Um livro a ser completado

Entrevista com Mariana Zanetti
Mariana Zanetti, autora de “O leão e a estrela”
01/09/2013

Como se encontra um bom livro? No caso da literatura adulta, temos nossas próprias leituras como referência, além de notícias e resenhas sobre o assunto para nos orientar. Na área infantil, porém, as informações não circulam com tanta intensidade e nossas referências por vezes estão com décadas de atraso. Talvez aí seja o caso de o leitor adulto retomar o olhar espontâneo da criança e se deixar guiar pelas imagens, que na literatura infantil, sim, dizem muito a respeito da obra.

Em uma situação assim, os livros de Mariana Zanetti certamente teriam vantagem sobre os demais. Nascida em São Paulo, em 1977, e formada em arquitetura, Mariana ilustrou títulos como Zoo, de Fabrício Corsaletti, e Casal verde (Caramelo), de Índigo, e escreveu e ilustrou Como vou? e O leão e a estrela (ambos Companhia das Letrinhas), livros que exibem uma variedade de traços, temas, cores e técnicas que chamam atenção em um primeiro momento — e passam para a próxima fase, aquela em que são deixadas de lado as obras que subestimam a criança. Pois se nós, “leitores adultos”, podemos buscar mais do que mero entretenimento na literatura, é certo que o público infantil também.

É sobre esta “segunda fase” que Mariana Zanetti, atualmente morando em Berlim, na Alemanha, fala na entrevista a seguir — concedida via e-mail —, discutindo o papel e as possibilidades do livro infantil e a relação entre texto e imagem.

• Você se formou em Arquitetura, mas esta não é sua área de atuação. O que a levou à ilustração e à escrita de livros infantis?
Quando decidi cursar arquitetura, não pensava em ser ilustradora. Eu não tinha o hábito de desenhar, mas para entrar na faculdade havia a prova específica e por isso fui fazer um curso — eu não sabia que sabia desenhar. Percebi que tanto sabia quanto gostava, e durante o tempo que cursei a FAU minha atividade principal foi o desenho e a pintura. Pouco depois de formada, tentando me encontrar como profissional e também tentando encontrar um caminho para o meu desenho, tive a oportunidade de ilustrar um livro. E foi muita sorte, porque era um livro de poemas incríveis do Fabrício Corsaletti,  o Zoo. E outra sorte imensa foi, nesse mesmo momento, ter sido vizinha do Andrés Sandoval, com quem tinha muitas conversas sobre ilustração, sobre o formato livro — enfim, com quem aprendi e continuo aprendendo demais e a quem sou sempre grata. Essas duas coisas juntas me fizeram ver a ilustração como uma possibilidade profissional e de expressão. Mais tarde, comecei a gostar de brincar com as palavras. Isso tem muito a ver com meu filho, que dizia coisas lindas e poéticas, como as crianças costumam fazer. Daí, quando fui fazer a coleção Kinolivro, o editor me propôs que os livrinhos tivessem texto, não necessariamente meus. No caminho pra casa, de tão empolgada, fui criando e gravando no meu celular os cinco mini-poemas dos Kinolivros para não me esquecer. Me atraiu muito as possibilidades que as palavras têm ao se juntar, e comecei a exercer um pouco isso também. Mas vou discordar de que arquitetura não seja minha área de atuação. O fato de eu ter cursado arquitetura está presente em quase tudo que eu faço, tanto no jeito de circular pela cidade, educar meu filho, pensar sobre um filme a que assisti, quanto no meu trabalho de ilustração e na minha escrita. Tenho alguma convicção de que não teria escrito o Como vou? da forma como escrevi se não fosse arquiteta. Nem teria ilustrado Micromegas também do jeito como ilustrei, por exemplo. De certa forma,  meio tortuosa, acho que atuo sim nessa área.

• Muitas ilustrações nos livros infantis são bastante convencionais: traduzem, em imagens, o que o texto diz. Qual a relação que você busca entre texto e imagem? Em O leão e a estrela, por exemplo, você se inspirou nos filmes mudos, em que o texto é apenas um suporte para a imagem.
Eu procuro não traduzir em imagens o que o texto diz. Primeiro porque, na maioria das vezes, não faz sentido essa redundância. Segundo porque eu lia muito quando era criança e adolescente e me lembro bem da capacidade que tinha de traduzir o texto em imagens dentro da minha cabeça. Acho que todo leitor, principalmente os mais novos, tem essa capacidade. O que busco nas minhas ilustrações é construir uma idéia gráfica a partir de um texto. Faço um recorte, dentro desse texto, do que pode gerar uma narrativa visual. Ou crio narrativas novas, como a do gato que está caçando passarinhos em Casal verde, e que não aparece no texto. No caso de O leão e a estrela, houve um processo diferente, porque o texto é meu. Ele foi escrito antes, era bem maior, e passei muito tempo quebrando a cabeça para descobrir como ilustrá-lo. Quando comecei as experiências com a mesa de luz [usada para visualizar imagens sobrepostas, feitas neste livro a partir de recortes e montagens], vi que estava no caminho certo, porque havia achado um conceito visual para o livro, já que a luz tinha um peso na história. A partir daí, no meio do processo, veio a identificação com o cinema, com a Lotte Reiniger e a certeza de que a função do texto teria de mudar: ele deveria ser um suporte à narrativa que as imagens traziam, como no cinema mudo. Algumas vezes (mas não sempre) a imagem fala mais que o texto, e poder mudá-lo em função disso é um privilégio.

