Um olhar sensível sobre a poética de um século

Alguns críticos cobram ausências na seleção dos “cem melhores poemas brasileiros do século”, de Italo Moriconi. Obra já se tornou referência obrigatória para quem busca uma viagem estética pela poesia nacional
Italo Moriconi, organizador de “Os cem melhores poemas brasileiros do século”
01/07/2001

Selecionar, analisar, interpretar e julgar. Apontar em meio a infinitas possibilidades o que é melhor e, conseqüentemente, dizer que algo também bom não o é suficientemente para estar entre os melhores. Nesse tipo de escolha, o olhar tem um grande peso, sobretudo quando a matéria de análise é a literatura, a poesia.

Pois é justamente “o olhar” que referenda as escolhas e garante os méritos de Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século (Objetiva, 352 págs.). A antologia foi organizada pelo respeitado crítico e poeta Italo Moriconi, que a partir da visão de um intelectual raro faz as suas escolhas. Todas justificáveis e algumas questionáveis, o que não diminui o valor deste que é um dos mais belos retratos da poesia brasileira do Século 20. Para falar sobre esta obra Moriconi concedeu a seguinte entrevista ao Rascunho.

• O senhor não sentiu certa aflição de assinar uma obra que tem no título “os melhores…”?
Encarei o título como um desafio para realmente me empenhar num processo seletivo bem rigoroso.

• Como foi o processo de escolha do material que seria incluído no livro?
Basicamente através de intensas releituras das obras dos poetas e também da consulta de todas as antologias disponíveis, feitas ao longo do século.

• “Os excluídos” da lista vêm se manifestando ou só os críticos indicaram “faltas graves” na sua seleção?
Não há “excluídos” porque a minha antologia é de poemas e não de poetas. Alguns críticos reclamaram da ausência de poetas contemporâneos que são seus eleitos, mas isso é compreensível e é normal. Apenas atesta a credibilidade da minha assinatura e do projeto da editora.

• Quais as ausências mais cobradas? Affonso Romano de Sant’Anna não cabe na sua antologia?
Aqui no Rio de Janeiro a ausência mais cobrada tem sido a de Sebastião Uchoa Leite. Quanto ao Affonso, meu antigo mestre na PUC-RJ, tenho o maior respeito por ele e o considero um poeta que certamente tem seu lugar e sobretudo registro como momentos importantes na carreira dele o movimento da EXPOESIA, que lançou os poetas marginais no início dos anos 70, e, nos anos 90, a gestão dele na Biblioteca Nacional. Agora eu lhe devolvo a pergunta: para você seria imprescindível um poema do Affonso Romano na minha antologia? E qual seria esse poema? Eu não gosto do Que País é Este?, que considero palavroso e demagógico, além de pouco original nas idéias que trabalha. De Affonso Romano, prefiro alguns poemas mais curtos e mais fugazes dentro da obra dele, mas acabou que não inclui nenhum dele, o que não significa, em absoluto, que eu o esteja passando em julgado ou algo assim, até porque não cabe a mim esse tipo de coisa. A antologia é um objeto que tem sua própria lógica interna e isso é muito determinante na parte final, dos contemporâneos. A parte final deve ser lida como um todo integrado, onde as escolhas específicas foram em parte determinadas pela composição desse todo.

• Houve muitas pressões para incluir determinado poeta ou poema? E o que são “lobbies simpáticos”, citados pelo senhor na pág.25?
Não houve pressão formal nenhuma. Os lobbies simpáticos são os amigos que simpaticamente insistiam comigo para colocar tal e tal poema ou poeta. Antonio Torres, sem dizê-lo diretamente,  fez com que eu me preocupasse em ter a Bahia e o Nordeste representados, mas ele não se centrou especificamente num ou noutro, Ruy Espinheira Filho e Adriano Espínola são escolhas minhas, gosto muitíssimo dos poemas deles que escolhi, principalmente o poema do Adriano, que é uma pequena jóia dentro de uma linguagem tradicional. Minhas amigas Numa Ciro e Silvia Ramos insistiram muito em prol de Neyde Archanjo, que é uma poeta que prezo demais, mas que acabei não incluindo, porque não houve espaço. E de todos os lados vinham sugestões para eu incluir Eucanaã Ferraz, que é de longe o maior talento poético surgido no Rio de Janeiro nos últimos tempo, ao lado de Sergio Nazar David (este tem dois livros publicados pela Sette Letras). Pois veja você, eu que tenho uma admiração profunda por esses dois poetas, acabei não incluindo poemas de nenhum deles dois. Da novíssima geração carioca, acabaram entrando outros três: o Carlito Azevedo, a Lu Menezes e a Cláudia Roquette Pinto, que já são mais referendados pela crítica em geral.

