Um poeta multifacetado

O mineiro Ricardo Aleixo, cuja versatilidade é uma de suas marcas criativas, tem um olhar atento e crítico ao mercado e à produção literária brasileira
Ricardo Aleixo, autor de “Diário da encruza”
01/06/2024

Ricardo Aleixo é natural de Belo Horizonte. Atua há mais de três décadas como poeta, músico, artista multimídia, produtor cultural e pesquisador. Em 1992, lançou o seu primeiro livro Festim: um desconcerto de música plástica e, de lá pra cá, não parou mais. Entre os títulos do autor, destacam-se Modelos vivos, Antiboi, a antologia comemorativa Pesado demais para ventania e o mais recente Diário da encruza, que o consolidam como uma das vozes mais potentes e criativas da poesia brasileira contemporânea.

Ao misturar o verso com elementos visuais e de teatro-performance, o poeta mineiro vem mantendo viva o clima antropofágico da alta radicalização do modernismo tupiniquim com a influência do Concretismo e da poesia visual, sem deixar que os atravessamentos de ordem contemporânea e étnico-racial se ausentem dos temas essenciais de sua obra. Nesse sentido, Ricardo Aleixo faz de sua escrita corpo e voz política em linguagem experimental sibilante, que ao longo dos anos vem ganhando reverberações não apenas nas páginas dos livros, mas também em espaços públicos de diferentes cantos do Brasil e do mundo.

Em entrevista ao Rascunho, o autor fala sobre os bastidores de sua composição, a experimentação da poesia com outras linguagens, a literatura enquanto força política e o cenário brasileiro dos últimos anos.

• Diário da encruza reúne poemas produzidos entre 2015 a 2022, em que há uma semiótica muito forte da ancestralidade negra e de tópicos identitários. Como se deu a concepção desses escritos e como o contexto sociopolítico e cultural dos últimos anos em nosso país atravessou a sua linguagem e a filosofia íntima de seus versos?
É certo que a ancestralidade negra faz parte do meu projeto criativo, mas a ideia de “identidade”, da qual derivam, por certo, os tais “tópicos identitários” aos quais você se refere, me interessa tanto quanto o uso de serifas, numa certidão de casamento, pode interessar a um cego de nascença. Identidade é instrumento de poder — sempre dos e das “de cima” contra os e as “de baixo”. Mesmo a ancestralidade negra é, para mim, um elemento de luta política, que se faz presente em toda a minha obra, desde o início, e não apenas nos livros que escrevi ao longo dos terríveis tempos que atravessamos. Identidade é prisão, ao passo que ancestralidade, conforme a imagino, é movimento contínuo no tempo e no espaço, ou, para dizer de outro modo, é o que faz com que as informações advindas do passado mais remoto presentifiquem-se enquanto força transformadora e se projetem na direção do “talvez futuro”, em busca de diálogo com quem nem nasceu ainda. Isso é político e poético, a um só tempo, e é que tenho tentado fazer em matéria de poesia.

• Olhando para o Brasil pós-pandemia, o senhor acredita que avançamos ou retrocedemos enquanto civilização?
A palavra civilização não me parece aplicável a um caso como o do Brasil. Desastre é a palavra mais adequada para definir a experiência brasileira. O que não muda quase nada, no tocante à sua pergunta: pioramos muito enquanto hipótese de país. Basta observar o quanto pulsa, nas relações interpessoais, um medo do outro que se expressa por diferentes meios, nos mais diversos lugares. O par pandemia e ascensão da extrema direita ao poder fez e ainda fará muito mal à nossa débil democracia, essa “planta difícil de medrar nos trópicos”, como escreveu Sérgio Buarque de Holanda. E é claro que isso se reflete na produção artística e intelectual, além de se manifestar no cotidiano das grandes cidades, com seus cenários cada vez mais horrendos, inviáveis para a vida. Do cenário político, com seus conchavos, seus negocinhos de milhões, sua noção de governabilidade a qualquer custo, eu prefiro nem falar nada. Ou melhor, prefiro citar Oswald de Andrade: “Venceu o sistema de Babilônia e o garção de costeletas”. E a população a se deslocar, sempre com muita pressa, celular na mão e alheamento bovino, do nada a lugar nenhum…

• Como o senhor descobriu que o seu ofício está na criação literária, mais especificamente na poesia?
Na poesia e nas outras artes. Porque o encontro com a palavra poética, para mim, se dá no mesmo momento em que descubro a música e as artes visuais como possibilidades criativas. O final da adolescência foi esse momento.

• Quais são os livros e os autores que foram formando aos poucos o escritor que o senhor se tornaria?
A poesia concreta e, em especial, esse poeta enormíssimo que é Augusto de Campos me deram rumo e prumo, naqueles tempos de tentativa de encontrar a minha própria linguagem. Mas não deixei de ler outras coisas, inclusive coisas que nada ou pouco tinham a ver com o projeto concreto, como Cruz e Sousa, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Wander Piroli, João Antônio — para ficarmos só no contexto brasileiro. Sempre li (e ouvi) de tudo, sem qualquer preconceito, inclusive porque comecei cedo no jornalismo cultural.

