Um quarto de século em prosa

O escritor gaúcho Luiz Antonio de Assis Brasil lança o romance "O Pintor de Retratos"
Luiz Antonio de Assis Brasil: “O leitor deve ser o verdadeiro escritor deste romance, na medida em que muito lhe sobra pra isso”
01/07/2001

Com cerca de 250 mil exemplares vendidos e 15 livros publicados, Luiz Antonio de Assis Brasil completa 25 anos de literatura, desde a estréia com Um Quarto de Légua em Quadro (1976). Natural de Porto Alegre, o escritor desfruta de todas as credenciais para se acomodar e seguir a trilha aberta. Homenagens sobram na fortuna crítica. O crítico Wilson Martins o nomeou “mestre do romance”. Sucesso de público no mercado do sul do País, destaca-se como autor de obras monumentais e épicas como a trilogia Um Castelo no Pampa, que narra a saga de uma família na zona rural do Rio Grande do Sul do século 19 até a década de 60 e Videiras de Cristal, que reconstitui ficcionalmente a Guerra dos Muckers, revolta messiânica transcorrida de 1872 a 1874, numa colônia alemã gaúcha. Além disso, tem sido um dos romancistas mais adaptado ao cinema, com três produções em andamento inspirados em suas histórias (Jacobina, direção de Fábio Barreto; Manhã transfigurada, de Sergio Assis Brasil e Concerto Campestre, de Henrique Freitas Lima).

Assis Brasil bem que poderia apenas deixar o rio correr sozinho. Mas não. Espírito inquieto e de talento refinado, recomeça do zero e promove uma ruptura em sua linha narrativa com O Pintor de Retratos (L&PM, 181 págs.). Seu leitor, acostumado aos calhamaços e à abundância, à adjetivação excessiva e ao preciosismo dos painéis históricos, terá pela frente uma outra face: a concisão da linguagem e a essencialidade do enredo nas 181 páginas. O próprio Assis Brasil admite a escolha: “a ser fiel a um público (essa entidade improvável), preferi ser fiel às minhas intenções estéticas”.

Nenhuma palavra fora da ordem. Nenhum excesso e floreio. Unicamente uma história executada com a sincronia de todos movimentos para um único efeito, tal maestro que consegue a plena coesão dos instrumentos de uma orquestra. O Pintor de Retratos traz um duelo psicológico e emotivo entre o fictício Sandro Lanari, pintor italiano, e Nadar, o mais célebre fotógrafo francês do século 19.

Em entrevista exclusiva ao Rascunho, o professor da PUC/RS, 56 anos, decreta a morte da vertente regionalista e afirma que chegou ao limite da criação. “Não conseguirei ser mais essencial do que fui.”

• Em O Pintor de Retratos, o protagonista Sandro Lanari tenta alcançar a perfeição, primeiro pela pintura, em seguida pela fotografia. Como autor, efetua na prosa algo semelhante, o despojamento total, a busca obsessiva pela exatidão. Não há maneirismos, nem adjetivação rebuscada, coloca apenas o necessário e persuasivo. Houve a intenção de manter o alto nível de concentração na história, evitando o excesso de metáforas?
Sim, houve intenção. Em se tratando de narrativa ficcional, o leitor quer a célebre frase “A senhora marquesa saiu às cinco horas”, isto é, deseja e exige ações, personagens, enredo e fábula. As metáforas, quando ocorrem em O Pintor de Retratos, poucas são do narrador, e quase sempre circunscritas ao universo imaginário do protagonista. Sandro Lanari gostava de alegorias que, como se sabe, andam próximas da metáfora. Deixo os nobres recursos imagéticos aos poetas, que são os verdadeiros detentores das palavras, por direito de excelência e privilégio da anterioridade.

• Instaura um novo parâmetro para a leitura de sua obra, cada frase é como uma partitura, pensada ao extremo, investigada exaustivamente. É como se fosse o livro de um autor invisível. Será essa a maior ambição autoral, concretizar o autêntico sentido de narrar, sem artificialismo ou exercícios de erudição, fazendo com que a obra seja mais do leitor do que do próprio escritor?
Perfeitamente. O leitor, e assim o pretendo, deve ser o verdadeiro escritor deste romance, na medida em que muito lhe sobra para isso. Sob o aspecto da carpintaria, não há como negar o esforço de criação textual. Cada período gramatical foi lido em voz alta, e foram avaliados sua sonoridade e seu ritmo. O último parágrafo, por exemplo, custou-me várias semanas de trabalho — agradável, por suposto. Mas nada disso seria importante se a história não fosse o mais importante, e para a qual guardei o melhor da minha capacidade criadora.

