Um pouco de luz para os cegos de plantão

A poesia de Salgado Maranhão destaca-se pelas imagens inusitadas e pelo empenho de recriar a língua escrita
Salgado Maranhão: “O que busco em meu verso é a expressão genuína que, de tão complexa, pareça simples”
01/08/2003

A poesia brasileira passa por um momento crítico. Muita gente querendo fazer pirão com a pouca farinha que há. Neste contexto, sobra ineficiência para todo lado. As editoras, que deveriam ser as “senhoras” desse processo, investindo em novos e bons poetas, divulgando poesia, criando prêmios, mexendo com o mercado… ficam à espera de best sellers modorrentos para sustentar essa indústria caça-níqueis que está de costas para a cultura. Aliás, é sem a menor ética que estas empresas transfiguram as porcarias que publicam em “artigo cultural”, um engodo para intelectualóide de fim de semana. Os críticos, salvo exceções, não têm êxito há um bom tempo na tarefa (árdua é verdade) de descobrir gente nova com talento suficiente para se destacar em meio à horda de pseudo-escritores. Alguns destes pretensiosos chegam a tirar dinheiro do bolso para jogar, nas páginas de um livro, versos que não nos levam nem até a esquina. É certo que o dinheiro é deles e eles fazem o que querem. Outros, até que dominam a técnica, mas se dedicam a uma repetição sem fim. Já é possível encontrar nas livrarias até cópia da cópia.

Mas vamos tratar do que nos interessa: as exceções. Aliás, vou tratar de uma exceção brilhante neste cenário. (Há outras é verdade, mas não vou cita-las para não esquecer de ninguém, apesar de serem poucas.) José Salgado Santos, mais conhecido como Salgado Maranhão, nasceu em Caxias, no Maranhão. Tem 48 anos e vive no Rio de Janeiro desde 1973. Seus primeiros poemas foram editados na antologia Ebulição da escrivatura, publicada pela Civilização Brasileira, em 1978. Esta antologia foi organizada por Salgado Maranhão, Antonio Carlos Miguel e Sergio Natureza. O livro marcou a inserção de Salgado na poesia carioca. Foi também um dos primeiros livros da poesia marginal a serem publicados por uma grande editora, por isso e, sobretudo, pelo mérito de seus autores teve grande repercussão na mídia e entre os críticos.

Além deste, Salgado publicou: Punhos da serpente (Rio de Janeiro, Achiamé, 1989); Palávora (Rio de Janeiro, Sette Letras, 1995 ); O beijo da fera (Rio de Janeiro, Sette Letras, 1996); Mural de ventos (Rio de Janeiro, José Olympio, 1998). Este último rendeu ao poeta o mais do que merecido Prêmio Jabuti.

Na poesia, Salgado Maranhão trilha o próprio caminho, sem cair na armadilha comum de transformar referências poéticas em objetivo da obra. A passos largos chegamos até o livro Sol sangüíneo, o mais recente do autor. Não tenho bola de cristal, mas penso que daqui algum tempo este livro será considerado um novo marco na vereda literária deste poeta. Ebulição da escrivatura foi a estréia; Mural de ventos, o reconhecimento e Sol sangüíneo, a afirmação. Esta obra demonstra que, além dos requisitos básicos que credenciam qualquer vivente a ser chamado de poeta, como domínio da linguagem, sensibilidade, visão, capacidade de reflexão, entre outros, Salgado tem um que o diferencia da maioria dos poetas atuais: originalidade. A prova desta característica está nas imagens inusitadas, no empenho oriental em destruir o status quo da língua escrita e recriá-la, na dissecação do humano, sempre “no afã/ de dar/ ao verso/ víscera”. O poeta negro e nordestino bem que poderia recorrer à poética das minorias, brigar por causas sociais, mas ele refuta essa atitude: “Ser negro é minha condição, não minha profissão”. Uma prova da lucidez deste poeta que sabe que se a obra não for suficientemente boa, não adianta se apegar a estas muletas. O poeta é bom pelas poesias que faz e assim Salgado é. Claro que essa visão não o impede de ter orgulho de suas origens. O poema de abertura que dá nome ao livro demonstra isso num dos versos mais impactantes e belos do livro: “Minha terra é minha pele”(p. 18). No mais, são questões universais revistas com brilhantismo e uma paixão pela poesia desfilada em cada verso. Por mais que eu escreva, sei que não vou alcançar a dimensão deste livro. Aliás, caro leitor, nem mil leituras esgotariam as possibilidades desta obra. A entrevista que segue demonstra que este poeta perturbador é realmente generoso com os que o procuram.