• Há algo de positivo no fato de a crítica literária concentrar-se nos meios acadêmicos?
Há algo de negativo?

• Acho que sim. Não o fato em si, mas a crítica ficar restrita à universidade, convenhamos, é uma ação limitada ou não? ou apenas os escritores da trindade Uerj, Uff, Ufrj é que têm importância. Ao meu ver este fato é nefasto. Quando não há o diálogo, alguma coisa está errada. Não defendendo o Wilson Martins, pelo contrário, há só ele. O resto é resenha paga, entrevistas de escritores estrangeiros, fofoca, badalação…
O problema não é a crítica ficar restrita à universidade, o problema é não haver no Brasil um tipo de imprensa cultural que faça a ponte entre universidade e público culto em geral. Nisso, a grande imprensa paulista é muito melhor que a carioca, particularmente a Folha. Pena que eles privilegiem a USP. Quanto aos escritores, não acredito que os preferidos da comunidade acadêmica sejam os únicos que apareçam, pelo contrário, a crítica universitária gosta de escritores sofisticados e complexos, como João Gilberto Noll, Zulmira Ribeiro Tavares, ou transgressivos, como Hilda Hilst e Caio Fernando Abreu etc., e pouco se ocupa de escritores populares e que aparecem muito mais na imprensa, como João Ubaldo, Veríssimo, Jô Soares etc. O exemplo dado por você, Wilson Martins, é bastante infeliz. Nada mais típico de uma certa universidade que Wilson Martins, que foi professor da New York University durante décadas e, depois de aposentado, passou a escrever essa coluna dele no O Globo, uma coluna que eu não considero que seja uma coluna de crítica e sim uma crônica-resenha semanal. Não entendo sua colocação sobre resenha paga. Que as resenhas (inclusive no caso de Wilson Martins) substituíram a crítica literária na imprensa brasileira, não resta dúvida. Mas você deveria dizer: resenhas mal pagas. As resenhas que a
imprensa publica são muito mal pagas, em matéria financeira. Resenhas são espaço publicitário, só que no campo da literatura publicidade é uma coisa muito mais complicada que no mercado maior. Sim, porque você pode querer fazer a publicidade de uma idéia, e de repente, uma resenha pode ser o espaço ideal para isso. Hoje em dia acho mortífero para uma pessoa interessada profissionalmente em literatura ficar fora, alheia ou antagônica em relação à universidade. Até a linguagem dessa pessoa vai ficar defasada e antiquada. Na medida em que a grande imprensa está fechada para debates intelectuais mais profundos ou extensos, o único lugar em que ainda existe um mínimo de vida inteligente e de paixão por idéias é a universidade mesmo.

• Depois desse grandioso trabalho de pesquisa, houve alguma mudança no seu modo de ver a poesia brasileira? Alguma grande descoberta que não coube no livro?
As minhas descobertas e reformulações estão presentes no livro. Revalorizei para cima Vinicius de Morais e Augusto dos Anjos, poetas para quem antes não dava muita bola — claro que como letrista sempre tive adoração por Vinicius, mas descobri que como poeta ele é muito importante, particularmente por sua mestria técnica, embora, “ideologicamente”, digamos assim, ainda tenha diferenças para com ele, pois para mim ele é otimista demais, certinho demais, heterossexual demais, família demais, em suma, uma poesia burguesa demais, mas não posso deixar esse meu preconceito estético-ideológico toldar uma avaliação técnico-poética. Vinicius de Morais ensina muito a qualquer poeta. Quanto a Augusto dos Anjos, só agora tive a dimensão de quão moderno ele é. Considero-o em certos momentos uma alma gêmea de Jules Laforgue. Quem subiu muitos pontos também em minha avaliação foi o Ferreira Gullar, pois constatei definitivamente que o Poema Sujo é uma obra-prima também no sentido técnico. Embora o Poema Sujo não traga nada, absolutamente nada de novo, em relação a tudo que já havia sido feito pelos modernistas, ele se afirma como poema definitivo, porque ali Ferreira consegue mostrar tudo que se pode fazer com o verso livre. O Poema Sujo é uma das obras máximas em matéria de técnica poética em nossa literatura, é uma “summa” das possibilidades do verso livre.