• Inscreve na obra um processo de montagem, característico da fotografia e da mudança cultural do olhar na modernidade (passagem do século 19 ao 20). Frases curtas, rápidas, melodiosas, verbais ao extremo. A mudança figurativa da pintura para a fotografia vivida pelo personagem é corporificada na linguagem do romance?
É uma idéia bem apanhada — mas não estou muito certo disso. Aceito, porém, que o período histórico trabalhado deixaria suas marcas, e as encontro principalmente na essencialidade e na “rapidez” da escritura (melhor substituir por “leitura”): o século 19, como falavam as personagens dos romances realistas, era o século da celeridade, do telégrafo e da locomotiva a vapor, tão banais que hoje já são História; mas foram novidade altíssima quando surgiram.

• Italiano que estabeleceu contato com o expressivo fotógrafo francês Nadar, que aportou no RS, teve peripécias amorosas, trabalhou como pintor, participou casualmente da Revolução Federalista e, depois, estabeleceu-se na fotografia. A história atribulada de Sandro Lanari partiu de fatos reais? Ou o mote documental é apenas o ponto de partida?
Na verdade, Sandro Lanari é personagem inteiramente ficcional, embora tenha resultado da composição das trajetórias dos tantos fotógrafos italianos que mantinham estúdios em Porto Alegre no século 19. Digamos que a vida de Sandro Lanari é uma vida possível, para seu tempo. Nesse aspecto, é uma longa vida, cheia de episódios, idas e vindas: imaginada ou não, o fato é que reduziu-se, essa vida, a poucas páginas. Tal acontece com nossa própria existência: vendo-a em retrospecto, vamos perceber que se reduz a poucos fatos, àqueles marcantes e decisivos. No romance aconteceu isso mesmo. Sandro é mostrado em suas circunstâncias de transição, indispensáveis ao tecido narrativo. Quanto ao “documento”: procurei cercar-me de todas as informações possíveis: fui a Bièvres, perto de Paris, para visitar o Museu Nacional da Fotografia, que possui máquinas de Nièpce, Daguerre — e de Nadar. Percorri e fotografei os estúdios de Nadar. Consultei todos os livros existentes sobre o tema. Espero que isso tenha sido apenas um ponto de partida, e que não tenha sufocado a ficção.

• O fotógrafo francês Nadar, afamado pelas fotos realizadas de Vitor Hugo a Sarah Bernhardt, é o contraponto ideal, alter-ego de Sandro Lanari, que passa todo tempo competindo com ele. Sem Nadar, o protagonista existiria?
Tal como foi concebida, a personagem Sandro Lanari não existiria sem Nadar. Nadar é-lhe o contraponto indispensável, que potencializa todo o conflito e dá uma razão para o romance. Aliás, na gênese de O Pintor de Retratos está minha admiração por Nadar. Sandro surgiu depois e, como tal, na qualidade de pedestre antagonista. Quanto mais pedra se tira da escultura, mais se ganha em forma.

• Ao contrário das aparências, o enxugamento lapidar, a sequidão do externo e da descrição do mundo resultam na riqueza interna dos personagens (a contração da linguagem potencializou a dilatação dos traços e caráter de cada um). Ficou muito perto do silêncio, poderia dizer que chegou ao extremo de sua criação? Houve uma ruptura no hábito de criar? Quanto sangue custou?
Não conseguirei ser mais essencial do que fui em O Pintor de Retratos. A aventura frasal, portanto, chegou ao seu extremo. Isso significou, como bem ressalta a pergunta, um ruptura com minha anterior cadência sintática, e toda a ruptura implica em riscos. No caso em tela, os riscos eram perceptíveis: o primeiro seria o desconforto dos meus leitores habituais, acostumados ao Assis Brasil da exuberância e da abundância. Paciência: a ser fiel a um público (essa entidade improvável), preferi ser fiel às minhas intenções estéticas. O segundo risco adviria da possibilidade de iminente desastre — o qual estaria materializado na incompletude, na falta, nos vazios narrativos. Pode-se imaginar minhas dúvidas. Enfim: criar é renovar-se a cada momento ( nem que essa renovação seja para pior. Experimentando é que se sabe.

