueiro introvertido.

A instrução da noite
Maurício de Almeida
Rocco
144 págs.
Márwio Câmara

É  escritor, jornalista e crítico literário. Autor de Solidão e outras companhias (Oito e Meio, 2017) e Escobar (Moinhos, 2021).

Rascunho