• O fato de um trabalho de ilustração ser voltado para o público adulto ou infantil influencia no processo e no resultado final?
Muito pouco, ou nada, talvez. Nunca fiz um livro para adultos com narrativa, então não tenho certeza de que as preocupações seriam as mesmas. Mas no resultado plástico e gráfico, não. Estou convencida de que essa classificação da linguagem gráfica que se diz ser voltada para o público infantil é uma necessidade dos adultos, não das crianças. Vejo muito claramente que elas se interessam tanto ou mais que adultos por desenhos e pinturas “de adulto”. E percebo agora, respondendo a essa pergunta, que os desenhos que fiz voltados para o público adulto poderiam perfeitamente estar em livros infantis, e vice-versa. Nem sempre quanto à temática, mas sim quanto à linguagem. Fico feliz em perceber isso.

• Há diferenças entre literatura infantil e adulta? Quais suas preocupações ou limites ao escrever para crianças?
Acho que sim. A literatura adulta tem uma complexidade de temas e de vocabulário que na maioria das vezes não é assimilada por crianças. É natural isso, né? Mas bons livros infantis interessam aos adultos também. Minha preocupação, nas poucas vezes em que escrevi, foi não ter um texto com uma idéia acabada e fechada. Gosto de que, dentro da cabeça de cada um, de acordo com suas vivências e sensações, o texto possa ser completado e interpretado livremente. As crianças têm um potencial grande para isso, mesmo que não seja verbalizado.

Página de “O leão e a estrela”

• Alguns autores dizem ser necessário voltar a ser criança na hora de escrever para ela. Em Como vou?, por exemplo, você explora de forma lúdica o uso dos meios de transporte. Quais aspectos da visão de mundo da criança você busca?
Eu adoraria conseguir voltar a ser criança quando escrevo, mas não é o que sinto. Eu tento usar minha bagagem de adulta (que já foi criança e não esquece disso, é verdade) para trazer conceitos que acho importantes ou divertidos. Em Como vou?, poderia dizer que brinquei com um aspecto muito forte das crianças, o de elas serem auto-referentes. Então, falo sobre mobilidade nas grandes cidades (ou em qualquer lugar, porque é só a criança completar o raciocínio a partir da sua realidade) de acordo com a experiência e necessidade do personagem, que é apenas um “eu”. As ilustrações, feitas em parceria com o Fernando de Almeida e a Renata Bueno, buscam o lado mais fantasioso da criança, enquanto o texto segue uma linha mais lógica. Acho que a lógica também é divertida para crianças, por isso eu estava bem decidida a não inserir no texto elementos que fossem meramente brincadeiras ou fantasias quando surgiram algumas sugestões nesse sentido. No Leão, minha busca foi outra. Queria falar de forma não moralista sobre medos, agressividade, descobertas, amor… Queria que essas coisas não fossem vistas umas como melhores que as outras, mas todas como sentimentos naturais e interligados, que para uma criança às vezes são difíceis de compreender.

• É possível tirar uma “lição” de O leão e a estrela, em que o animal é retratado fora de seu estereótipo “forte e corajoso” e só com uma certa ajuda passa a enxergar o mundo de outra maneira, a descobri-lo e aceitar o diferente. É importante passar uma mensagem à criança, já que ela está em um período de descoberta e educação?
Acredito que sim. Mais do que assimilar uma mensagem, acho que a criança pode identificar alguns aspectos de sua própria agressividade, por exemplo, pensar em suas causas e conseqüências. E também sentir que o medo faz parte da descoberta, que crescer não é fácil, mas pode ser bom, que a gente pode amar o que a princípio nos assusta, que cada um reage de uma forma ao novo. Espero que dê sempre para descobrir coisas novas que podem identificar o universo e os sentimentos de uma criança (e de adultos também) à história de O leão e a estrela.

• Que maneira você (detentora de uma visão de mundo diferente da infantil) encontrou para dialogar com as crianças através dos livros?
O fato de fazer livros em si já é uma forma de diálogo, porque acredito que as crianças têm certa propensão a gostar de histórias e desenhos. O que eu tento, nesse diálogo, é respeitar a capacidade enorme de observação, imaginação, criação e aprendizagem da criança: não oferecendo um texto fechado, uma ilustração explicativa, um livro que só traz algumas informações e uma moral a ser ensinada. Não sei se tenho conseguido, mas busco fazer livros que dêem espaço para as crianças descobrirem coisas não apenas na primeira leitura, mas na segunda, na terceira, e espero que em cada vez que os abrirem. Se às vezes acontece de algo não estar claro na primeira leitura de um texto ou, principalmente (já que tenho muito mais livros ilustrados do que escritos por mim), de uma ilustração, isso não me preocupa, porque um livro pode ser assimilado aos poucos — e isso, muitas vezes, o torna mais interessante e instigante. Claro que não pode ser totalmente ininteligível, porque senão o diálogo não acontece. Mas também não precisa se entregar todo no primeiro contato.

Yasmin Taketani

É jornalista.

Rascunho