• Só para polemizar um pouco, sei de sua predileção por Eça de Queirós. Seu último romance não aumenta a distância com tal referência?
No plano da linguagem, sim; no plano estrutural, da composição de personagens, a cada dia aprendo mais com Eça. À semelhança da arte musical de Carlos Gardel, Eça escreve cada vez melhor.

• A atmosfera de O Pintor de Retratos cresce na medida em que mais sugere que diz. Será que o diferencial do romance não é o emprego do timming de um conto? É possível estabelecer um tráfico e relações entre gêneros (um capítulo como um conto)?
Bem perguntado, e creio que na pergunta está a resposta. Os capítulos de O pintor de retratos, via de regra, possuem algumas marcas de autonomia, representadas por certas frases conclusivas que despertam para o subtexto do texto recém-lido — mas sem escancará-lo, o que significaria um insulto à compreensão do leitor. Nesse pormenor, aceito a proposta de Poe: a peça literária deve possuir um só efeito — nesse livro, entendo os capítulos como detentores de uma única impressão.

• Assis Brasil ficou conhecido pelo rótulo de “romancista histórico”, seja pela ficção sobre os Muckers (Videiras de Cristal), seja pela retomada do escritor Qorpo Santo (Cães da Província). Prova novamente que as coisas não são bem assim. O fato histórico é apenas o pano de fundo. Seu interesse estaria em enfocar as pessoas e não reconstituir as circunstâncias, alcançar a humanidade que os documentos não registram?
O fato histórico, aqui, não chega nem a pano de fundo, limitando-se a certos adereços jogados no palco despido, a título de ambientação. Alguns são mero e rematado sarcasmo, mas isso não deve preocupar o leitor, que já deverá estar concentrado na história ( story ( (assim o penso…), e não na História.

• Humanizar os mitos é o inverso da mitificação proposta por Erico Verissimo (com exceção de Incidente em Antares e aquela ressurreição de mortos desagregando os lares). Mesmo assim, a comparação prossegue sendo feita em função da ausência de outros parâmetros para sua ficção. Nota uma incompreensão de análise? Será que ainda não perceberam que Assis Brasil é o filho pródigo da grande família gaúcha, atendo-se ao prisma individual em detrimento da catarse coletiva?
Temos, na pergunta, uma tese, com a qual concordo em todos seus termos. Apenas uma leitura pela rama irá incluir-me entre os caudatários (e retardatários) da vertente regionalista, a qual está morta e sepultada, e cujas flores já murcharam. A leitura sem preconceitos verá que busco ir justamente no sentido oposto desse mainstream, o que realizo, penso, através da sátira, da paródia, do pastiche, quando não do mais pérfido e (indes)culpável encolher de ombros. E isso já me causou não poucos aborrecimentos.

• Privilegia o nomadismo. Lida com o “personagem fora do lugar“. Os exemplos são muitos como a biblioteca e a alta cultura contrastando com as estâncias rústicas dos coronéis (Um Castelo no Pampa); uma orquestra particular sendo preparada em meio às paragens desertas do interior do Rio Grande do Sul (Concerto campestre) e agora com um italiano enfrentando a aventura de uma nova língua e novos costumes.
Tudo isso significa um fantasma que encaro em todas as obras: o debate entre o que é bárbaro e o que é civilizado. Minha condição de gaúcho e de scholar me transforma em campo de batalha entre as pulsões primárias do que é nativo e a racionalização ao estilo iluminista. Concerto Campestre traz o resumo dessa díade paradoxal: o concerto é europeu, e o pampa é território dos homens sem lei e sem letras. Em todos meus romances volto a essa mitologia pessoal. Mas não é o que faz a totalidade dos autores?

• Existe também a importância do foco cultural em meio ao atraso de algumas cidades, espécie de vírus intelectual que dissemina o hibridismo de costumes. Sandro Lanari pode ser visto como um fundador de uma outra postura na arcaica Porto Alegre do fim do século 19 e início do 20?
Creio que não. Na verdade, Sandro Lanari não interfere no modus social da Província, antes o corrobora, reafirma e lhe dá foros de legitimidade, na medida em que seus avanços na arte fotográfica restringem-se aos seus aspectos técnicos e comerciais. O arcaísmo permanece intocado, e em certa medida, chega aos dias de hoje.