• “O Brasil vive de costas para a América de língua espanhola.” Esta frase é sua. O que a poesia brasileira perde com este distanciamento?
Embora eu já tenha falado esta frase muitas vezes, não creio que seja só minha, pois este já é um sentimento generalizado. Nosso olhar e nosso interesse estão, quase sempre, voltados para a Europa e principalmente para os Estados Unidos — que é um país (povo) com enormes recursos e possibilidades mas, politicamente, muito etnocêntrico. Perdemos, com isso, a variada riqueza literária dos países latino-americanos com sua vastíssima tradição cultural. Apesar de algumas traduções e do esforço de poucos abnegados como Eric Nepomuceno e Suzana Vargas, o afastamento ainda é grande. Há nisso, a meu ver, o medo de nos confrontarmos com o nosso próprio espelho.

• E o que há de tão terrível ou temível nesse espelho?
Desde sempre, desejamos ser Primeiro Mundo. Pensamos ser um país de brancos (basta observarmos a nossa mídia), mas na verdade somos negros e mestiços. Estamos, o tempo todo, buscando modelos distantes. Há, no meu entendimento, um certo medo de que o irmão que está próximo possa realçar características que abominamos em nós mesmos.

• Como nasce a poesia de Salgado Maranhão?
Estou, quase sempre, em estado de poesia. Mesmo quando não escrevo. O que busco em meu verso é a expressão genuína que, de tão complexa, pareça simples. Não é fácil alcançar isso, pois não pode ser forçado para não ficar falso. Nas artes em geral, e em particular na poesia, eu procuro o que me surpreenda, a torteza inusitada que me arranque do chão e me faça indagar: como foi possível alguém achar tal viés? Isso para mim é o que faz a língua andar, ganhar contornos e infinitude. E a palavra está no cerne da questão. Não a palavra fria dos dicionários mas, sobretudo, a palavra lanhada na existência. Para mim, é necessário para um poeta que pretenda fazer algo relevante, com voz própria (e só interessa o que tem voz própria, pois a arte é o primado da individualidade) tenha, além do dom, uma vivência singular, já que ser poeta é correr risco. O próprio Vinicius já dizia: o poeta só é grande se sofrer.

• E o que faz este poeta maranhense, radicado no Rio, sofrer?
Quando cito o verso de Vinicius, não estou fazendo profecia do sofrimento. Estou apenas dizendo, de outro modo, que não se fabrica poeta. O verdadeiro poeta o é pela contingência da vida, não por força da vaidade. Ele apenas se aperfeiçoa. E nessa instância de gratuidade criativa está sua principal recompensa.

• Poesia x letra de música. Há quem diga que uma coisa não tem nada a ver com a outra. O senhor tem parcerias com grandes nomes da MPB e um trabalho já bastante reconhecido na poesia. Como analisa essa questão: letra de música é poesia?
No campo da escrita, em tudo, há interdependência. Às vezes há prosas que são pura poesia e poemas cheios de prosa — segundo Murilo “a poesia sopra onde quer”. Isto também se dá em relação à letra de música, mas precisamos nos ater a um equilíbrio delicado: nem todo poema funciona numa música. A letra de música tem, naturalmente, uma estrutura flexível para aceitar a melodia com sucesso. Porém, no momento em que esta se recolhe e as palavras se desnudam, se mostram — na pauta em branco sem a escora da música — então é que se vê quem tem garrafa vazia para vender. O olhar recorrente na página em branco, onde qualquer rasura tem toque de arte final — como já disse o poeta Armando Freitas Filho — é terrivelmente cruel e só o verdadeiro poema se garante. Não podemos, entretanto, esquecer que desde Noel e Orestes, passando por Vinicius até Paulo Cesar Pinheiro e Aldir Blanc — para não citar Caetano e Chico — o Brasil é um celeiro de bons letristas. E seguindo a máxima de Murilo, posso afirmar que há letras extremamente poéticas e poemas (às vezes até bastante longos) que têm muitos versos, mas nem um tostão de poesia.

• Como foi trabalhar em letras para Zizi Possi, Ivan Lins, Ney Matogrosso, Paulinho da Viola?
Quando cheguei ao Rio, na década de 70, já vinha com o desejo de fazer, também, letra de música. Talvez influenciado por Torquato Neto, de quem fui amigo em Teresina. Depois da publicação do livro Ebulição da escrivatura em 1978 (antologia organizada por mim, Antonio Carlos Miguel e Sergio Natureza), comecei a compor com Paulinho da Viola, Vital Farias e Herman Torres. Mais tarde com Ivan Lins, Zé Américo e Elton Medeiros, entre outros. Fico muito honrado em ter minhas letras cantadas por artistas que tanto admiro.

• Boas letras de música podem fazer com que o grande público se aproxime da poesia? Afinal de contas, sua poesia não é popular, mas suas letras são…
A canção popular pode sim abrir o apetite para a boa poesia. O que não pode é ocupar o lugar desta. Na época da ditadura, por um momento, a letra de música desempenhou um papel importante, porque os grandes poetas estavam exilados ou fora do debate da poesia discursiva.