• Porque “estreantes” figuram ao lado de grandes nomes como Drummond? Alguns críticos apontam falta de rigor histórico, como o senhor avalia esta crítica?
Não entendi a pergunta. A antologia tinha que ter uma abertura para os poetas dos anos 90, pois eles também fazem parte do século 20.

Como é lidar com as insatisfações?
Prefiro me manter à margem das fofocadas, até porque trabalho muito e não tenho tempo para isso. No momento, estou mergulhado num ensaio sobre a pedagogia do poema em Antonio Candido, que escrevo para uma publicação latino-americana organizada pelo professor Raul Antelo, de Santa Catarina. Estou também juntando todos os ensaios que escrevi nos últimos anos para lançá-los em livro o mais rápido possível,  de modo que o leitor possa ter uma idéia melhor de quem sou como crítico literário e pensador de questões estéticas.

• Dos  100 poemas selecionados qual é o seu preferido? Por quê?
É difícil escolher apenas um, mas a resposta que para mim é quase óbvia é Máquina do Mundo, do Drummond. Trata-se de uma realização tecnicamente perfeita, nos seus decassílabos brancos, um encadeamento perfeitíssimo de temas e imagens originais, e uma filosofia cética, mas ao mesmo tempo tranqüila, com a qual me identifico bastante. Em termos de um poema que me agrada muito atualmente, ou seja, que não sei se amanhã estarei gostando tanto quanto atualmente, destaco Tristezas de um Quarto Minguante, do Augusto dos Anjos, um poema em que me atrai sobretudo a estruturação global do ritmo poemático, o modo como vai sendo distribuída dramaticamente a matéria no desenrolar das estrofes.

• Drummond tem o maior número de poemas selecionados e é também o único citado nas quatro fases da sua coletânea. O que faz dele esse poeta sem par? Alguma descoberta nas releituras de Drummond? É o seu poeta preferido?
Sim, considero Drummond o maior poeta do século, é o mais completo. Todos os demais grandes poetas brasileiros do século têm algum calcanhar-de- aquiles. Drummond é o que menos tem um calcanhar-de-aquiles. O grande competidor de Drummond obviamente é Cabral, que também é de uma excelência acachapante. Mas eu acho que Drummond leva a língua brasileira mais longe, explora mais potencialidades da língua, inclusive no nível sintático. Além disso, ele possui uma variedade muito maior de temas. Cabral é limitado sintaticamente. Quanto a Murilo, é um poeta desigual, embora seja da minha particular preferência. Mas o calcanhar-de-aquiles de Murilo, a meu ver, é que nele não existe o poema como unidade acabada. Isso por um lado é muito importante esteticamente, mas por outro lado, numa abordagem comparativa com Drummond e Cabral, fica como limitação. Já Manuel Bandeira, em termos técnicos, é talvez superior a todos, além de sua poesia ser a mais essencial de todos, por conter nela exemplos primorosos de tudo que é importante saber fazer nessa matéria, tanto em termos formais quanto temáticos. A posição de Bandeira na poesia brasileira é pra mim semelhante à posição de Shakespeare no cânone do Harold Bloom. Considero Bandeira hors-concours, acima do bem e do mal, superior a todos, em última instância, mas, ao mesmo tempo, paradoxalmente, menor, até por que sua obra válida não é nada volumosa. Também admiro muito Cecília Meireles, que considero tecnicamente superior até mesmo a Camões. Mas ela tende às vezes a uma certa monotonia rítmico-temática, tem uma coisa meio binária demais no ritmo dela, e ela oscila entre um elevado espiritual e um baixo astral melancólico que em doses cavalares me cansa. Além disso, pessoalmente, não me identifico muito com o ethos oficialista e canônico de certa poesia de Cecília, mesmo tirando o chapéu para o altíssimo nível poético que ela atinge. Como você pode ver, nem sempre o olhar do antologista coincide inteiramente com o olhar mais pessoal.

