Uma mulher chamada Consuelo De Castro

Uma pessoa que tenta de todo modo não virar uma coisa
Consuelo De Castro: “sou uma pessoa que tenta de todo modo não virar uma coisa”
01/04/2002

Os anos 60 estão distantes, mas ainda presentes, presos à pele, dentro da pele, no fundo do coração, onde repousam as palavras mais ardentes do tempo, da angústia verdadeira do grito. Os anos 60 estão calados no fundo da Galeria Metrópole, em São Paulo, na guerra da Faculdade de Filosofia, na rua Maria Antonia. Na figura dos jovens poetas discutindo na escadaria da Biblioteca Municipal Mário de Andrade. São Paulo guardada no fundo da memória e nessa memória a figura de Consuelo de Castro. Tantos anos. Tantos. Hoje Consuelo é autora de mais de 50 peças e textos para dramaturgia em televisão. Obras publicadas no Brasil e em vários países. Prêmios importantes como o Molière e do Serviço Nacional de Teatro. Seus trabalhos já foram — e ainda são — objeto de teses de doutorado e mestrado. Trabalhos nos Estados Unidos, Portugal, Rússia, México, Alemanha, França, Espanha, Cuba e outros países. Aulas de Teatro em Havana e várias capitais brasileiras. Atua no Grupo Tortura nunca mais. Estréia em teatro em 1969, com a peça À flor da pele, direção de Flávio Rangel, texto remontado mais de 70 vezes ao longo dos anos. Alguns de seus textos teatrais mais conhecidos: Caminho de volta, O grande amor de nossas vidas, Implosão, Último capítulo, Aviso prévio, Uma caixa de outras coisas. Uma mulher. Os anos 60, o olhar da estátua de Mário de Andrade nos jardins da Praça Dom José Gaspar. A poesia que nasce, o aceno como cicatriz. A rua São Luís, árvores que vão morrer. Um chá de maçã. A mochila cheia de sonhos, tantos sonhos que não cabem na cabeça. Tanta vida por viver e a vida tão pouca a ser vivida. A manhã de repente explode numa bola de fogo. Explode e se desfaz. Os sonhos morrem. Mas os sonhos sempre estão vivos. Como a palavra. Como as cenas. Como o palco, as figuras do palco, as sombras do palco. Como o olhar aceso ao tempo e à vida.

Dezoito das mais de 50 peças de Consuelo de Castro estão sendo reunidas em livro pela Funarte. Dos volumes constam os prefácios e críticas escritos ao longo dos últimos 35 anos de dramaturgia, assinados por, entre outros, Antonio Cândido, Décio de Almeida Prado, Yan Michalski, Sábato Magaldi, Carlos Guilherme Motta, Mário Schemberg, Ilka Zanotto e Gianfranceso Guarnieri. A obra trará, também, estudos acadêmicos sobre o teatro de Consuelo de Castro, escritos e publicados nos Estados Unidos, Cuba, Rússia, México, França e Alemanha, entre outros países. Exemplos: “Revolution, wahnsinn und suizid als mittel zur gesellllschaftesbewaltingung im werk der dramatikerin Consuelo de Castro” — Tese, Frankfurt, doutora Grabrielle Kholl; e “Abschlubarteir zur erlangung des Magister Artium im Fachbereich Neuere Philogogien”, Der John Wolfgang Goethe Universitat — Institut fur Romanische Sprachen und Literaturen. Outro exemplo: “Actimg Radical: The Dramaturgy of Consuelo de Castro” — Margot Milleret, edited by Catherine Larson and Margarita Vargas — Boomington: Indiana University Press.

• O que significa chegar aos 56 anos com mais de 50 peças de teatro escritas ao longo desse tempo?
Ainda não parei para avaliar de um jeito profundo. Em princípio, parece ser bonito, sólido, é saudável interiormente saber que se tem uma historia profissional significante. Mas sinto remorsos com a vida, a vida vivida e não escrita. Sinto que escrevi mais do que vivi, que sempre fui work a holic, desde menina e não acho isso bom. Como diz Carlos Drummond: “A literatura estragou tuas melhores horas de amor”.

