Ayelet Gundar-Goshen é romancista, psicóloga e roteirista israelense. Publicou quatro romances, dos quais três estão traduzidos ao português: Uma noite, Markovitch, Despertar os leões e Outro lugar. Seus livros estão traduzidos para dezenas de idiomas. Apesar de utilizar o cenário israelense como pano de fundo, suas obras não são sobre conflitos políticos e sim sobre as questões humanas que nunca terminamos de compreender: por que pessoas boas cometem atos maus? Onde está o equilíbrio entre maternidade e superproteção? Como combater o preconceito que está em nós mesmos? Ayelet Gundar-Goshen concedeu esta entrevista por e-mail sobre essas e outras questões.
• Em hebraico o título de Outro lugar é Relocation, ou seja, o ato de mudar-se para um novo local e lá estabelecer seu trabalho e lar. Na literatura judaica produzida na diáspora, os judeus nunca estão 100% em casa, em lugar algum. Isso se aplica à literatura israelense?
Ser um outsider é um elemento chave da identidade judaica. Dois mil anos de saudades pela terra prometida, sentir-se deslocado, são experiências profundamente arraigadas na nossa memória coletiva. Isso não desaparece automaticamente ao conquistarmos um estado nosso. Ao contrário, uma vez que você tem um lugar próprio, você começa a lamentar a discrepância entre o estado que você imaginou e aquele que de fato conseguiu, e a política israelense tem dado muito para lamentarmos. Me parece que quando se lê prosa israelense, é sempre a história dos outsiders.
• Assim como em seu romance Liar (sem tradução no Brasil), além de enfrentar tabus, você concordaria que um tema presente em todos os seus livros até agora é o efeito da mentira na vida de uma pessoa?
Sim, concordo completamente. Há uma hipocrisia irônica com relação às mentiras — todo mundo mente. Por outro lado, mentir é um grave crime social. “Mentiroso” é um dos piores nomes que se pode usar para se referir a alguém. Se alguém for agressivo, estúpido, maldoso — ainda é melhor do que ser um mentiroso. No meu romance Liar, assim como nos outros, eu queria explorar o papel fundamental que as mentiras exercem em nossas vidas: às vezes uma mentira é a matéria da qual é feita uma nação, às vezes é a cola que segura um relacionamento. A mentira é frequentemente a arma daqueles que não conseguem lidar com a verdade. Como sociedade, detestamos as mentiras — a não ser que nos sejam contadas por contadores de histórias. Damos ao 007 a licença para matar, e damos ao autor a licença para mentir. Escritores são mentirosos profissionais, mas são também contadores da verdade profissionais. Nos identificamos com as histórias porque algumas nos relatam muito mais a verdade sobre nós do que aquilo que “realmente aconteceu”.
• Obviamente seu trabalho como psicóloga contribui para a sua escrita, mas de que forma seu trabalho como romancista contribui para a sua compreensão das pessoas?
A ligação funciona nos dois sentidos. Como romancista, estou sempre me relembrando de que não há “personagens secundários”, que toda história poderia ser contada da perspectiva de um “personagem secundário”, e que se eu fizer isso, será uma história completamente diferente. Em terapia, isso me ajuda a mostrar aos meus pacientes que o seu modo de contar “o que aconteceu” é apenas uma de muitas opções, e que talvez outras pessoas ao seu redor vejam os fatos de uma maneira completamente diferente. Sinto, às vezes, que as pessoas vêm à terapia porque se sentem como um personagem secundário em suas próprias vidas — e que meu trabalho é de ajudá-las a tornarem-se o personagem principal.
• Você mencionou um verso do poema de Amichai: “O punho um dia foi uma palma aberta”. Canetti costumava lamentar o fato de as pessoas estarem lendo menos romances no século 20, e por isso não estavam mais aprendendo sobre “o outro” por esse canal. Você acha que a literatura ainda tem o poder de “manter a palma aberta”?
Com certeza penso que sim. E não sou a única. Nosso primeiro-ministro anterior, Naftali Bennet, excluiu dos currículos escolares um romance que apresenta um caso de amor entre uma mulher israelense e um homem palestino. Essa censura de direita demonstra que mesmo hoje em dia, as pessoas têm medo do poder das palavras e de sua capacidade de criar novas realidades.
• A personagem Sirkit, em Despertar os leões, soa muito verossímil porque ela é boa e má, algo que não se vê mais com frequência na ficção quando aborda questões de teor político. Isso também é verdade sobre seu personagem Jamal, em Outro lugar. Você tinha alguma dúvida quando criou esse personagem, sobre como isso seria recebido pelo público?
Eu não queria representar pessoas de descendência africana como anjos o os brancos como agressores. Isso é tão raso quanto fazer o oposto. Quando crio um personagem, independentemente da cor de sua pele, quero que ele seja verdadeiro. E a grande verdade sobre seres humanos é que somos criaturas complicadas, capazes do melhor e do pior que se pode imaginar.
• Outro lugar certamente será lido (e, portanto, discutido) em dezenas de clubes de leitura judaicos nos Estados Unidos. Você ficaria surpresa se também fosse lido e discutido em comunidades afro-americanas?
Espero que seja.
• Na página 139, lemos: “Estávamos satisfeitos com a nossa felicidade, não sabíamos que essa era uma arrogância pela qual se paga um preço”. O preço é pela felicidade ou pela presunção de que se tem direito à felicidade?
Pela presunção. Por pensar que irá durar. Por não celebrar qualquer momento dela.
• Você escreve algumas cenas muito dramáticas que ocorrem em espaços bem diferentes entre si, desde grande abertura (o deserto, em Despertar os leões) a muito circunscritas (o beco atrás da sorveteria, em Liar, ou o quarto de Jamal, em Outro lugar). Quando você escreve, você cria por cenas?
Em alguns momentos, sim, muito. Tenho imagens muito vívidas. Em outros momentos, sou levada pelo interior e não pelo exterior.
• Em que momento você decide qual será a forma do romance?
Não sei se consigo responder, é uma longa jornada, com muitos erros no caminho.
• Existe algo sagrado demais para ser ficcionalizado?
Nada, contanto que a ficção carregue a verdade dentro de si.