Uma função do imaginário

Entrevista com Affonso Romano de Sant’Anna
Affonso e Marina: “Dois pintores que saem para pintar ao ar livre e cada um retrata a cena ao seu modo”.
01/07/2005

Em entrevista ao colega Álvaro Alves de Faria, o poeta Affonso Romano de Sant’Anna fala da viagem que fará às Coréias, em agosto próximo, onde um festival internacional de poesia pretende diminuir, por meio da palavra, as diferenças entre os coreanos do norte e do sul, rompendo entre eles, assim, a “falsa barreira” que lhes foi imposta. Para Affonso, o evento tem algo de “lindo e insólito”. Nesta conversa, o autor do recém-lançado Vestígios também aproveita para discorrer sobre as distâncias, cada vez menos acentuadas, entre imaginação e memória; sobre os tantos tropeços da literatura e da arte contemporâneas; e sobre a vida de casado, compartilhada com a escritora e também poeta Marina Colasanti.

Seu primeiro livro, Canto e palavra, foi publicado em 1965. São 40 anos de poesia. Como foi, ou como tem sido essa trajetória?
Quando eu era adolescente, participei de várias olimpíadas estudantis. Fui bom no salto tríplice, fiz arremesso de peso, pulei obstáculo com e sem vara e, na corrida de 1.800 metros, demonstrei resistência. Aprendi desde cedo que a vida e/ou ser escritor é uma carreira de longo curso. Nesse período já vi “atletas” (ou escritores) mais bem-equipados que eu fracassarem. Tinham muito talento e deu em nada. Outros tomaram caminhos equivocados, começaram a fazer a literatura que outros queriam que eles fizessem. Inventaram um conceito de História para si, onde eles eram donos dessa História. Enfim, coisas que a psicanálise e a sociologia explicam melhor. Minha trajetória está toda inscrita nos meus versos. Como me dizia brincando o Otto Lara (Resende), na minha poesia só falta o CPF. Acho que vou botá-lo no próximo poema.

Dentro desses 40 anos, o que significa este Vestígios em sua obra poética?
Uma pedra a mais na casa de palavras que estou erguendo para me abrigar e onde tento me explicar a mim mesmo e o que penso/sinto do/no mundo. Ali, há “vestígios” em sentidos vários. Porque, afinal, a arte não é senão um vestígio, um sinal daquilo que alguém tentou perpetrar.

O poema Elefantes é comovente. Chama-me atenção o livro inteiro. Mas destaco três versos do poema Ficções, porque me soam como uma constatação que vai além da poesia: “Torna-se cada vez mais vago/ distinguir/ memória e imaginação”. O que significa isso para você?
Elefantes pertence ao rol de poemas que me surgem da leitura de livros. Às vezes você vai lendo um texto em prosa e surpreende nele algumas frases que são mais poesia que prosa. A gente tem que ler com o ouvido também. Então, em alguns casos, como nesse, eu retomo o texto, recorto-o, utilizando e ampliando um processo que Manuel Bandeira usou, de apropriação e reutilização do texto alheio, incorporando-o à sua obra. Já o outro texto tenta sintetizar essa coisa que todo mundo experimenta: os limites entre memória-imaginação. E o escritor, mais que qualquer outro, tende a borrar essas fronteiras. Com a idade, então? Volta e meia contam coisas sobre mim que acho que inventaram, mas é a maneira como me viram ou interpretaram uma situação.

Vestígios é um livro completo, em que o poeta tem absoluta noção e domínio da palavra, em que ele alcança a palavra plena, algo que, em você, não representa novidade alguma. No poema Canto de oficina, há uma construção diferenciada em relação aos poemas em geral. Você termina o poema se referindo ao poeta concreto, que “confunde logos com logotipo”. Você ainda se preocupa com a “poesia” concreta?
Esses poeminhas do Canto de oficina, você reparou bem, têm um sentido parodístico, irônico. Esse “canto” tem sentido duplo: tanto pode ser poesia, canção, quanto pode ser um canto qualquer da oficina literária onde deixei alguns restos de poemas aos quais não teria dado valor. Em outros termos: faço uns poemas lúdicos, visuais, mas tenho o bom senso de introduzir, neles, um distanciamento crítico, que vem anotado no último poema. Quem já leu Heidegger e já viu as contradições e equívocos da teoria prática da poesia concreta há de entender perfeitamente o que digo com isto:

O poeta concretista
comete um erro típico:
confunde logos
com logotipo.

Entre as constantes de minha poesia, há essa: desde o primeiro livro, estabeleço um comentário crítico da poesia de minha época, dentro dos próprios versos. Há livros que mostraram isso sobejamente, como Poesia sobre poesia, onde os poemas, ironicamente, têm notas de pé de página, como se o poeta e o crítico estivessem se auto-ironizando. Em Curitiba, o professor Rodney Caetano apresentou recentemente uma tese sobre esse livro, estudando esses limites da linguagem.

