Um intérprete do nosso tempo

Aos 75 anos, Ruy Castro reafirma sua crença na palavra e na informação ao lançar seu terceiro romance e um guia para biógrafos
Ruy Castro, autor de “Os perigos do imperador” Foto: Chico Cerchiaro
01/05/2023

Após 16 anos, Ruy Castro volta ao romance com um livro bem ao seu estilo, em que tudo “é verdadeiro, exceto a trama”. É como se estivéssemos no mundo ideal e a História com H maiúsculo fosse contada com o sabor de um clássico da literatura. A obsessão de Ruy pela informação desemboca em um texto literário fluído em Os perigos do imperador, com D. Pedro II no centro de uma trama que almeja eliminá-lo.

O livro todo é construído como um “mosaico”, com cartas, trechos de diários, bilhetes, documentos e matérias de jornal. “A ideia do mosaico, ninguém percebeu, mas foi tirado do romance Drácula, de Bram Stoker, de quem sou grande fã”, diz o escritor.

E no ritmo de um romance policial, o autor vai dando pequenas pistas ao leitor de como um grupo de republicanos trama a morte do imperador brasileiro durante uma visita aos Estados Unidos, por conta das comemorações do Centenário da Independência americana, em 1876.

Ruy Castro diz que o novo romance — este é o terceiro que escreveu — é “o livro de um biógrafo em férias”. O que é uma meia verdade. Quase simultaneamente a Os perigos do imperador, no final de 2022, ele lançou A vida por escrito — Ciência e arte da biografia, um verdadeiro manual com a assinatura de quem revigorou o gênero biográfico no Brasil a partir dos anos 1990. Mas é possível ensinar a escrever biografias? “Ela pode ser ensinada — se será aprendida, depende do aluno”, diz o autor que retratou as vidas de Garrincha, Nelson Rodrigues e Carmen Miranda.

Membro da Academia Brasileira de Letras há pouco mais de dois meses, Ruy Castro comenta sobre a nova fase da instituição, que em anos recentes teve uma participação maior no debate sobre as grandes questões brasileiras. Assuntos que Ruy Castro está acostumado a tratar em suas crônicas na Folha de S. Paulo e que também comenta nesta entrevista ao Rascunho.

• Os perigos do imperador é seu terceiro romance cujos personagens são figuras históricas do século 19. Você é um é um ficcionista com “alma de historiador”?
Não, cada romance meu é apenas o livro de um biógrafo em férias. Ao contrário dos romancistas de verdade, que criam plots e personagens da própria cabeça — e sei disso, porque sou casado com Heloisa Seixas —, preciso partir de um personagem que existiu e que tenha feito ou possa ter feito algo que posso desenvolver — e, aí, sim, crio novos personagens ao redor dele ou aproveito outros que existiram e se relacionaram com ele. Não confundir com “romance histórico”, porque não tenho a intenção de “romancear” uma passagem importante da história. No meu caso, o biógrafo está o tempo todo por trás do romancista, porque tudo que você ler nos meus romances — cenário, ruas, meios de transporte, roupas, comidas, cheiros, falas etc. — foi pesquisado e usado no texto. De certa maneira, tudo nos meus romances é verdadeiro, exceto a trama.

• O romance apresenta um “mosaico” narrativo, feito por muitas vozes, por meio de diários, cartas e reportagens. Chama atenção o modo como você costurou tudo isso, sincronizando as diversas “versões” dos personagens para os acontecimentos que se sucedem. Foi um livro em que a edição foi tão importante quanto a fabulação?
Sem dúvida, embora tudo tenha sido feito ao mesmo tempo. A ideia do mosaico, ninguém percebeu, mas foi tirado do romance Drácula, de Bram Stoker, de quem sou grande fã — tenho até um pequeno busto dele na estante, em frente aos seus vários livros. Stoker construiu sua narrativa em cima dos diários e cartas de seus personagens. Peguei a ideia, mas expandi-a, usando também documentos, artigos de jornal, reportagens, telegramas, bilhetes, muitos mais, além da voz de um narrador tradicional que às vezes interfere para ligar os pontos. Mas, também aí, houve trabalho de pesquisa: a maioria dos textos do repórter James O’Kelly é autêntica, tirada de suas matérias no New York Herald; o diário e as cartas de D. Pedro foram inventados por mim, mas escritos no estilo dele, adaptados de suas cartas de verdade, que estão em muitos livros; e a psicologia de certos personagens paralelos, como o Sousândrade, corresponde à sua trajetória na vida real. Quanto à simultaneidade de “versões” para um fato, foi muito inspirada em William Faulkner, que fazia muito isto, e, se você quiser saber, no mesmo recurso usado no cinema por Stanley Kubrick em seu filme de 1955, O grande golpe (The killing).

• A história do atentado contra D. Pedro II é construída aos poucos e você deixa para as últimas páginas a narrativa do fato em si. Quase como um romance policial, em que o desfecho do crime se dá no crepúsculo. Foi esse o efeito que buscou?
Sim, e isso me preocupou durante todo o trabalho de escrita. Eu me perguntava se o leitor iria me acompanhar até o fim. Ao mesmo tempo, fiquei fascinado pela trajetória de D. Pedro nos Estados Unidos — e cada estágio de sua viagem que descrevo no livro aconteceu. A própria edição de 1864 dos poemas do Coleridge, em dois lindos volumes, que ele levou para o poeta assinar, eu tenho e manuseio sempre. Comprei num leilão aqui no Rio. Quem sabe eram os que pertenciam ao Imperador?…

• Ao misturar ficção com fatos históricos, acredita que possa gerar interesse das pessoas na história com H maiúsculo?
Espero que sim, desde que não queiram ir buscar na História a tentativa de assassinato de D. Pedro. Ela é uma ficção, claro. Para isso, criei aquele subtítulo: “Um romance do Segundo Reinado”.

• Ao longo do romance, D. Pedro II é visto ora como um monarca preguiçoso e pouco produtivo, ora como um homem astuto, bondoso e interessado em cultura. Com qual das duas personas você fica?
Prefiro a segunda, que acho mais compatível com a realidade. Ele tinha muitos defeitos, típicos da colonização portuguesa, mas também deixou coisas extraordinárias e foi, sobretudo, um democrata. O que, aliás, fica claro no livro, nos jornais que o atacavam e circulavam livremente, com os piores insultos a ele, e na violenta propaganda republicana.

• Em Era no tempo do rei, seu romance anterior, o personagem era Dom Pedro I. Agora, você escreve sobre Dom Pedro II. Quem foi, para você, o personagem mais interessante de recriar?
Dom Pedro II, porque pude me basear em muita coisa dele na vida real. O Dom Pedro I de Era no tempo do rei era baseado nos relatos que temos sobre ele em criança e depois como jovem adulto, já quase na Independência. Sabemos pouco ou nada sobre sua adolescência. Juntando as duas coisas e tirando a média, criei aquele Dom Pedro. Ele não cometeu aquelas peripécias de que falei no livro, mas, na minha opinião, poderia ter feito. Assim como o Olavo Bilac de Bilac vê estrelas era um personagem plausível para viver aquelas aventuras.

• Seu livro sobre o trabalho de biógrafo, A vida por escrito, é resultado dos vários cursos que ministrou nos últimos anos. Embarcando em uma dúvida que sempre paira também sobre as oficinas de criação, é possível formar um biógrafo?
Como eu digo no livro, se a biografia é uma ciência, ou seja, uma técnica, ela pode ser ensinada — se será aprendida, depende do aluno. Mas, se ela for também uma arte, isso já não dependerá do professor…

• Um dos capítulos do livro traz dicas sobre técnicas de entrevista. Diria que esse é um trabalho tão importante quanto a própria escrita da biografia?
Tenho certeza que sim. Se a biografia (pelo menos do jeito que a faço) é construída em cima de perguntas aos contemporâneos do biografado, saber fazer essas perguntas é fundamental. Gostaria que A vida por escrito fosse lido também pelos nossos colegas repórteres de televisão, para aprenderem a ser objetivos nas perguntas e não ficarem elaborando interminavelmente cada uma, o que só ajuda o entrevistado a não responder direito.

• Você cita a biografia do compositor Cole Porter, de Charles Schwartz, como um livro que o inspirou a ser biógrafo. Que outros livros do gênero fizeram sua cabeça antes de se tornar um biógrafo?
Outros livros de que gostei muito foram Judy, de Gerold Frank, sobre Judy Garland, Wishing on the moon, de Donald Clark, sobre Billie Holiday, e principalmente What fresh hell is this?, de Marion Meade, sobre Dorothy Parker. Marion, aliás, morreu há alguns meses. São biografias de artistas americanas, mas poderiam ter sido de ditadores brasileiros ou políticos europeus — aliás, há também muita coisa boa no gênero. Mas citei essas três porque eram histórias envolvendo genialidade e dependência química — esta, tratada como acho que deve ser e como tentei fazer no livro sobre Garrincha. Quando li as duas últimas, já tinha publicado o Estrela solitária e fiquei contente de ver como, nelas, a dependência química (de álcool e drogas) era mostrada com fatos objetivos, sem desvios ou “interpretações” psicológicas.