• Você lembra de seu livro de poesia lançado em 1962, A última greve, quando você tinha 16 anos? Como era?
Claro que lembro. Foi o meu início em literatura, minha entrada no mundo das palavras, dos conceitos. Olhando com olhos desapaixonados, sem me amar nem me odiar pela ousadia de lançar um livro de poemas aos 16 anos, acho-o hoje uma estranha mistura de prematuridade e pretensão. Há poemas que até hoje eu assinaria, mas a maioria acho ruim. No entanto, não foi isso o que achou Guilherme de Almeida, que prefaciou o livro, que o enviou pessoalmente à editora Martins, e toda a crítica da época, assim como um sem número de intelectuais importantes daquele tempo. Guilherme de Almeida escreveu um bilhetinho entre deslumbrado e assustado por minha pouca idade. Para agravar a estranheza, eu tinha 16 anos mas parecia ter 11. O livro foi um acontecimento decisivo na minha vida. Mudou minha relação com o mundo. Eu passava a ser uma pessoa que tinha publicado um livro, que recebia críticas pelos jornais, que era cobrada, analisada e avaliada profissionalmente. Menotti Del Picchia chegou a escrever uma crítica enorme na qual disse que meu livro implicava numa revisão urgente sobre o modo de ver a juventude. Como até então eu tinha uma baixíssima auto-estima, o livro me ajudou a me ver com olhos menos implacáveis, sem me detestar tanto. Afinal, eu tinha um dom, alguma coisa que vinha sabe Deus de onde, alguma coisa mágica, espontânea, que ninguém me ensinou nem cobrou nem induziu e que apareceu de repente, de um jeito fácil, fluindo feito cachoeira. Escrever sempre foi mais fácil para mim do que fazer qualquer outra coisa, a mais corriqueira que fosse e quando isso se manifestou e foi aprovado externamente por todas aquelas pessoas tão exigentes, eu me senti muito, muito rica . Havia sido presenteada com um dom, uma coisa mágica. Que ninguém poderia me tirar nem fazer murchar. Me senti forte.

• Você ainda acredita na poesia?
Sempre. Ver e sentir as coisas profundamente, livremente, é um ato de poesia. Manter viva as utopias, a pureza de coração, tudo isso é poesia. E poesia para mim é resistência, revolução permanente, porque tudo nesse tempo, nesse estágio da ordem mundial leva à concretude mais imediata e burra, a não transcendência, a aparência mais reles. Como gênero, vejo a poesia misturada a todos os gêneros literários. Outro dia li um trecho de Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, e estatelei. Era de uma aspereza, de uma economia de verbo tão grande e, no entanto — ou por isso mesmo — de uma poesia quase inacreditável. As palavras tinham música, tinham um poder de fogo, entravam na gente. O teatro é poesia. Não estou falando da poesia disposta de modo literário, mas da poesia em si, da sua essência. Você sabe o que estou dizendo. Anotações para um diário enlouquecido, que você escreveu para o livro Maria Antonia: uma rua na contra mão (1988), de Maria Cecília Loschiavo dos Santos, é prosa, mas é poesia, poesia em estado bruto, como o trecho do Raduan. Na minha vida profissional, como escritora, não fui poetisa de fato, nunca ultrapassei o primeiro livro nem tentei. Encontrei o teatro muito cedo e ele e eu nos apaixonamos e continuamos reféns desta paixão — que não sei se me faz bem ou mal, com sinceridade. Mas também não consigo me imaginar longe dela. Viver sem fazer teatro me parece tão absurdo quanto viver sem amar.

• Com a peça Prova de Fogo, de 1968, você atingiu tanto a esquerda quanto a direita. Por que isso ocorreu?
Porque Prova de Fogo mostrava a gente com toda a nossa grandeza e fraqueza, fragilidade e força. Éramos jovens, recém-saídos da adolescência e já enfrentávamos os militares, os valores de nossas famílias, a estrutura universitária e a relação professor-aluno. Ainda estávamos com um pé do lado de cá do muro do novo tempo enquanto tentávamos derrubá-lo aos pontapés e unhadas. Não havia a supervalorização do jovem, nem a heroicização do estudante — que naquela época era a única força política viva que havia se mantido e ainda se manifestava. De todos os lados recebi críticas e a censura proibiu o texto, na íntegra, quando o Teatro Oficina o estava montando. Fui acusada de atentar contra tudo o que se possa imaginar, feri todos os itens da lei de censura da época. Mas em vez de me sentir massacrada, isso me deu uma tremenda sensação de poder. Eu tinha 20 anos, um jeans, uma bota topa tudo, militava no ME como todo mundo, adorava o Zé Dirceu e o Palmeira como todo mundo e como todo mundo  fugia da policia. Nas horas vagas, estudava Ciências Sociais e pensava em me especializar em Antropologia. Cheguei a esboçar um projeto de tese de mestrado para a Ruth Cardoso. Quando a censura jogou aquela bomba na minha cabeça, quando os meus colegas da direita e da esquerda ficaram putos, passado o primeiro momento de susto e de mágoa, eu me senti dona de um grande poder e entendi que o teatro podia muito.

