Prezado Nelson,
Consegui seu e-mail com o Jabor. Ele não me garantiu que você responderia. Disse que nunca usou, que só fala com você por telefone porque adora sua voz cavernosa (e vice-versa). Sei que você não me atenderia, pois aí no inferno já tem identificador de chamadas. Tento então o correio eletrônico. Vou encher sua caixa postal até que responda, ou me mande pro inferno, aí conversaremos pessoalmente. Preciso resenhar A mentira e Não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo. Você deve saber, a Companhia das Letras publicou os dois aqui entre os mortais. Já li e até resenhei. Mas não gostei do que escrevi. Preferiria que você me falasse sobre os livros. Gostou da edição? Bem, vou começar com as perguntas, aí você responde por e-mail, se não quiser ver sua caixa estourar de tantas mensagens. Abraço.
• A mentira é uma sucessão de mentiras. Você é um mentiroso?
Prezado. Não te conheço, muito menos esse tal de Rascunho. Vou dar um crédito porque foi o Jabor que passou o endereço, aquele crápula. Viu a cabeleira dele? E depois fala do topete do Itamar. Aliás, o Jabor é igual ao Itamar. Só pensa em mulher e dá o maior migué com aqueles comentários para a tevê. Ganha uma grana federal pra fazer trinta segundos de gracinhas. Trabalhar de verdade, nem pensar. Porra, o cara fez nome como cineasta e agora vive da fama. Qual o último filme dele? Acho que eu ainda estava por aí. O Jabor não é Hellmans, mas é a verdadeira maionese. Você perguntou se gostei das edições dos livros. Gostei. Ficaram chiques. Pena que não servem para nada. O pessoal aí não quer saber de ler. O negócio agora é só criar barriga em frente à telinha. Não vê o Jabor? Bons tempos aqueles em que não havia televisão. Quando apenas alguns aparelhos à válvula eram novidade entre os bacanas. Rádio também era artigo de luxo. Tempos em que a nação estava livre de imbecilidades como Big Bode Brasil, Casa dos Idiotas e a lengalenga de O Clone, em que milhões de trouxas passaram metade da novela vendo odaliscas de araque dançando (mal). Bons tempos aqueles em que uma das poucas opções de lazer era ler, principalmente jornais, que na época eram bons, e não meros repetidores do que a tevê já mostrou. Aí os jornais nos davam espaço. Ah, como era bom. Podíamos mentir à vontade. Sim, sou um grande mentiroso. Quem não é? O que é a vida senão uma grande mentira? Vida? Que vida? Vida é aqui. Aí é a morte. Vocês pensam que vivem, mas apenas se aproximam da morte. Cada dia que você vive, é um dia a menos para a chegada da sua morte (o Jabor disse que alguém escreveu isso por aí). E é isso mesmo. Vocês passam horas em volta da televisão, uma caixa eletrônica de estupidez e mentiras. Isso é vida ou é morte? Aliás, tevê só deveria ser usada, por lei, para transmissão de futebol. Sem o Galvão Bueno, é claro.
• Você usou o pseudônimo Myrna em Não se pode amar… É apenas mais uma mentira, ou você tem um lado boiola?
Não sei o que significa boiola, mas Myrna é uma mentira pra dizer algumas verdades. Quem iria acreditar num homem dando conselhos sentimentais? Que leitora iria escrever para o Diário da Noite para saber a opinião de um tal de Nelson sobre o casamento dela? Aliás, quem acredita num homem, em qualquer hipótese? Mas Myrna é uma mentira a bem da verdade.
• Pelo que Myrna escrevia, você acreditava no amor, desatrelado da felicidade. Ou é outra mentira?
Mais ou menos. Não é que acredite no amor, mas acho que ele pode existir de uma forma mística. Tipo uma religião. As pessoas acreditam em Deus e vivem bem com isso. E a única forma de um homem e uma mulher viverem bem é acreditando no amor. Pode ser que ele nem exista, mas se as pessoas acreditarem já é o suficiente. Vão se aturar em nome de uma força maior, até que a morte os separe. É melhor morrer (pra vocês, viver) com alguém do que sozinho. Agora, ser feliz já é demais. Dou-lhes o amor, e vocês ainda querem a felicidade? Como ser feliz sabendo que amanhã, neste horário, você estará 24 horas mais próximo de sua morte? Isso se você durar até lá.
• Você não achou estranho ver todas as cartas de Myrna reunidas?
Achei mesmo. O charme de Myrna residia justamente na periodicidade. Esperar o dia seguinte para ler a próxima carta fazia parte do clima. Num livro, falta fôlego para se ler todas as cartas. É preciso o intervalo do dia entre uma e outra para que a leitura não fique enfadonha. O que é lamentável, pois em cada uma delas há algo aproveitável, nem que seja uma frase. De qualquer forma, a publicação de Não se pode amar… é válida para documentar, numa bela edição, esta fase do meu trabalho. Gostou dessa? Fiz um cursinho de marketing por aqui. E é bom que o livro saia para fazer corar, ante o talento de Myrna, os charlatães que invadem atualmente alguns jornais com seus conselhos furados, que mais parecem extraídos dos “geniais” reality shows da tevê, este veículo de quatro patas.
• Dizem que A mentira foi seu primeiro romance assinado como Nelson. É romance ou é teatro?