• O gaúcho preza a valentia, a cisão, sempre inclinado ao separatismo mesmo que ideológico. Tende a exagerar sua história. Seus livros andam na contramão, detendo-se na condição humana e desarmando ícones, apresentando os falsetes e as vacilações, o cinismo e as incertezas. É uma vingança premeditada a um estereótipo?
A mim interessa o ser humano em todas suas dimensões, especialmente a teleológica, a moral e a social. Minhas personagens — assim o espero — debatem-se em problemas que são próprios dos homens em todas as latitudes e todas as eras. Nada mais simples, nada mais complexo. Mas a literatura também vive desses dilemas. Os ícones, por sua exclusiva condição, são mais frágeis que os homens comuns, pois se o ícone paga o preço de sua construção cotidiana para ser aceito, o homem comum vive a plenitude de seu anonimato. Quanto à vingança aludida, talvez esteja presente, sim, mas apenas como deflagrador de uma idéia. Depois, com o trabalho, são polidas as unhas do tigre.

• Quais as expectativas ficcionais de agora em diante?
Ainda não sei claramente; tenho muitas idéias, e o difícil é escolher entre elas. O importante é não imitar O Pintor de Retratos (e isso é dificílimo, para o bem e para o mal).

• O RS experimenta um período de ouro na literatura. Uma amostra estava na indicação de uma dezena de autores entre os finalistas do Jabuti. Qual tem sido a influência da oficina de contos que executa na PUC na formação de novos talentos? Como é ser reconhecido como um mestre entre tantos jovens que creditam o sucesso a sua oficina?
Se creditam, deixam-me feliz; mas não devem ficar muito convictos disso. O sucesso advém, em primeiro lugar, da abertura para o estranho para as novas concepções sobre o mundo e, em segundo lugar, do trabalho. A Oficina não é o começo nem o fim de nada. É apenas uma passagem, que tem a função de abreviar alguns caminhos.

• Qual a receita para deixar de ser um autor regional para ser um autor brasileiro. A pergunta parece banal, mas no Brasil meridional isso é um verdadeiro dilema.
É um pseudo-dilema. A verdadeira preocupação do autor gaúcho, do autor amazonense ou baiano, deve ser a de escrever melhor. Se o reconhecimento nacional ocorrer, ótimo: os editores gostarão muito. Quanto aos escritores, bem… devem ver isso cum grano salis. A fama, especialmente em nossos pós-modernos tempos, é coisa tão efêmera quanto discutível.

• O mercado gaúcho continua autônomo ou sente as dificuldades econômicas da recessão? Tem um posicionamento sobre projeto de lei tramitando no Estado que pede protecionismo de mercado, primazia na demanda de livros às editoras gaúchas? A política do livro vai mal?
A recessão, que atinge a todos nós, fatalmente alcançaria o livro, como alcança o sabonete e o leite em pó. O Rio Grande do Sul, apesar disso, e em função especialmente do trabalho realizado pelas escolas, mantém ainda uma certa independência editorial, mas não é saudável que permaneça assim indefinidamente, pois toda endogenia traz, a longo prazo, conseqüências desfavoráveis. Já o protecionismo deve ser visto com muito cuidado, para evitar a formação de feudos.

• É um best seller no Estado. De que modo sinaliza uma recepção real?
Sou muito relapso em relação à trajetória dos meus livros, e é com espanto que às vezes descubro, numa livraria, uma nova edição de algum título meu. Minha contas, assim, devem estar bastante embaralhadas.

• Deixou vários ofícios, dentre eles a música e a advocacia, para se dedicar integralmente à literatura. Recorda a mais dura lição que aprendeu no trajeto? E a mais gratificante?
O mais difícil foi quando, depois de uma série de artifícios e mentiras, obtive um tempo livre para escrever. Ao contrário de lançar-me à escrita, entregava-me ao sentimento de que estava roubando algo de alguém: afinal, todos estavam trabalhando, e eu no ócio. Hoje já me acostumei a essa culpa criativa. O mais prazeroso é viver os momentos em que um leitor me comenta um livro, ou outros, como esse, em que responder à inteligência das perguntas me estimula a pensar que tenho feito algo de útil à sociedade em que vivo.

LEIA RESENHA DE O PINTOR DE RETRATOS

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho