Um garimpeiro da memoria

O poeta mineiro Iacyr Anderson Freitas explica da necessidade poética de superação do tempo
Iacyr Anderson Freitas, autor de “Viavária”
01/10/2000

Iacyr Anderson Freitas é um engenheiro civil que enveredou para a poesia. E com muita qualidade. Nasceu em Patrocínio do Muriaé, Minas Gerais, em 1963. Mas os cálculos ficaram para trás e o poeta carrega a literatura a pulsar com força. Prova disso é o mestrado em Teoria da Literatura e os vários versos que o incluem entre os principais poetas brasileiros.

Tendo publicado onze livros de poesia e dois de ensaio, Iacyr já recebeu diversas premiações literárias. Destacam-se a Menção Especial no Prêmio Jorge de Lima, conferida ao volume SÍSIFO NO ESPELHO, em 1989, pela União Brasileira de Escritores (RJ) e, por duas vezes, o primeiro lugar em poesia no Concurso Nacional de Literatura Cidade de Belo Horizonte, em 1990 e em 1993, com os livros MESSE e LÁZARO. Em 1997, o poeta recebeu também o Diploma de Mérito Cultural da União Brasileira de Escritores (RJ) e, três anos depois, o seu livro QUATRO ESTUDOS conquistou o Prêmio Eduardo Frieiro, versão 2000, promovido pela Academia Mineira de Letras.

Em virtude dos prêmios literários recebidos, bem como da intensa colaboração na imprensa em todo o País, onde divulgou também artigos críticos e traduções de poetas hispano-americanos, espanhóis e italianos contemporâneos, a sua obra poética passa a ser igualmente reproduzida em outras línguas e países (Colômbia, Espanha, Argentina, Estados Unidos, França, Chile, Itália e Portugal).

Além disso, Iacyr foi incluído entre os 31 poetas brasileiros do século XX escolhidos para a antologia divulgada no número 23 da International Poetry Review, editada pelo Departamento de Línguas Românicas da Universidade da Carolina do Norte, em Greensboro (USA), com tradução do poeta e professor norte-americano Steven White. Iacyr  também participou da coletânea de poetas brasileiros, em edição trilingüe (português, inglês e húngaro), intitulada Pearls of Brazil — Brazilia Gyöngyei — PÉROLAS DO BRASIL, organizada e traduzida pela escritora Lívia Paulini; bem como do livro FUI EU, organizado por Eunice Arruda. Assis Brasil também o incluiu na antologia A POESIA MINEIRA NO SÉCULO XX, cuja primeira edição circulou em 1998, e Jean-Paul Mestas traduziu para o francês quatro composições do poeta, incluindo-as no livro bilíngüe REFLEXOS DA POESIA CONTEMPORÂNEA DO BRASIL, FRANÇA, ITÁLIA E PORTUGAL, editado em Lisboa. Em breve, a Boitempo lança a antologia OCEANO COLIGIDO.

Livro MESSE

• No poema UM CAMINHO URGE, está escrito “eis que um caminho urge/sozinho/sob o escuro da flora”. Quem faz o caminho? O caminho se faz caminhando?
Este poema tenta projetar uma metáfora acerca da nossa paradoxal busca de permanência, acerca da nossa necessidade de construir, a partir dos livros, uma supra-realidade, um lugar onde a supressão dos liames temporais possa ser enfim vivenciada. Mas é importante observar que tal supressão é em si mesma contraditória, já que deita as suas raízes no que há de mais mundano e transitório. Ou seja: para anular a intervenção do tempo, nos lançamos mais ainda contra o próprio tempo, imergimo-nos completamente nele. Daí a “ostentação” (no sentido de “revelar com brilho e glória”) e o “claustro”, uma vez que tal supressão só pode existir na estufa gerada a partir dos fugazes espaços de leitura. Daí o “vento” — não seria melhor dizermos “tempo”? — “que não quer/deixar os livros”. Logo, o caminho possível rasura a treva (“o escuro da flora”) da nossa carência de sentido e de posse. Ainda que pobre, é essa a nossa escolha, a nossa fuga da errância. Fazemos esse caminho primeiro em nós mesmos, e só depois o projetamos para fora de nós, no mundo.

• Um Ciclone Atravessa Agora a Eternidade: “Já não me basta percorrer/as idades que me atravessaram”. O que é o passado para o poeta? O poema é um processo que se desenvolve no tempo ou o poeta cria hoje, agora? A eternidade é um espaço imutável? O que um ciclone pode destruir na eternidade? A eternidade é a maior busca do poeta?
Somos o nosso passado. Não obstante, o poema se prende à redoma do momento em que está sendo criado. Dizer extremo, ele é o instante inaugural da sua própria e solitária enunciação. Expõe as marcas daquele instante. Muitas vezes vem se desenvolvendo — fervilhando em nossa cabeça — desde muitos anos, mas só passa a existir, contudo, na página. No momento efetivo da sua criação. Alvejamos nele uma partilha da eternidade? Sim: alvejamos tudo o que nos transcende. Sem embargo, a eternidade será sempre algo incomensurável para nós, que estamos atados aos carretéis do tempo. O próprio conceito de eternidade é algo avassalador: não podemos nos aproximar muito dele, já que é por demais incompreensível para o nosso molde humano e datado.

• Antes: “Memória alguma/ilumina o que fostes”. Quando a memória não resgata o passado? A memória é uma mina de ouro onde o poeta escava matéria para a sua poesia?
Não é por acaso que Mnemósina é a mãe das musas. Ao afirmar que somos o nosso passado, digo que somos também a memória — essa terrível antologia — que conseguimos a duras penas preservar, seja consciente ou inconscientemente. O problema é que resgatar o passado, neste caso, não é o mesmo que vivenciá-lo novamente. Ainda que, através desse resgate, os fatos pretéritos possam ser deificados, retocados pela nossa imaginação, a dor da perda não se dissipa. Queremos sempre eternizar o que foi bem-sucedido, embora tudo em nós seja transitório por excelência. Para ser de fato algo que nos surpreenda e nos arrebate, a felicidade não pode ser duradoura. Assim, a memória não é apenas uma “mina de ouro” para a poesia. Ela é a nossa existência em repouso. Como se ao espelho.

• Muriliames: Qual culpa temos de nosso nascimento e morte?
R
. Este conjunto tripartido de poemas tem, como o próprio título indica, o fito de retomar a dicção visionária de Murilo Mendes. Cumpre, dessa forma, uma pequena homenagem. E a simbologia bíblica da queda tem larga ressonância na obra do poeta de Siciliana. Por isso escrevo, na peça em questão, que “em verdade/sou culpado pelo amor/daqueles que me antecederam,/culpado pela iniqüidade/de meus pais,/pela culpa mesma de meu nascimento/e morte”.

• Há em MESSE ecos da poesia de Ruy Espinheira Filho. Concorda?
Tenho especial admiração pela poesia do Ruy Espinheira Filho, de quem sou amigo de longa data, mas confesso que, assim como não procuro fechar caminho às influências, também não as identifico claramente em meus livros. MESSE foi escrito em 1989, tendo como escopo um feixe de motivos que, a meu ver, guarda algumas diferenciações em relação à poética do autor de MORTE SECRETA.

Livro LÁZARO

• Apócrifo: “dos girassóis, reverencio/o fulgor/que me desconsola”. Há flores/flora na sua poesia. O que as flores representam além do lugar comum: beleza?
Metáfora da própria poesia e emblema arquetípico do espírito, a flor guarda um simbolismo riquíssimo — e não apenas para a literatura. Assim, sua imagem pode representar os chamamentos do princípio passivo, do estado edênico ou da própria instabilidade da existência, entre muitos outros campos de significação.

• Quando a engenharia constrói um poema?
Nunca, creio eu. Por mais que me seduza o lugar-comum de “engenheiro da palavra” (e coisas tais), devo reconhecer que, de fato, a poesia não tem nada a ver com isso. Ou, por outro lado, a engenharia não tem culpa nenhuma.

• Devir: “Devir que somos/e tão incompletos”. Muitos poetas são fiéis a um estilo. O grande João Cabral manteve-se fiel a uma estética. O poeta deve mudar sua forma de escrever ou deve ser o mesmo e fiel a um projeto literário muito claro? É um dever devir?
Em poesia, principalmente, nada pode ser mais relativo do que uma verdade absoluta. A obra de João Cabral é grandiosa e, felizmente, transcende as suas convicções críticas. Seja lá como for, é muito difícil estabelecer regras. O que chamamos coerência amiúde não passa de pobreza de espírito. O verdadeiro ato de existir deve abarcar a diferença, deve prová-la e amá-la acima de tudo, deve renunciar à repetição. Desconfio que talvez o ecletismo — entendido aqui como uma posição intelectual que não seja refém de nenhuma linha rígida e inflexível de pensamento — seja o motor do mundo.

Livro MIRANTE

• Soneto 4: Criar é o que resta para o indivíduo niilista? Por que sonetos tradicionais?
Para um niilista convicto, de carteirinha, não acredito que reste muita coisa além do célebre carpe diem. Nem mesmo criar o que quer que seja, já que há muito de angustiante neste tipo de empreendimento. Quanto à importância dos sonetos, bem, julgo que eles respondem, pelo que conseguiram oferecer como contribuição à história da lírica, por alguns dos pontos mais altos da produção em verso de todas as épocas. Muitos dos meus poemas prediletos, aos quais estou constantemente retornando em minhas leituras (Camões, Gregório, Pessanha, Bilac, Cassiano Ricardo, Bandeira, etc.) são sonetos. O termo “tradicional”, no entanto, precisa ser melhor explorado. O que não é tradicional hoje? Aquilo que chamamos atualmente de “poética da desorientação” deriva da pena rimbaudiana e, portanto, não é nenhuma criancinha de colo. Por outro lado, a implosão da estrutura convencional do verso foi levada a limites extremos por Mallarmé no final do século passado. Poderíamos insistir mais ainda nessa lengalenga. Mas, voltando à pergunta, o que não é tradicional hoje? Apenas a indigência cultural dos segundos cadernos — com seus achaques modernosos — encontra novidades revolucionárias a cada segundo. A poesia passa ao largo desses festins.

• Soneto 10: Há algo mais importante que a vida? A vida é a melhor matéria para a literatura?
Não, não há nada mais importante do que a vida. Tudo emana dela: por isso é preciso viver com dignidade. Dignidade não apenas financeira, diga-se de passagem. E isso é extremamente difícil hoje em dia. O conceito de liberdade, por exemplo, é atualmente apenas o direito inalienável do sujeito de consumir e de se conformar com o consumo. É, por extensão, o direito-dever de ser consumido. De modo absolutamente paradoxal, o totalitarismo moderno se assenta em bases “democráticas”, já que o que compreendemos como “democracia” hoje não passa, em muitos casos, de um divertimento do poder e do capital. Por conseguinte, a despeito de todos os obstáculos, precisamos defender, com unhas e dentes, a vida que nos move, não permitindo que outros se sirvam dela em nosso nome.

Outras palavras

• O que há de comum entre os quatro escritores presentes no livro QUATRO ESTUDOS?
De acordo com o próprio título do volume, QUATRO ESTUDOS é uma recolha de trabalhos críticos diferenciados. Apesar disso, há uma via estreita de ligação entre estes estudos, resumidamente indicada na orelha do livro: os motivos condutores do paraíso e, em contraponto, o arquétipo da queda, da privação absoluta.

• O poeta hoje é um erudito que escreve para poetas? Como vê a afirmação de José Castello de que há muita poesia de professor hoje em dia? Quem é o poeta brasileiro?
Sim, como em todas as épocas, há muito equívoco circulando. E até recebendo também, já que alguns se julgam mais filhos de Deus do que outros, a sua cota de bajulação crítica. Mas esse é um dilema consuetudinário, que transcende o nosso tempo. A despeito disso, é muito importante lembrar que, pelo menos a partir de meados do século XIX, a reação da poesia aos estatutos frugais da literatura de mercado então emergente foi de fato avassaladora. Ao poeta não interessa uma leitura que não seja uma leitura ativa, avessa à mera confirmação de expectativas. Poesia é revelação, desvelamento extremo. Mas a luta contra a ditadura mercadológica tem seu preço. No caso da produção poética, era natural que este preço fosse pago através do simples alijamento editorial. Pela sua própria essência, o verso estava longe de se encaixar nos parâmetros utilitários do mercado. Ora, em virtude de tal alijamento, a poesia começou a circular em âmbitos mais restritos, estando hoje muito vinculada, infelizmente, aos próprios poetas. Isso talvez tenha fomentado algumas pragas como, por exemplo, a auto-referencialidade ou o excesso de experimentos metalingüísticos. Daí a pecha citada pelo José Castello. Mas essas pragas são comuns em muitos períodos (lembremos do entulho concretista de poucas décadas atrás) e o grande escritor existe para negá-las ou colocá-las no seu devido lugar. A forte tradição da poesia brasileira, por exemplo, com expressivos nomes surgidos no decorrer dos últimos cem anos, saberá superar, sem traumas, esses entraves.

• Qual mote melhor o representa?
Sinceramente nenhum.

• Qual o papel do escritor na sociedade?
Os mais pragmáticos insistem que é o de formato A4 e de gramatura 75 ou 90 por metro quadrado. Mas, deixando os pragmáticos de lado, julgo que o nosso papel é lembrar a todos que as grandes questões ainda continuam acesas e fulgurantes, que o entulho tecnicista não resolveu em nada o dilema existencial do homem, que é preciso manter bem viva a consciência da nossa temporalidade, os mil fogos da linguagem, que não podemos desamparar o nosso imaginário, afinal, em prol de um rosário de expectativas prontas para o consumo. Do convívio ativo com a poesia, bem como com a própria literatura em geral, é licito esperar sempre uma maior humanização do homem, um maior respeito à diversidade e à liberdade de pensamento. É lícito esperar uma sociedade mais justa, portanto.

Rodrigo de Souza Leão
Rascunho