• São 40 anos de literatura e 35 de carreira na dramaturgia brasileira: o que significa isso para você ?
Das mais de 50 peças, joguei fora pelo menos 15. Trabalhei muito para escrever, para montar, para jogar fora, até. Todos estes anos de dramaturgia brasileira significam um motivo de orgulho por ter teimado num ofício que é sempre a última das alternativas de qualquer política cultural, que vive em estado de semi morte, que cada vez se torna mais difícil. Gosto de ter me mantido teimosa. Gosto de não ter desistido. Porém nunca vivi propriamente de teatro. Fui publicitária — e boa — por quase duas décadas, fui editora, cronista. Vivi de muitas outras maneiras de usar a palavra. Conto nos dedos as vezes em que o teatro pode servir como meio de vida. Aconteceu, mas foi tão aleatório que não pude jamais me entregar ao teatro profissionalmente, como opção única e definitiva. Agora que me tornei produtora, agora sim, agora posso pensar nisso, porque não mais estou à mercê do desejo, da agenda e de projetos alheios e sim dos meus. Então dá para programar as coisas, organizar de um modo mais profissional no verdadeiro sentido da palavra: profissão é o ofício que a gente exerce e que nos dá o sustento, seja ele muito ou pouco. Eu agora quero viver de teatro, para o teatro, mesmo que seja para viver uma vida mais simples e também mais complicada — porque produzir é um ó!

• O que é essencial, para você, na escritura dramática ?
Os diálogos. Porque para fazer diálogos eficientes, é preciso lidar com coordenadas severas, como o tempo, a maturidade efetiva do personagem e a coordenação da escalada do ritmo das cenas, portanto das réplicas, até o auge do texto, que é quando os personagens se enfrentam consigo mesmos, se desnudam diante do público estabelecendo com ele uma comunhão interativa e criadora. O público e o palco têm uma relação de amor e só quando a têm é que valeu. Para tê-la, no entanto, há que se fazer um trabalho que tem muito de técnica, muito, muito. A inspiração é só um primeiro sopro.

• A crítica Ilka Marinho Zanotto diz que seu trabalho tem influência de Strindberg. Beckett e Tchekhov. Você concorda com isso? Como é essa influência?
Ela foi generosa. Yan Michalski, no prefácio da coletânea Urgência e ruptura também (ele também citou essa possível influência). Mas eu não vejo, não. Acontece que o escritor nunca se vê criticamente de modo total, então não sei. O que sei é que tenho profunda admiração por estes escritores. Com Strindberg chega a ser uma afinidade amorosa, espiritual.

• Você foi presa cinco vezes. Você visitou presídios políticos por quase seis anos religiosamente, todos os sábados. Você teve muitos amigos que foram arrancados da vida para sempre pela repressão, como José Roberto Arantes, Antonio Benetazzo, Iara Iavelgerg. Você foi acusada de ser guerrilheira pela ditadura militar. Você foi guerrilheira?
Não, nunca fui guerrilheira. Mas meus melhores amigos foram. Amigos que morreram em combate ou sobreviveram e hoje estão aí, fazendo história, fazendo política de qualidade. Não fui guerrilheira por opção política. Eu era contra a saída da luta armada. Aos 15 anos entrei num partido político de esquerda. Aos 20 me afastei do partido e entrei na massa do ME, na turma do Zé Dirceu, mais exatamente, e fiquei sendo apenas militante estudantil. Depois veio o AI-5 e tudo o que sabemos. Fiquei na minha, escrevendo, sobrevivendo, apoiando os amigos presos, agitando o que dava na luta pela redemocratização do país. Nunca fui guerrilheira, mas estive ao lado dos guerrilheiros todo o tempo, enquanto pude.

• O teatro ainda é resistência?
Ainda. Até de quem faz. Porque continuar fazendo teatro com todos os obstáculos que temos, só mesmo tendo uma competência enorme para resistir. A tendência natural seria a desistência. Mas a gente resiste porque não dá para acreditar em forma mais viva de comunicação, mais possante, mas profundamente humana. Teatro é comunhão, é generosidade, partilha. Eu tenho fé no teatro como se tem fé num Deus ou Messias.

• Condição feminina.
Gosto de ser mulher, sempre gostei. Acho uma coisa muito boa ter nascido com um organismo capaz de gerar hormônios que me fazem compreender melhor o ser humano. A verdadeira humanidade passa pela mulher. Não só no sentido literal do parto. Mas no espiritual. Não sou feminista, no sentido literal também, mas acho que a mulher é uma força maior.

• Anos 60.
“Manhãs incendiadas. Auroras cortadas a faca” (*). O melhor de mim. A construção da minha alma. Minha formação ética. Meu primeiro sentimento do mundo. Encontro da esperança, da obstinação pela utopia, paixão, paixão, paixão. A pureza dos verdadeiros companheiros, a pureza da arte, do teatro, do enfrentamento ao cinismo. O encontro com minha força para dizer não e meu tesão de buscar algo passível de se dizer sim.

• Quem é Consuelo de Castro ?
Nada muito importante. A mulher apaixonada de Laercio de Almeida Lopes, a mãe orgulhosa de Pedro Paulo e Ana Carolina, a amiga dos meus amigos, mais uma companheira sua na luta com as palavras. Uma pessoa que tenta de todo modo não virar uma coisa.

(*) Frase de Anotações de um diário enlouquecido, já citado.

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho