Um escudo contra o caos e a morte

Ana Martins Marques fala sobre seu novo livro, "Risque esta palavra", que tem influência do momento pandêmico, e reflete sobre a potência da linguagem poética
Ana Martins Marques, autora de “Risque esta palavra”
24/08/2021

Risque esta palavra, o novo livro da poeta mineira Ana Martins Marques, aborda temas como a morte, a língua e o ato de fumar. No entanto, é como se suas principais dúvidas fossem responder o que foi feito das palavras, para onde elas vão e como encontrá-las. A ideia de que o vocabulário usado pelas pessoas é antigo também está presente em vários poemas, de forma que suas construções são pensadas para trazer essa historicidade da fala, do cotidiano e dos pequenos atos. De certa forma, o livro conversa com o primeiro, A vida submarina, que acaba de ser relançado. Ambas as obras trazem a temática do mar, mesmo a autora tendo nascido longe dele, em Belo Horizonte (MG).

Outros elementos compartilhados pelos dois livros são os desfechos inesperados que muitos poemas tomam, além da habilidade que Ana tem de partir de pensamentos concretos para uma inversão de significados, resultando em novas imagens muitas vezes marcantes e usando para isso pouquíssimas palavras. Uma característica inerente ao poema, é claro, mas que a autora sabe usar muito bem a seu favor e que potencializa sua produção recente, tornando-a mais impactante.

Em entrevista ao Rascunho, Ana Martins Marques fala de ambas as obras, cita os muitos autores que mobilizaram sua visão poética e reflete sobre a linguagem na poesia — que “pode nos ajudar a lançar um novo olhar sobre os objetos cotidianos”, segundo a vencedora do Prêmio Biblioteca Nacional de 2012, com Da arte das armadilhas, e uma das ganhadoras do Oceanos de 2016, com O livro das semelhanças.

• A poesia pode usar a palavra para construir imagens impossíveis, como quando você escreve: “Com isso já vi morrer uma pedra/ e um cachorro enforcar-se / numa nesga de sol”. A que atribui a força de um poema? Esse tipo de jogo de palavras faz parte dessa força?
Acho que é próprio da poesia operar essas aproximações, por vezes violentas, insólitas, “impossíveis”, como você disse, entre coisas díspares. O poema cria um sistema de relações, de correspondências, muitas vezes fundado na própria linguagem, nas relações de vizinhança entre as palavras, e, com isso, pode abrir espaço para perspectivas ainda impensadas. A poesia pode nos ajudar a lançar um novo olhar sobre os objetos cotidianos, inclusive sobre esse estranho objeto do qual nos servimos cotidianamente que é a linguagem. Tem um ensaio do Jean-Christophe Bailly em que ele diz que o poema “é sempre uma agitação da linguagem”. Acho que a força de um poema possivelmente está nessa agitação da linguagem, nessa intensificação e movimentação que ele promove entre as palavras e as coisas.

• “Quem sabe tudo o que morreu/ com quem morreu?/ Um livro nunca escrito/ um novo amor/ um pensamento que permanecerá/ impensado.” Há muitos poemas sobre morte em Risque esta palavra. O quanto ele esteve ligado à pandemia?
Alguns poemas do livro de fato foram escritos durante a pandemia, e sem dúvida as muitas perdas coletivas, o medo da morte de pessoas próximas, o momento de luto social que estamos vivendo, acabaram entrando no livro em alguma medida, embora isso não seja tematizado diretamente. Risque esta palavra acabou se tornando um livro muito atravessado pela questão da morte e do luto. Ao mesmo tempo, espero que ele não seja apenas um livro elegíaco, que ele tenha também algo da força dos versos do Ungaretti que eu tomei como epígrafe para um dos poemas do livro: “a morte/ se expia/ vivendo”.

• Em seus poemas, tanto no mais recente quanto no primeiro livro, há muito do cotidiano. Como foi e está sendo escrever durante o isolamento social?
Quando a pandemia teve início, eu já tinha um primeiro esboço do livro, mas esse esboço mudou bastante durante o período de isolamento. É difícil medir o impacto das mudanças no cotidiano sobre os textos. Por um lado, passei a trabalhar em casa e fiquei um longo período bastante isolada, e com isso acabei tendo mais tempo para trabalhar no livro. Por outro lado, não é fácil se concentrar em qualquer projeto num período como o que atravessamos agora, no mundo todo, por causa da pandemia, mas em especial no Brasil, em que às dificuldades relativas à pandemia se soma o fato de termos um governo que trabalha exclusivamente do lado da destruição, do caos e da morte. Tem uma frase da poeta Marina Tsvetaieva em que ela afirma que a poesia deve refletir o tempo, não como um espelho, mas como um escudo. Acho que, ao menos para mim mesma, esse livro acabou sendo uma espécie de escudo para encarar estes tempos.

• O novo livro traz muitas menções ao oceano, o que vem desde A vida submarina. Por que o mar está tão presente em seus poemas, mesmo estando tão distante do local de seu nascimento?
Acho que os mineiros em geral têm um certo fascínio com o mar. No meu caso, justamente pelo fato de sempre ter vivido longe do litoral, o mar nunca se tornou totalmente familiar, sempre se manteve de certo modo enigmático, desconhecido. Mas acredito que existe aí também uma dimensão literária: o mar é uma presença importante na poesia de língua portuguesa, e a recorrência de imagens marítimas nos meus poemas provavelmente também tem relação com a poesia e a herança dessa língua “com vista para o mar”.

“A poesia pode nos ajudar a lançar um novo olhar sobre os objetos cotidianos.”

• Quais foram os primeiros livros que leu e influenciaram sua obra de estreia, A vida submarina?
Embora escreva desde criança, só fui publicar A vida submarina, meu primeiro livro, com mais de 30 anos. Eu já era então uma leitora, não digo “formada”, porque acho que um leitor está sempre em formação e transformação, mas, digamos, “experimentada”. Já tinha passado pelo curso de Letras, feito um mestrado e estava cursando o doutorado em literatura. A vida submarina foi um livro escrito ao longo de muitos anos, e não consigo lembrar com precisão que autores eu estava lendo na época, a não ser consultando o próprio livro, que traz referências a Safo, Drummond, Cecília Meireles, Jorge de Lima, Ana Cristina Cesar, Edwin Morgan. Penso agora que o livro acabou sendo também, de algum modo, um arquivo de leituras. Desde a infância, ler e escrever são para mim atividades irmãs, complementares. Muitos dos poemas que escrevo nascem da leitura de outros textos, e mesmo quando essa relação não é direta, o desejo de escrita frequentemente surge do impacto da leitura de algum texto. Acho que existe uma tendência de separar autores que escrevem a partir da literatura, “livrescos”, de outros que escrevem a partir da vida, da “experiência”. Mas considero que a leitura e a escrita são também, de algum modo, experiências. Não gosto muito de pensar em “influência”, mas numa espécie de mobilização. Alguns autores, alguns textos, mobilizam nosso desejo de escrever e ampliam nossa percepção do que a poesia pode ser. Isso aconteceu comigo, em épocas diferentes, com autores como Drummond, Ana Cristina Cesar, Joan Brossa, Adília Lopes…

• Quais livros você sempre relê? Ou quais autores lia na época de A vida submarina e que continua acompanhando até hoje?
São muitos, mas um autor que nunca deixo de ler, e que mesmo assim continua surpreendente, é Drummond.

“Acho que a força de um poema possivelmente está nessa agitação da linguagem, nessa intensificação e movimentação que ele promove entre as palavras e as coisas.”

• Em Risque esta palavra há um poema chamado Uma foto de Wislawa Szymborska. Ela foi uma inspiração para você nesse livro? Quais são as suas mais recentes descobertas literárias?
Acho que é sim possível dizer que a Wislawa Szymborska é uma referência importante nesse livro. Além do poema que você menciona, escrito a partir de uma fotografia da poeta, há uma outra referência não explicitada no poema Quatro pedras, que dialoga com o poema Bato à porta da pedra. É difícil definir o que torna a poesia da Wislawa tão atraente: sua linguagem, de modo geral (embora não sempre, nos alerta a tradutora…), é acessível, sem grandes experimentações formais; mas seus poemas têm um tom inconfundível, e não raro nos apresentam uma perspectiva nova sobre as coisas, tanto sobre temas caros à poesia, como o amor ou a morte, quanto sobre questões relacionadas com a ciência, filosofia, política, história. Um dos seus principais procedimentos talvez seja a incrível capacidade de variação da perspectiva, invertendo o ponto de vista usual: “Morrer, isso não se faz a um gato”, diz o poema Gato num apartamento vazio. Essa inversão de perspectiva se dá frequentemente pela assunção de um ponto de vista não humano, ou do endereçamento a elementos não humano, e não apenas animais, como acontece em poemas como Bato à porta da pedra e Conversa com as plantas.

• Quais semelhanças e diferenças podem ser percebidas entre seu primeiro livro e o mais recente?
Sempre tendi a pensar nos meus livros mais na chave da continuidade do que da ruptura. Acho que há muitas recorrências entre os livros, linhas que atravessam de um a outro, como as imagens marinhas, os poemas metalinguísticos, as referências a certos textos e autores… Retomar A vida submarina para essa nova edição, no entanto, foi um pouco surpreendente. Senti uma diferença de tom, talvez um lirismo mais acentuado do que eu me permitiria hoje. Até por isso, optei por não mexer em nada no livro e publicá-lo tal qual ele foi lançado em 2009. Senti que já era quase um livro escrito por outra pessoa, e que eu não tinha, por isso, o direito de alterá-lo.

• Há muitos poemas seus sobre a língua. Como ocorre a relação entre a poeta e a língua materna? Quando passamos a outro idioma, é possível continuar escrevendo poesia?
Tenho um grande interesse pela tradução e um fascínio, mas sobretudo uma enorme gratidão, pelos tradutores, “meus únicos heróis”, como se lê no poema Língua. Há muitos exemplos, alguns deles fascinantes, de poetas que passaram de uma língua a outra, que escreveram em mais de uma língua ou mesmo abandonaram a língua materna, que traduziram seus próprios poemas ou escreveram textos em que lidam com mais de uma língua simultaneamente. No meu caso, pelo menos no que se refere à poesia, me sinto inevitavelmente atada ao português. Mesmo nas línguas que conheço, que não são muitas, tenho uma certa dificuldade para ler poesia, e preciso ler os poemas juntamente com traduções, ou de algum modo traduzi-los para mim mesma. Não me orgulho disso, mas confesso que sinto quase como se poemas escritos em outras línguas precisassem ser salvos, isto é, “mudados para o português”, para usar a expressão do poeta Herberto Helder.

• Como foi pensada a estrutura em quatro partes de Risque esta palavra?
Experimentei muitos formatos até chegar às quatro partes em que o livro está dividido. Parte alguma reúne poemas que giram em torno da questão dos lugares e das viagens. A seção intitulada Noções de linguística abarca poemas que têm a ver com a questão da língua, da linguagem, da tradução. A parte final do livro, que tem o título de Parar de fumar, é a mais propriamente temática. Já a primeira parte é um pouco mais aberta: tem poemas de amor, poemas que giram em torno da escrita, e também poemas sobre a morte e o luto.

“Alguns autores, alguns textos, mobilizam nosso desejo de escrever e ampliam nossa percepção do que a poesia pode ser.”

• O que representa a parte do livro cujo tema central é o cigarro?
A última parte do Risque esta palavra, Parar de fumar, é, como disse Richard Klein a respeito de seu livro Cigarros são sublimes, “ao mesmo tempo uma ode e uma elegia ao cigarro”. Essa série começou a ser escrita há uns três anos, quando parei de fumar, mas a partir daí ela foi se desdobrando, incorporando referências, citações, imagens. Acho que o cigarro é um objeto literário, entre outras coisas, porque nos coloca em contato com o fogo, mas também, provavelmente, por sua relação com a morte.

• No poema Prosa (1) está escrito: “ninguém sabe o que perde a poesia/ quando um poeta se volta para a prosa”. Você tem vontade de um dia escrever prosa? Em outras palavras, que história seria essa que a poesia perderia?
Acho que não tenho fôlego para a prosa. Minha experiência com a escrita em prosa aconteceu sobretudo no mestrado e no doutorado (aliás, tanto a dissertação quanto a tese foram sobre obras de ficção, e não sobre poesia). Embora haja obviamente cruzamentos entre a prosa e a poesia, assim como entre a escrita ficcional e a acadêmica, acho que escrever prosa de ficção mobiliza o tempo, a atenção, o pensamento de formas muito diferentes da escrita da poesia. A poesia acabou se tornando a minha forma de prestar atenção nas coisas, e acho improvável que eu vá um dia me voltar para a prosa. Acho que os poemas Prosa (1) e Prosa (2) são meu modo de responder, na poesia, a um certo apelo da prosa.

Risque esta palavra
Ana Martins Marques
Companhia das Letras
118 págs.
A vida submarina
Ana Martins Marques
Companhia das Letras
144 págs.
Bruna Meneguetti

É escritora e jornalista. Publicou os romances históricos O céu de Clarice (2017) e O último tiro da Guanabara (2019) e é coautora do livro-reportagem Corações de asfalto (2018). Faz parte da Plataforma Vida de Escritor. Mantém o site https://www.brunameneguetti.com.

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