• A boa canção ajuda a despertar interesse, mas não é “o caminho” para formar público leitor de poesia. Como atrair mais gente para esse universo ainda muito hermético da poesia? O senhor, como poeta, tem essa preocupação de ser lido por um público maior ou acha que a poesia é para poucos?
A poesia é para todos, embora nem todos a procurem. Num mundo coletivamente hipnotizado pelos objetos, é necessário investimento na cultura a longo prazo, desde a infância, para reprogramar o imaginário das pessoas. Sou a favor do uso de todos os meios de comunicação para que a poesia alcance a quem dela precise.

• O que representou para o senhor ganhar o Jabuti, em 1999?
Foi muito bom. O Prêmio Jabuti é o mais respeitado do Brasil, um país que, levando em conta as dimensões e a população tem, proporcionalmente, poucos prêmios. Só para se ter idéia, o México — com metade da população brasileira — tem vários prêmios com dotação de cem mil dólares.

• O senhor já disse que “o poeta é uma espécie de gigolô das palavras”. São as palavras que fazem o poeta ou é o poeta que faz as palavras?
Sou uma pessoa que escreve na borda do sistema lingüístico. Explorando, ao máximo, a dimensão polissêmica das palavras. Puxo por elas, faço-as falar aquilo que acham que não querem falar. Desnudo-as de semânticas viciadas e ponho-as para trabalharem, para rodarem bolsinha nas esquinas do poema. No começo elas reclamam, gemem um pouquinho, mas depois adoram. Como se vê, há uma certa simbiose, uma interpenetração do poeta na palavra e da palavra no poeta.

• O senhor se autodefine como um “poeta apolíneo”. Este seria o seu diferencial diante da tradição dionísica da poesia brasileira?
O conceito de apolíneo, em minha obra, não é dual, mas integrado; não se opõe ao dionisíaco, mas o transcende. Minha visão está mais em sintonia com o pensar de Nietzsche (conforme observou o Prof. Luis Fernando Valente, da Brown University) e com o pensamento oriental em que os valores se completam. Entendo o apolíneo como refinamento máximo, depois da vivência com o dionisíaco. A poética, em sua via de finalidade sem fim, polindo o poeta e sua mirada.

• O senhor é terapeuta corporal, já foi professor de Tai Chi Chuan e é mestre de Shiatsu. Qual a influência da cultura oriental na sua poesia?
Embora tenha estudado jornalismo, e até trabalhado com isso mesmo antes de ir à faculdade, foi na cultura oriental que encontrei um caminho e um meio de sobrevivência que não brigam com a poesia. O jornalismo diário, pelo seu exclusivismo e pela sua urgência intrínseca, não deixa espaço à reflexão. E a poesia é uma prática contemplativa, cozinhada em fogo brando, representa o sentido maior da minha vida. Nesse ponto, o modo de pensar oriental trouxe harmonia à minha natureza, trouxe a noção de equilíbrio no caos e de caos no equilíbrio, diferente da visão ocidental que dicotomiza corpo e mente, desconhecendo o percurso da alquimia interna. Para a filosofia ocidental, conhecer é refletir e conceituar; para a filosofia oriental é experimentar e transcender.

• E que poetas o fazem transcender?
Vários. Dante, Camões, Rimbaud, Gonçalves Dias, Quasímodo, Montale, Célan, Eugênio de Andrade, Gullar, e… por aí vai.

• Uma provocação: poesia para quê?
Poesia para nos tornarmos infinitos. Não concordo com os que dizem que ela não serve para nada. Isso é niilismo esnobe. Porque tudo nos imprime algum legado. Mesmo uma pedra no caminho, no mínimo, nos deixa a experiência do desvio; e, no máximo, uma topada que nos acorda e nos instiga. Do Renascimento para cá, ao assumir seu destino, o ser humano tem, cada vez mais, dessacralizado a vida. E vai ficando perceptivamente raso; fisiológico; rente aos buracos; escravo das sensações. Com isso perde a noção de sutilezas e até da sobrevivência básica: vai poluindo o ar que respira; vai sujando a água que bebe; vai cavando a cova entre os pés. Por isso, cada rasgo de autêntica poesia nos ensina a desconfiar das certezas. Nos revela, através da linguagem verbal, a constante mutação das coisas. A poesia é essa força sutil que dá vertigem ao esqueleto das palavras.

Dois poemas de Sol sangüíneo

Da dor

Invicto
o coração
desata
incêndios

intacto
o estio
na carne
incrusta

até onde
é lanho
o exaspero

e a dor
servida
à la carte

no afã
de dar
ao verso
víscera.

Fero

Tento esculpir a litania
dos pássaros
e as palavras mordem
a inocência. Aferram-se
ao que é de pedra
e perda.

(Canto ao coração e tudo é víscera,
como na savana.)

Restolhos de espera
e crimes;
insights de insânia
e súplica; volúpias insolúveis
acossam-me a página
em branco
qual bandido bárbaro
ou mar revolto
a rasgar a calha
do poema.

Nada me resgata.
Não sei se sou quem morre
Ou quem mata.

Sol sangüíneo
Salgado Maranhão
Imago
119 págs.
Jeferson de Souza
Rascunho