A mentira é um romance com ritmo teatral. Cada um de seus personagens renderia um conto, cada capítulo é uma crônica. Tudo isso reunido num livro virou um romance que é a síntese da minha obra. Ali estão a linguagem direta e palpitante, os personagens complexos, mas colocados de forma que parecem naturais e, principalmente, a crítica social feita com olhar de raio X para expor a alma. Somente expô-la, sem necessariamente explicá-la.
• Como você criava? Depois de prontas, as coisas pareciam tão simples, mas ninguém fez igual até hoje?
Eu observava os fatos do mundo a minha volta e apenas colocava o enredo. Só hoje eu sei que tinha um dom mediúnico para transformar a vida em história. Na verdade, acho que o que eu escrevia continua chocante justamente porque não fui superado nesta arte, modéstia à parte.
• A menina que fica misteriosamente grávida em A mentira parece mais uma banalidade de nosso cotidiano, mas nas suas mãos ficou tão intensa…
Esse era o objetivo. Transformá-la numa personagem catalizadora do mundo que a cerca. A gravidez indesejada da garota é um turbilhão que revela as fragilidades do ser humano. O desejo sádico do pai. A infidelidade covarde da mãe. A inveja das irmãs. A personalidade de abutre dos cunhados. A pusilanimidade do vizinho deficiente. Cada qual temperado com a pitada de egoísmo que lhe cabe.
• A mentira tem um humor quase negro?
É, digamos que seja pardo. Ele está sempre presente no romance, principalmente com a adolescente, que se diverte e transforma em brinquedo o desespero dos outros. O cinismo dela é tamanho que se tem a impressão de que todos os outros é que estão grávidos, menos ela. E o que para a filha parece não passar de brincadeira, é tensão da mais alta voltagem para todos na casa, e até para o leitor. Achei que isso seria atraente para não deixar o leitor incólume às situações criadas. O texto é direto, seco, sem devaneios para não dar folga para o leitor assumir o papel de mero espectador. O ritmo envolvente e tenso faz o leitor viver as emoções que brotam do romance, sejam elas carregadas de ódio, violência, graça, simpatia ou humor.
• Será que se você vivesse hoje, seu humor seria negro?
Deus me livre. Quero distância desse mundinho de vocês, totalmente emburrecido pela tevê. Vocês perderam a noção das coisas, acreditam em televisão, onde não há questionamento isento. Não há vida inteligente mais nesse País. Veja só. Bandido usa celular na cadeia e querem bloquear as chamadas. Mas, se entra celular, entra tudo, drogas, faca, revólver. O problema é a segurança do presídio, que foi corrompida, e não as chamadas de celular. E os revólveres? Vão inventar um bloqueador de tiros? O tráfico de drogas virou tema depois que aquele repórter metido a policial vacilou e subiu o morro. De que adianta combater o tráfico enquanto houver consumo? Existe comércio porque existe demanda. Coloque o consumidor na grade que acaba o tráfico. Só que aí é um problema, porque tem muito bacana que consome. E nesse País, bacana não puxa cana. Quer ver outra bobagem? A tevê encheu de matéria sobre pirataria. Claro, eles têm a maior gravadora do País. Malandro, pirataria existe porque o salário é baixo e o CD é caro. E falta emprego, então o neguinho vai vender CD pirata na rua mesmo. Aí vem a tevê cheia de demagogia dizendo que a pirataria prejudica o artista. Eles acham que o povo é bocó. Que vai assistir à matéria a semana inteira e vai dizer: puxa, não vou mais comprar CD pirata, assim o Belo ganha mais e pode comprar outro Jaguar pra aquela popozuda. Idiotas. Acham que enganam o povo com essa lorota. Não entendem que o povo está apenas se garantindo, tentando livrar o pêlo, senão não sobra nem pra cachaça. Quer acabar com a pirataria? Gerem empregos, aumentem os salários, baixem o preço dos CDs.
• E a nossa literatura atual?
Vixe, aí piorou. Até tem uns caras bons, mas o negócio virou marketing de compadres. Só tem espaço quem é da panela. E como o povo emburreceu, não há o senso crítico. Compram qualquer porcaria que a mídia de compadres vende. Quando não há a crítica do leitor, a literatura não sobrevive. O mercado fica dominado por uns tipinhos que prefiro nem falar o nome pra não dar moral. Isso sim é que é pirataria. Piratearam a literatura brasileira.
• Para encerrar, gostaria de citar a maravilhosa e última frase de A mentira (“introduziu na boca o cano do revólver (teve a sensação que praticava algo de obsceno ) e puxou o gatilho. Sua chapa dentária descolou.”). Você acha que precisa dizer mais?
Falar mais, e bem, sobre A mentira é suspeito e desnecessário. Na verdade, gosto tanto deste romance que acho que deveria ser leitura obrigatória (por lei) para todos os brasileiros (valeria mais que babaquices como voto ou serviço militar). A melhor resenha para o livro é: leia-o. E dá para fazer isso perdendo apenas dois capítulos de uma novela.
• Você gostaria de mandar algum recado para o Jabor?
Que aguardo o babaca aqui, para breve, pois o Roberto Drummond é um chato. Em vez de jogar pôquer, quer procurar a Hilda Furacão. E diz que está sentindo o cheiro de Deus. Imagine, cheiro de Deus no inferno. Expliquei-lhe que o céu não existe, que não passa de um inferno para japoneses, que estão na parte contrária da terra. Mas ele não acredita. Morto novo é assim mesmo, tudo abobado. Mineiro então, pior ainda.
Abraço. Nelson ([email protected])