• Seu trabalho enquanto poeta é mais racional ou puramente intuitivo? Como se dá o processo criativo de seus escritos?
À maneira de Hélio Oiticica, acredito que “pureza é um mito”. Assim, a despeito de ser partidário do projetual, sempre me abro para o que você chamou de “intuitivo”. Trata-se de uma complementaridade: tanto o projeto mais rigoroso pode abrir espaço para o que muitos definem como “inspiração”, como uma ideia súbita, advinda sabe-se lá de onde, demanda um tipo de organização, de estruturação que a gente pode definir como “racional”.

• Quais foram as dificuldades que encontrou para conquistar o seu espaço dentro da poesia brasileira?
Nunca parei para pensar seriamente nas dificuldades por que passam todas as pessoas poetas em qualquer parte do mundo, como falta de leitura atenta, de recursos para desenvolver projetos sólidos, de público realmente interessado em poesia. Eu não podia parar, entende? Fui fazendo o meu trabalho, de modo obstinado e por vezes obsessivo. Sabia, no fundo, que algum dia algo de bom aconteceria. Até que aconteceu, tem acontecido e, espero, continuará a acontecer. Obviamente, digo o que digo porque me encontro, hoje, numa posição bastante tranquila, no sentido de consolidada, no ambiente da poesia brasileira contemporânea. Explico: uma corja de sinhozinhos e sinhazinhas tentou me cancelar, ali por volta de 2018, mas conseguiu o quê? Projetar ainda mais o meu nome e a minha obra. Agora, quando eu digo que a minha posição é tranquila, estou longe de afirmar que me acomodei. Ou que pretendo me acomodar. Enquanto eu viver, meu bordão continuará a ser a frase “anda não fiz o meu melhor”. Porque não fiz mesmo, continuo tentando. Com o mesmo pique de quando eu contava 18 anos e compus a minha primeira fornada de poemas e canções.

• No livro Pesado demais para ventania, podemos apreciar uma seleção criteriosa de mais de três décadas de sua produção literária. O que representa essa antologia publicada pela Todavia, uma das grandes editoras brasileiras? O senhor acha que ocorreu um divisor de águas em seu trabalho em termos de popularidade e no sentido de o leitor encontrar mais facilmente o seu livro nas prateleiras das livrarias?
Está aí uma boa pergunta a ser feita à Todavia. Porque é preciso lembrar que a minha antologia foi o primeiro livro de poesia a ser publicado pela então novíssima editora paulistana. Que não tem até hoje, cabe lembrar, a poesia como prioridade. Estou seguro de que a Todavia chegou até o meu trabalho porque eu já tinha conquistado um lugar na poesia brasileira, o que significa que o Pesado demais para a ventania é resultado do encontro feliz de uma recém-fundada editora, que logo passaria a ser considerada “grande”, com um poeta de carreira longa e bem-sucedida, em que pese ter sido publicado, até então (2018), apenas de forma independente ou por pequenos selos. E, sim, fico muito contente quando vejo o Pesado demais para a ventania e o Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite — Memórias, de 2022, nas estantes das cada vez mais raras boas casas do ramo.

• Como foi conceber o livro de memórias Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite?
O meu livro de memórias resultou de uma encomenda que me fez o Leandro Sarmatz, um dos editores da Todavia. Diante da excelente recepção do Pesado demais para a ventania pelo público jovem, ele propôs que eu contasse a minha formação como poeta e artista. Vibrei com a proposta, porque sempre pensei que são escassos, na literatura brasileira, os livros escritos por poetas não só sobre os seus anos de formação, mas também sobre as suas escolhas, seus processos criativos e tal. Curioso é que o Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite tem sido apontado, aqui e ali, como a minha estreia na prosa. Fora de Minas, pouco se sabe do largo tempo em que trabalhei no jornalismo cultural — como crítico literário e, entre 1996 e 2002, como articulista do caderno Magazine do jornal O Tempo, de Belo Horizonte. Sempre escrevi narrativas curtas, em meio a essas atividades, e, mais de uma vez, cheguei a escrever algumas páginas de um romance e de uma novela que a falta de tempo ainda hoje me impede de levar adiante. Em resumo, gostei tanto dessa experiência de revisitação da memória que escrevi, na mesma época em que me dedicava à escrita do Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite, o livro Campo Alegre, em que conto a história do bairro para onde minha família veio quando eu contava 9 anos de idade, e o Diário da encruza, de poemas. São o que chamo de “livros maninhos” — e foi uma alegria monstra ter publicado os três no mesmo ano, 2022, com diferença de semanas entre um lançamento e outro.

• Quando o senhor passou a entender que a poesia, a música e o elemento visual e performático são coisas unas em seu projeto literário?
Foi sempre assim. Eu sempre quis que fosse assim, lutei o tempo todo para que viesse a ser assim. Lutei por mim e por todo mundo que pensava que a questão da coextensividade entre as artes não diz respeito apenas à poesia do passado. Fazendo curadoria de eventos intermídia, escrevendo sobre outros e outras poetas, comprando briga com a ala conservadora da poesia e da arte brasileira etc.

• Como o senhor entende a poesia como um lugar não apenas de fruição estética, mas sobretudo de reflexão e política?
Entendendo. Há questões, como a que me propõe, que o sujeito entende de saída ou não entende nunca. Eu entendi de saída, e isso tornou tudo, não exatamente mais simples, mas… possível, sabe? Poesia é, no meu entendimento, o gesto — político — de tornar possível o impossível.

• A literatura brasileira continua bastante elitista, embora novas vozes venham ganhando protagonismo nos últimos anos. O senhor acha que o interesse do mercado por narrativas negras ou assinadas por mulheres na literatura é um avanço verdadeiramente genuíno ou há um pouco também de “surfar na onda do momento”, uma vez que há mídia e público-consumidor para isso?
Desconheço o motivo, ou os motivos, por que as editoras passaram, como que num passe de mágica, a publicar narrativas negras ou de mulheres (eu acrescentaria também as de indígenas, LGBTQIAP+ etc.), mas isso não significa, em si, um avanço. O debate sobre as obras produzidas por pessoas desses segmentos continua ralo e raso. Pouco tem sido feito, no campo da crítica, que represente uma real virada epistêmica, com debates densos e consequentes sobre linguagem, e não apenas sobre identidade, essa camisa de força que, tal como o mito, no poema de Pessoa, “é o nada que é tudo”. E é importante que se fale, também, sobre o escasso interesse da maioria das pessoas que estão escrevendo, hoje, pelo adensamento do debate naquilo que realmente importa, ou deveria importar, na literatura, na poesia, que é a linguagem. Há uma acomodação como que generalizada.

• O senhor tem contato com os poetas mais jovens? Tem gostado dessa nova literatura que vem sendo feita nos últimos anos, e que, inclusive, anda correndo os morros e dialogando com as periferias do Brasil?
Como poeta e, também, como pesquisador, tenho um contato crescente com o pessoal mais jovem e, dentro dos limites da minha atuação, procuro incentivar aquelas pessoas nas quais identifico uma vontade de criação que ultrapasse a autorreferência e o apego aos tais “tópicos identitários”. Mas é importante que se diga que o que vem sendo feito em outros âmbitos que não o dos morros e das periferias, tampouco me entusiasma enquanto leitor. Aí, também, grassa a autorreferência — problema que se amplia quando percebemos, na maioria, o recurso a modelos técnicos e formais consolidados há décadas. Tenho a impressão de que esse fenômeno, que é verificável também nas outras artes, tem a ver, entre outros inúmeros fatores, com o imediatismo do mercado — do que quer que seja “o mercado”. No caso da poesia, os concursos, prêmios e bolsas têm contribuído, e muito, para a definição de um modelo único de escrita. Infelizmente, essas instâncias mais do que importantes para a consolidação de um contexto poético forte, têm funcionado mais como inibidoras da criatividade. Escreve-se para ganhar prêmios, para obter reconhecimento imediato, para não sei o que… Escreve-se e publica-se em demasia, sem critério. Conheço poetas que, aos 30 anos, já publicaram 10 ou mais livros, todos muito parecidos entre eles. É óbvio que há pessoas fazendo uma poesia inventiva, ligada ou não ao legado das vanguardas, mas o clima geral é de conformismo e essa mal disfarçada vontade de fazer “sucesso”. É preciso dar tempo ao tempo. Esperemos. De minha parte, continuo na expectativa de que surjam novas propostas — e que estas sejam devidamente acolhidas pela crítica e pelo público, que não é tão pequeno quanto se diz. Prefiro apostar, sempre, no imprevisto, que, no caso da crítica, se entremostra nos vários grupos de pesquisa que foram criados nas faculdades de letras, em todo o país, nos últimos anos, voltados para o estudo de questões como interrelação de linguagens, tradução intersemiótica, relação poesia e sociedade, problematização da tradição, diálogos transcontinentais e outras.

• Em Blues da piedade, Cazuza diz que quer cantar para os miseráveis, para pessoas de alma pequena. O senhor gostaria que a sua poesia chegasse aonde?
A poesia que faço tem chegado a pessoas de lugares cuja existência eu sequer supunha. No Brasil e fora daqui. Está bom assim, está bonito. Quero continuar a ser surpreendido.

• Por que a poesia?
Por que não a poesia? Tudo o mais — tudo o que verdadeiramente conta na arte — veio da poesia.

Diário da encruza
Ricardo Aleixo
Lira
112 págs.
Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite
Ricardo Aleixo
Todavia
160 págs.
Márwio Câmara

É  escritor, jornalista e crítico literário. Autor de Solidão e outras companhias (Oito e Meio, 2017) e Escobar (Moinhos, 2021).

Rascunho