• Suas biografias sobre Nelson Rodrigues, Garrincha e Carmen Miranda são aclamadas e vistas por muita gente como “definitivas”. Esse termo é apropriado para o gênero biográfico? Acredita que, no futuro, novos biógrafos possam se interessar por esses personagens?
Não só podem como deveriam — desde que levassem a investigação adiante, descobrindo fontes que não usei. Os três livros que você citou já geraram filhotes, mas, de alguns, pensei até em cobrar direitos autorais…

• Durante muito tempo a Academia Brasileira de Letras foi vista com certo deboche até mesmo por escritores. Em anos recentes, a entidade parece ter ganhado mais relevância, incorporando artistas como Gil e Fernanda Montenegro. Agora que é um imortal, o que pensa do momento da instituição?
Esse deboche parte de pessoas que não conhecem a Academia. O que dizer de uma instituição fundada por Machado de Assis e que teve entre seus membros Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Oswaldo Cruz, Santos-Dumont, Roquette-Pinto, Manuel Bandeira, José Lins do Rego, Jorge Amado, Rachel de Queiroz, Marques Rebelo, Alvaro Moreyra, Aurélio Buarque de Holanda, Antonio Houaiss, Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Guimarães Rosa, Antonio Callado, Otto Lara Resende, João Ubaldo Ribeiro, Lygia Fagundes Telles, Carlos Heitor Cony, João Cabral de Melo Neto, Ferreira Gullar? A Academia me permite hoje conviver com pessoas como Alberto da Costa e Silva, José Murilo de Carvalho, Arno Wehling, Ana Maria Machado, Rosiska Darcy de Oliveira, para citar apenas cinco. Mas todos os membros são de grande calibre intelectual e fizeram por estar ali. Gil e Fernanda são mais, digamos, populares, mas a Academia sempre teve membros que, ao sair à rua, paravam o trânsito, como Olavo Bilac e João do Rio. A Academia está vivendo um momento importante, com uma agenda movimentada de eventos próprios e a defesa das instituições democráticas — vide seu manifesto pela lisura das urnas eletrônicas e pela liberdade, pouco antes do segundo turno das eleições.

• Em uma entrevista que tem circulado bastante nas redes sociais, Milton Hatoum diz que o nosso tempo, por ser “o tempo da velocidade, da pressa e da banalidade”, preteriu a literatura. Você que passou a vida cercado por livros, acha que a literatura é hoje menos importante do que em outras épocas?
Em termos de alcance e penetração, sim. No passado, ela não tinha os concorrentes que tem hoje. Ao mesmo tempo, a literatura está muito mais viva do que parece, porque são os escritores que conseguem interpretar o nosso tempo — não os influencers (fiquei sabendo que há cachorros influencers) ou os criadores de videogames. E, sim, tive a sorte de passar a vida cercado de livros (e também de filmes, discos, objetos, amigos, gatos). Não posso me queixar. Sempre trabalhei com o que gostava e continuo tão empolgado com minhas matérias-primas, a palavra e a informação, quanto em qualquer época.

• Além de autor de sucesso, você é um dos jornalistas culturais mais admirados do Brasil. Posso estar enganado, mas não recordo de você falando muito — em suas colunas ou entrevistas — da literatura mais contemporânea do país. Você lê os mais jovens?
Por falta de tempo, não. E também porque ainda não acabei de ler Alexandre Dumas. Mas sei que há muitos autores jovens interessantes e espero que venham mais. Por incrível que pareça, eu também já fui terrivelmente jovem um dia…

• Além de temas da cultura, suas crônicas na Folha de S. Paulo tratam, basicamente, do cotidiano brasileiro — da economia à política. Que balanço faz dos últimos anos no Brasil e para onde acha que o país vai no futuro breve?
Não sou exigente. Por mim, pode ir para onde a História o mandar — desde que não se afaste nem por um milímetro da democracia.

Os perigos do imperador
Ruy Castro
Companhia das Letras
200 págs.
A vida por escrito
Ruy Castro
Companhia das Letras
184 págs.
Luiz Rebinski

É jornalista e escritor. Autor do romance Um pouco mais ao sul.

Rascunho