Há anos você se mostra inconformado com a arte de modo geral. Numa crônica recente, ao ver um trabalho que admirou, você escreveu que “voltava a acreditar no milagre da arte, essa pobre entidade tão vilipendiada por tantos arrivistas açulados pelos aulidos da pós-modernidade”. O que ocorre?
Depois de ter atuado nas vanguardas, de ter sido um dos organizadores da Semana Nacional de Poesia de Vanguarda (Belo Horizonte, 1963), de ter orientado dezenas de teses sobre o assunto, de ter organizado Expoesia (1973), de ter me atormentado e me maravilhado com tanta coisa que a arte do século 20 produziu, cheguei à conclusão de que deveria ser mais explícito em minhas inquietações: então comecei a série de artigos que deram no livro Desconstruir Duchamp, onde proponho a revisão da arte do século 20. Esclareço: “revisão”, não um retorno ao passado. E o resultado foi incrível. A aceitação de minhas teses é imensa. Tendo iniciado esse trabalho sistematicamente em 1992, até hoje estou fazendo conferências Brasil afora sobre a tal revisão, porque as pessoas não agüentam mais tanta empulhação, sobretudo nas artes plásticas. E em todas as conferências e palestras que fiz não apareceu ninguém que viesse com argumentos que me fizessem dizer o contrário. E olha que já estive falando no covil das feras. Esse trabalho, eu diria, é complementado com um livro também recente, Que fazer de Ezra Pound, onde enfrento outros ícones de nosso tempo. Aí está um desmonte do famoso Cantos de Pound, um desmonte da equivocada análise que Haroldo de Campos fez de Macunaíma, aí está uma construtiva polêmica com o professor Antonio Candido a propósito de O cortiço. Enfim, um livro também de combate e esclarecimento.

E o que você pensa da poesia brasileira, tantas vezes vilipendiada por facínoras com ajuda da chamada mídia cultural?
A poesia sobrevive e sobreviverá porque é uma “função” do imaginário humano. Não adianta as revistas ficarem dando espaço para best sellers semanais, para agradar certo tipo de leitor, não adianta certas tribos se autoproclamarem os donos da “verdadeira” poesia, da poesia de “seu tempo”. As coisas não se passam assim a médio e longo prazo. Veja como a poesia pode ter uma utilidade e uma atualidade surpreendentes. Em agosto, estarei na Coréia para uma coisa insólita. Vai ocorrer ali um festival internacional de poesia, e os organizadores estão acreditando que a poesia e os poetas podem ajudar a aproximar os dois países divididos em Norte e Sul. Estão programando uma viagem dos poetas à Coréia do Norte para romper essa falsa barreira. É lindo isso. E os países do oriente sabem que a poesia tem uma força intemporal. Andei escrevendo sobre a experiência maravilhosa que Marina e eu tivemos no Irã no ano passado. Os japoneses, por sua vez, sabem do uso aliciante da poesia. Por isso, antigamente, lavravam seus contratos em forma de poesia. Os chineses também sabem disso; por isso, tanto os imperadores antigos quanto Mao Tsé-tung faziam poemas. E os coreanos, que vou visitar, sabem disso. É reconfortante, é intrigante que, numa sociedade de alta tecnologia, a poesia continue a ser um instrumento de sintonia fina.

Por que o Brasil é uma ferida no seu peito?
Sim, uma ferida que não se cicatriza nem tem jeito. Ainda agora fiz um giro por várias cidades do interior de Minas, pelo Projeto Tim — Grandes Escritores, e nas cidades por onde passava as pessoas queriam que eu dissesse poemas como A implosão da mentira e Sobre a atual vergonha de ser brasileiro — escritos durante a ditadura, e, no entanto, infelizmente continuam muito atuais.

Como é a vida de dois poetas casados sob o mesmo teto?
Algo mágico, estimulante, enriquecedor. Marina é uma pessoa fabulosa, excelente poeta. E uma coisa curiosa é que às vezes fazemos poemas sobre os mesmos temas, as mesmas cenas, as mesmas vivências, sem que um diga isso ao outro. Só depois tomamos conhecimento. É como dois pintores que saem para pintar ao ar livre e cada um retrata a cena ao seu modo. Só que um não sabia que o outro estava fazendo esse trabalho ao lado. Até nisso um espelha ou complementa o outro.

Para concluir: é verdade que existe poesia no Brasil?
Claro. Quem tiver ouvidos ouça, quem tiver olhos leia.

LEIA RESENHA DE VESTÍGIOS

Alvaro Alves de Faria

É escritor.

Rascunho