Em certo texto sobre El Ensayo, o argentino Adolfo Bioy Casares constata que esse gênero literário, em princípio e em tese nascido com Michel de Montaigne “em março de 1571”, possui tantos antecedentes na história literária (e filosófica) que se justificaria a frase lapidar de Francis Bacon, escrita poucos anos depois dos Essais de Montaigne: “A palavra é nova, mas a coisa é velha”. Como Bacon só falava em “meditações dispersas”, o argentino preferiu esta definição do que seja um ensaio, de Edmond Gosse: “O ensaio é um escrito de moderada extensão, geralmente em prosa, que de um modo subjetivo e fácil trata de um assunto qualquer”.
Definição bonita, muito “escolástica”. E incompleta. Tudo que ela diz é verdade, mas não é toda a verdade. Sem dúvida, o gênero transcorre em escritos “de extensão moderada”. Também é um fato que os ensaios em verso não fizeram “escola” (recordam-se as versificações inglesas do século 18, Essay on Man ou Essay on Criticism de Alexander Pope). Também é verdade, e ali reside a grande originalidade de Montaigne, e que marcou o gênero para sempre, que o ensaio discorre “de um modo subjetivo”: “Je suis moi-même la matière de mon livre” é a frase chave dessa presença da subjetividade na organização livre das idéias, ainda que elas se destinem, como em Bacon, a “provar” uma tese. Um ensaio sói dizer tanto da matéria abordada como do homem que a aborda, e o faz sem máscaras nem voltas. O ensaísta estrutura seu discurso a partir da única palavra definitivamente mágica do dicionário: Eu.
“Interdisciplinar”, livre, digressivo sem ser errático, o ensaio pede mais do que um tema em prosa num espaço limitado e criado por uma subjetividade. Pede persuasão. E a persuasão inclui em si mesma uma longa série de estratégias de convencimento (de autoridade) onde comparecem, entre outras, a sensibilidade de uma sábia captatio benevolentiae, a erudição, a versatilidade das idéias, a elegância. No “ensaiar”, no tentar, “fortuna e jogo são essenciais ao ensaio” diz prudentemente Theodor Adorno (em El ensayo como forma, contido em Notas de Literatura, Madri, 1962). Isto é, ensaiar é “revisar” (sic), as teses podem contradizer-se e qualquer rigidez ideológica ou militante (próxima à idéia de “oratória” de Croce) resultará estranha ao gênero.
A série de dez ensaios de Tansversal do tempo de Rodrigo Petronio (São Paulo, 1975) obedece ¾ alguns deles mais, outros menos ¾ a estas características (que, diga-se de passagem, o leitor espera de antemão). Os temas abordados são literalmente “vários e variados”, e remetem todos a onze autores extraídos de um cânone tradicional, a saber: Lucrécio, Jorge Manrique, Montaigne (questão de honra para um ensaísta?), Luis de Góngora, Giambattista Vico, Voltaire, Fernando Pessoa-Alberto Caeiro, Proust e nosso Pedro Nava (aqui unidos pelo tema da memória), Francis Ponge e Ezra Pound. O percurso de Petronio respeita a ordem diacrônica, mas a unidade do conjunto, sendo de ensaios, radica mais nas obsessões do autor que na mera sucessão cronológica.
E por isso nada há de inopinado nem de paradoxal na ponte que este livro estabelece com os poemas do autor reunidos em História natural, de 1999 (únicos editados até agora). A obsessão do tempo e da história, com esse “duplo” que é a única garantia da reflexão (“espelho”), comparecia então em versos como estes: “(…)O tempo/ traz de volta do futuro a nova/ arena e o novo ciclo”, ou “Que o mundo, como uma caixa/ duplicada em si mesma, contém/ outros possíveis, tangendo/ a dissonante lira dos tempos/ sobrepostos(…)”. Admitamos: são versos belos, talvez de reminiscências borgeanas, e dá prazer (prazer da ficção crítica?) constatar a unidade que estabelecem, a seu modo, com os ensaios do autor de três anos depois.
No Prefácio de Transversal do tempo, Dirceu Villa frisa a elegância e a erudição como duas características centrais dos ensaios de Petronio. É uma verdade, e ambas características fazem parte do tecido de estratégias persuasivas do autor. Aliás, não são características cuja presença surpreenda numa literatura como a brasileira, onde o ensaio ocupa um espaço protagônico (ao ponto que a sua obra maior, Os sertões, tenha surgido, e partilhe por isso a natureza de uma variante do ensaio). Mas elas surpreendem, sim, num autor jovem e de formação universitária. Porque é preciso admitir que a academia brasileira nem sempre se preocupou com a “elegância” do idioma. Em nome talvez de certa idéia (às vezes ficcional) do que sejam o rigor e a precisão ¾ mas quem disse que um real “rigor” e uma real “precisão” não constituem objetivas estratégias estéticas? ¾, autorizam-se com freqüência discursos precários. E é também um fato que a “elegância” no manejo da língua é uma aquisição que exige tempo, anos. Por outro lado, a “idade” (como elemento retórico, mencionado como argumento, e em tanto acúmulo da chamada “experiência”) resulta ser uma estratégia nada secundária entre as técnicas persuasivas. Ora, Petronio é jovem. Dizem os humoristas que a juventude é um mal remediável. Seja, e também a “idade”, como convicção retórica, é um “bem” persuasivo de que Petronio ainda não dispõe (ao menos não suficientemente). E é isso o que justifica a extrema erudição exibida pelo autor. Imensa. Se de fato ela não “pesa” na leitura é porque o autor se cuida do abuso (remete por exemplo as citações bibliográficas a uma discreta posição no fim do livro, ou é sagaz em não exigir que o leitor esteja a par desse universo bibliográfico, mormente o da literatura latina). Dar “naturalidade” ao saber é uma virtude da pedagogia e um brilho raro da inteligência. Petronio tem essa virtude.
• O cânone literário escolhido pelo autor ¾ a série dos onze autores estudados ¾ provém de uma tradição (eurocêntrica, dirão alguns) que, em geral e em princípio, coincide com o cânone estabelecido pela alta modernidade, aquele estudado entre nós por Leyla Perrone-Moisés no (esplêndido) livro Altas literaturas, de 1998. Na fruição e na liberdade do ensaio, o autor fica isento das possíveis preferências dos leitores (por que este autor e não aquele?). Por um lado, Petronio avisa que discorrerá sobre autores que freqüentam sua “cabeceira”: gustibus, sabidamente, non est diputandum. Por outro lado, cada ensaio acaba justificando o porquê da escolha: essa é a graça, claro. Ainda assim o autor deve preparar-se para que lhe perguntem (aviso: o farei na entrevista que segue) por que especialmente Lucrécio freqüenta a sua “cabeceira” (e não Virgílio, por elementar exemplo). Ou, mais delicado, por quê, com a exceção do brasileiro Pedro Nava, nenhum latino-americano entrou na série estudada. Escritos e publicados nesta periferia do ocidente (São Paulo, ano 2002), por que muitas vezes os textos evitam um locus mais explícito?
É evidente que o autor estabelece uma relação que excede os laços meramente intelectuais com esses autores. Por assim dizer, ele ama essa tradição, e não está disposto a que eles permaneçam como meros “cacos” (sic) no vale-tudo da (até há pouco chamada) pós-modernidade, aquela que em parte suscitou os “estudos culturais”, de estragos conhecidos, vastos, lamentáveis.
• Mas a pergunta permanece. Uma série de ensaios com as qualidades destes de Transversal do tempo não devia ter incluído ¾ também ¾ temas e autores deste continente? Qual era mesmo a originalidade de estarmos longe dos centros hegemônicos? E as outras que porventura tenhamos?
É pergunta que se faça, depois do prazer de se ler a Transversal? Justamente sim, e será a primeira. Prometo.
• Promessa é dívida (e, no caso, dúvida): Por quê, com a mencionada exceção de Pedro Nava, não há latino-americanos, incluídos os brasileiros, nos teus ensaios de Transversal?
Esse é um fato que me incomoda também, e a crítica é bastante pertinente. Creio que essa lacuna continental se deva a motivos de várias ordens. O primeiro é técnico. Para o propósito geral do livro, que se pretende um livro de ensaios sobre autores que vão de Lucrécio, século 1, a Pound, século 20, devemos convir que há muito mais a história do velho mundo do que da América. Por outro lado, há motivos também pessoais. Como você disse, eu amo essa tradição. E acredito que boa parte do seu valor escapa a esse aspecto estritamente ideológico, marcadamente eurocêntrico, que você notou. Essa questão é muito delicada, e não sei se é possível desenvolvê-la aqui. Talvez eu tenha até de maneira inconsciente feito a escolha com o objetivo de criticar indiretamente algumas interpretações culturais, sociológicas e desconstrutivistas que grassam em terras brasileiras, e que eu considero em sua maioria bastante equivocadas e retrógradas, em se tratando da nossa realidade. T. S. Eliot disse certa vez que Dante elevou a poesia a um ponto onde ela nunca tinha chegado e ao qual provavelmente nunca mais retornará. Acho difícil ver nessa asserção uma simples boutade ou o cabotinismo de um poeta católico. Tampouco ela é a estratégia de um caipira oportunista do Mississipi que aspirava ser integrado ao grande patrimônio artístico europeu. Só quem não conhece literatura, finge conhecer ou está interessada em usá-la como ornamento de sua vaidade e como pretexto de seus pressupostos teóricos discutíveis é capaz de reduzir a questão a esses termos. Para quem se preocupa com a arte poética, é impossível terminar o último canto do Paraíso sem perceber que algo de muito sério está acontecendo ali. Temos que ter humildade para reconhecer que nossas premissas ideológicas, sejam elas inspiradas teoria que for, não suportam o peso esmagador daquela poesia. Além do quê, até mesmo os críticos dessa tradição canônica européia (a própria Leyla Perrone-Moisés, por exemplo) estão hoje em dia revendo muitas das coisas que diziam décadas atrás. Um outro motivo é o seguinte: por mais que o conceito de Ocidente seja uma abstração sem muito valor empírico, há alguns aspectos quase intransponíveis. Um deles é a língua. Tenho muito interesse pela literatura e a arte da Índia. Também sou obcecado pela música, o teatro, a tapeçaria e as artes plásticas de algumas regiões do Sudeste Asiático. Imagino que alguns dos melhores artífices do planeta estejam lá. No entanto, como eu posso sequer falar desse tipo de arte? Pressupõe um mínimo de conhecimento antropológico e lingüístico sem o qual tudo o que dissermos é um devaneio. Ao passo que um poema de Manrique é praticamente cristalino aos ouvidos de qualquer leitor de poesia dos dias de hoje. Enfim, eu não quero ser e não sou porta-voz de nenhum cânone. Acredito que todos os valores são construções históricas, localizadas e em transformação. Só acho que ainda se repete à exaustão um relativismo que caracterizou o século 20, sem perceber que boa parte desse conjunto de idéias está com a data de validade vencida. É urgente pensar a situação atual em outra chave, que ainda não sei qual é, mas imagino que não seja a mesma que pretendeu suplantar alguns valores estruturais óbvios da poesia em troca da supressão temporária do nosso complexo de inferioridade. Isso só serve para esconder a lama dos nossos sapatos, não ajuda em nada, é um entorpecente que inebria com uma grandeza artificiosa. Seremos anões em cima de pernas-de-pau. À revelia de tudo isso, planejo reunir alguns textos sobre poetas brasileiros que admiro em um volume reservado especialmente a isso. Quanto aos hispano-americanos, são tantos e tão bons, que precisariam de um espaço especial. Devem entrar em um novo livro de crítica que estou confabulando, cujo título provisório é As artes do conceito. Esse é o motivo casual e último dessa malfadada ausência. Agora, um adendo: esse negócio de dizer que sou erudito é balela sua. Erudição é uma coisa muito séria, tributo de pessoas muito sábias e eminentes. Eu sou apenas um poeta que fala de literatura, um leitor entusiasta de Octavio Paz e Lezama Lima. Você é que está tentando captar a benevolência do leitor para a minha causa.
• Conversamos alguma vez sobre a sua paixão e a minha por Lucrécio, que acabou entrando nas nossas obras poéticas ¾ aliás, sem que então soubéssemos um do outro. Você dá as devidas explicações no seu ensaio, mas adiante-nos: o que é que o Lucrécio tem?
Lucrécio é um autor magnífico. Eu sou fascinado por relatos cosmogônicos, e o De Rerum Natura é um dos melhores do gênero. O que mais me interessa nele é uma visão imanente e material do universo, dos nossos afetos e faculdades, frutos do que ele chama de simulacros. Há momentos de muita beleza, quando ele trata do infinito, por exemplo. Ele concebe um tipo de infinito discreto, não extensivo. É como se o universo fosse finito no número de seus elementos, mas infinito na potência de subdivisão de cada um deles, o que se liga à sua concepção de átomo. É uma definição da matéria semelhante à que Zenão de Eléia propôs para o tempo, na famosa — e engraçada — fábula de Aquiles e da tartaruga.
• Por que se lê Góngora em 2003? E por quê, além do ensaio sobre ele na sua Transversal, você está dedicando uma tese universitária a ele?
Lezama Lima disse em algum lugar que a claridade é um valor burguês. Enquanto vivermos em uma sociedade plutocrática e funcional, preocupada com a exterioridade das coisas, que está o tempo todo exigindo utilidade dos objetos culturais e sempre querendo transformar todas as obras do espírito em instrumentos de propagação do que quer que seja, a obscuridade de Góngora terá sua atualidade assegurada — pela negativa. Ele é um ótimo antídoto contra as coisas que mais execro: o populismo e a publicidade. Uma bela aventura nos meandros e subterrâneos do Sentido e um elogio do puro Intransitivo. Acredito que Góngora inaugura uma das correntes da alta modernidade, e a partir dele podemos pensá-la em uma perspectiva secular. Isso nos poupa do erro de transformar o moderno em modernismo e este, em modismo, como sói acontecer em um país que tem uma inclinação natural para a superficialidade. É também um autor com pouquíssimos estudos em língua portuguesa. Espero contribuir um pouco para a sua compreensão.
• Comente para nós a definição que Ortega y Gasset dava do ensaio: “Estas Meditaciones, exentas de erudición (…) no son filosofía, que es ciencia. Son simplemente unos ensayos. Y el ensayo es la ciencia, menos la prueba explícita”.
Se não me engano o próprio Ortega y Gasset diz: um livro de ciência é antes de tudo um livro. O excesso de protocolos teóricos que se desenvolveu no meio intelectual de tempos para cá deu ao debate um caráter um tanto forense. Eu acho isso ruim. Há uma ansiedade grande em demonstrar a propriedade dos conceitos e em legitimar uma opinião com a opinião de outros autores, o que, diga-se de passagem, é uma tautologia. No fundo, se pensarmos friamente, esses são resquícios de uma visão autoritativa do saber, cujo valor de verdade está ligado à autoridade de quem o produz, de onde se produz e daquilo que lhe dá fundamento. Isso é complicado. Sei que o trabalho da erudição não pode se dar ao luxo de prescindir das provas, mas também não pode fazer delas a sua razão de ser. Tenho minhas dúvidas se o mais exato é necessariamente o mais justo. Mesmo a idéia de ciências humanas é muito discutível. Dizer que o estudo da literatura é uma ciência é um bom subterfúgio para se livrar dela sem remorso. O ensaio deve ser mesmo uma ciência sem provas. O que me interessa nele é que há um predomínio da narração sobre a demonstração, não é necessário recorrer o tempo todo àquilo que os antigos chamam de exempla, exemplos, para ilustrar e defender a sua argumentação. Isso lhe dá uma grande elasticidade, e talvez por isso ele seja um gênero que possibilite tanta liberdade. No ensaio é a consciência do ensaísta que protagoniza a cena e o enredo tecido pelos fatos, idéias, obras e autores. Está preocupado em levantar hipóteses e conjecturas, tecer relações entre as coisas, estabelecer genealogias e vincular o poema a uma tradição poética. Não pretende defender uma tese. Isso faz dele um espaço sui generis do pensamento. Os erros são muitos, incontáveis. Às vezes beiram a inconseqüência. Mas temos que correr o risco. E esperar para ver se algum de seus lampejos, por força do hábito, ganha a dignidade daquela outra ciência, oculta, que é a base de toda a educação do gosto e tem como única finalidade a aquisição da nossa própria consciência em movimento.