• O senhor reconhece que depois deste trabalho passou a observar com outros olhos a produção poética de Vinicius de Moraes. E as letras de músicas da atualidade? Há alguém que consiga unir poesia e música com a competência de Vinícius?
Claro! Um dos maiores poetas da língua portuguesa em todos os tempos é Caetano Veloso, você tem alguma dúvida disso? Na nova geração, admiro um pouco o Arnaldo Antunes e muitíssimo o Renato Russo e também gosto de certas letras do Cazuza, como Malandragem, que anda tocando muito nas rádios na gravação da Cássia Eller.. Na novíssima geração, me interessam as letras de rap e gosto de muita coisa que ouço, do Cidade Negra, do Rappa, e por aí vai. Gosto da poesia que representa o desabafo do homem e da mulher da periferia urbana brasileira e global. Me interessa um letrista multilíngue como Mano Chao, sei que ele não é brasileiro, mas só para te dar um parâmetro. Dentro de uma linguagem mais MPB clássica, adoro Antonio Cícero e tenho uma devoção inenarrável pela Adriana Calcanhoto, assim como gosto do trabalho de letrista do Waly Salomão.

• O século 21 ainda é muito recente, mas o senhor já apostaria em algum nome ou poema mesmo, para constar numa próxima Antologia do Século? Quem é o grande poeta da atualidade?
Não há nenhum grande poeta absoluto na atualidade, a não ser, é claro, Ferreira Gullar, que está passando por um momento de consagração definitiva. Há um número infinito de bons e ótimos e excelentes poetas. Não destacarei nenhum aqui. Mas chamarei atenção para dois nomes cariocas:  Eucanaã Ferraz e Sergio Nazar David. E em São Paulo, me interessa muito o trabalho do grupo Calamus, com poetas como Fabio Weitraub e Ruy Proença. Tenho uma queda especial por Roberto Piva e por Valdo Mota e também pelo Glauco Mattoso — ou seja, pelos nomes mais destacados de uma lira homoerótica no Brasil. Me interessam as novas poetas mulheres, dentre as quais destaco sempre a carioca Claudia Roquette Pinto e gosto muito também da Josely Vianna Baptista, que lamento muito não ter incluído na antologia, mas essa coisa de incluir ou excluir depende de vários fatores, em vários casos simplesmente não “coube”.

• O senhor poderia fazer um panorama rápido da poesia brasileira atual. Em quais vertentes literárias estão os poetas atuais?
A poesia dos anos 90 apresenta duas vertentes básicas. Uma vertente esteticista, representada por poetas como Carlito Azevedo, Claudia Roquette Pinto, Nelson Ascher, Josely Vianna Baptista, o Jorge Lúcio. De maneiras muito próprias, podem ser incluídos nessa vertente poetas como Paulo Henriques Britto e Lu Menezes. A outra vertente seria uma vertente neoconservadora, metafísica, representada por Alexei Bueno, Bruno Tolentino, Marco Lucchesi. Talvez Ivan Junqueira se encaixe desse lado. Paralelamente a isso, existe um aprofundamento e diversificação da vertente feminista/feminina, com a própria Claudia Roquette Pinto, Clara Góes e muitas outras. E como emergência temática marcante nesses anos 90, aparece a poesia gay, que é um belo rótulo, mas que eu prefiro chamar de homoerótica masculina. Nessa nova voz, incluo-me eu mesmo, e poetas como Antonio Cicero e Valdo Mota, mas nós 3 temos abordagens bem diferentes, que qualquer leitor poderá verificar por conta própria. Gosto também de poetas mais dionisíacos, como Waly Salomão, e das sensualérrimas Hilda Hilst e Olga Savary.

Italo Moriconi
47 anos, é poeta e professor de Literatura Brasileira e Comparada na UERJ. Começou a publicar poesia em 1972, no antigo Suplemento da Tribuna da Imprensa. Depois de formar-se em Ciências Sociais na UnB em 1975, transferiu-se para o Rio, onde participou ativamente dos movimentos culturais e políticos da época. Colaborou com vários veículos da imprensa alternativa e foi um dos fundadores do jornal Beijo. Seus livros de poesia são: Léu (1988); A Cidade e as Ruas (1992) e Quase Sertão (1996). Sua tese de doutorado em Letras pela PUC foi publicada em livro com o título A Provocação Pós-Moderna (Editora Diadorim, 1994). Em 1996, escreveu para a Relume Dumará e Secretaria Municipal o volume da Coleção Perfis do Rio sobre a poeta Ana Cristina Cesar. Atualmente, trabalha num ensaio sobre a pedagogia do poema em Antonio Candido, que escreve para uma publicação latino-americana organizada pelo professor Raul Antelo, de Santa Catarina. Está também reunindo todos os ensaios que escreveu nos últimos anos para lançá-los em livro.
Jeferson de Souza
Rascunho