Valendo-se de sua vasta experiência como escritor e também de sua performance à frente de uma oficina de criação literária — que já revelou Marcelino Freire, entre outros —, Raimundo Carrero acaba de publicar um livro que pode ser de muita valia a quem quer que deseje produzir literatura. A esse tipo de leitor, Os segredos da ficção — Um guia da arte de escrever apresenta um bom número de caminhos a seguir. Na obra, Carrero também desmonta o mito da inspiração. “Não faz mais sentido falar nisso. A inspiração tem causado muitos danos à literatura brasileira”, diz. “Há escritores inspirados demais por aí, escrevendo histórias bonitinhas. E a culpa é sempre da inspiração.” Ele salienta que todos os que realmente quiserem escrever podem vir a ser escritores. Vontade e disciplina são requisitos fundamentais — bem como disposição para ler, ler, ler e escrever, escrever, escrever. E reescrever, reescrever, reescrever.
Raimundo conhece as regras da arte: “Escreve-se obedecendo a quatro movimentos: impulso, intuição, técnica e pulsação”. Mas isso não quer dizer que Os segredos da ficção seja um manual a ser obedecido hipnótica e cegamente. “Muito pelo contrário”, explica Carrero. “São sugestões de exame, análise, reflexão. Passo para o autor iniciante uma série de técnicas e informações que devem ser estudadas. Quem vai decidir depois é ele próprio.”
Raimundo Carrero nasceu em 1947, em Salgueiro, no sertão pernambucano, e hoje vive em Recife, de onde conversou, por e-mail, com o jornalista Marcio Renato dos Santos. Carrero é autor, entre tantos livros, de Somos pedras que se consomem (que recebeu os prêmios APCA e Machado de Assis, em 1999) e As sombrias ruínas da alma (vencedor do Jabuti, em 2000). Jornalista profissional, tem intensa relação com a música. “Cheguei a tocar em bandas de rock. Fui às trevas e voltei, conheci a loucura e estou aqui, chamuscado, mas possuído pela vontade de construir um mundo.”
• Qualquer pessoa pode escrever ficção?
Pode. E quando falo em qualquer pessoa, é claro que estou me referindo àquela que gosta e tem o hábito de escrever. Que tem vontade, palavra mágica que substitui a inspiração. O que atrapalha é o vício da perfeição no primeiro instante, ainda na descoberta da voz narrativa. Depois dela, escreve-se obedecendo a quatro movimentos: impulso, intuição, técnica e pulsação — substituta da forma, a palavra mais flutuante da literatura. No primeiro instante, no impulso, não há problema que seja feio e ruim o que se escreve. Henry Miller diz: ruim ou bom, saiu das minhas palavras. Daquilo de que sou capaz. Não se escreve com críticos nos ombros. Retire os críticos e trabalhe. Crítico vem depois. Trabalhe duro, por entre ruídos, gritos e gemidos. Só assim é possível descobrir a voz narrativa. Passe vergonha, decepção. No impulso, a dor da vergonha é possível. É, aliás, inevitável. Na intuição, as coisas vão ficando mais claras. Então invista ainda mais. Não há regra absoluta no campo das artes. Uma coisa pode estar ruim para a tradição, mas não exatamente para o criador. É diferente. Cito sempre o conto Pomba enamorada, de Lygia Fagundes Telles. É bom ou ruim dizer que “a rainha é uma bela bosta” ou que “vou amar ele para sempre”? Isso é circulação de vozes — personagem que narra. Se alguma coisa está errada, está no leitor ou no crítico. Por isso, esse tipo de frase pode aparecer na voz narrativa ou no impulso, e a tendência é dizer que não presta. Calma. Na intuição, é fácil perceber que o problema pede solução na técnica. Ela é um problema de cada um. E cada um descobre sua própria técnica, sem imitar ninguém. As técnicas pessoais e intransferíveis estão nos nossos trabalhos. Com exercícios — inclusive ou sobretudo de leituras —, isso se aprende.
• O começo de tudo é a voz narrativa. Erramos sempre porque não respeitamos a nossa voz narrativa, não amamos o nosso timbre, queremos imitar a tradição. No princípio é o tom. Gostaria que o senhor comentasse essas frases-idéias presentes em seu livro.
Sem acreditar na voz narrativa é impossível criar. A princípio ela é barulhenta, confusa, equivocada. Não importa. A experiência de sua descoberta é única. Deve-se acreditar sinceramente nisso, trabalhar com força. Porque, se não for assim, começamos por imitar os consagrados, os clássicos. Há escritores que preferem cortar uma palavra, alterar a montagem de uma frase para que ela se pareça com a tradição, com aquilo que se convencionou chamar de limpeza da frase, renunciando à visão e ao espírito do personagem. Mesmo assim, o escritor precisa saber que rimas internas, cacofonias e alterações têm a sua função. A tradição diz que é errado, feio e cruel mas, e se for preciso chamar a atenção do leitor para a intimidade do personagem? Para a função da frase na cena? Para a alternância de pontos de vista? Renuncia-se, porque o denominado estilo do autor mão-de-ferro, onisciente, exige? Com habilidade, arte e jeito, isso se resolve. O problema não é harmonizar o texto convencional, mesmo quando ele parece torto, mas a intimidade do personagem. Chamo a atenção para os exemplos de Hemingway e Lygia que apresento no livro, além do conto Chuva, de Luiz Vilela. Daí a questão do tom que, aliás, vem de Poe. Sem um tom correto a narrativa desaba. Pode ser intuitivo ou técnico, mas sem ele não há salvação.
• Em Os segredos da ficção, o senhor questiona o mito da inspiração e aponta para o impulso.
Não faz mais sentido falar em inspiração. Ela tem causado muitos danos, sobretudo à literatura brasileira. Há escritores inspirados demais por aí, escrevendo histórias bonitinhas. E a culpa é sempre da inspiração. Além do mais, a psicanálise desmancha essa história, de modo definitivo. A vontade de construir um novo mundo, particular e solitário, por absoluta inadequação a este — e até, contraditoriamente, por amor a este —, leva o escritor a inventar textos a partir da observação e da experiência. Assim nasce o que o velho francês Albert Albalat chamou de primeiro impulso imperfeito. Freud intitulou-a escrita automática, chegando a Jung como impulso básico. Todos os escritores conscientes esclarecem que é no embate com a vida que o escritor nasce. Basta citar o caso de Gabriel García Márquez, para quem há uma tensão permanente entre o escritor e o seu tema — o mundo. Dessa tensão surge o texto. Quando perguntaram a Faulkner o que era inspiração, ele respondeu: “Nunca fui apresentado a essa senhora”. E acrescentou que a inspiração deve conhecer o muque do escritor. É leviana e irresponsável. Quase a mesma coisa diz Osman Lins, assegurando que o escritor que acredita nela é igualmente irresponsável.
• “Alguns escrevem bem, muito bem, muitíssimo bem, mas não escrevem ficção.” Poderia comentar essa frase de seu livro?
Alguns de nossos antepassados confundiam escrever ensaio com escrever ficção. Na tradição luso-brasileira isso se tornou lei. Queriam colocar no texto ficcional as mesmas preocupações ensaísticas: elegância, eloqüência, adjetivos, excesso de adversativas, frases de efeito. O autor se mostrando inteiro. Isso é pânico puro. Porque escritor de ficção não pode ter mão-de-ferro. Afinal, escritor não tem estilo. Quem tem é o personagem — que também é narrador. Todos os grandes novelistas sabiam disso. Mario Vargas Llosa demonstra que o Dom Quixote foi escrito por dois narradores: o misterioso Cide Hamete Benengeli, que escreveu a história original em árabe, e o narrador anônimo, que o traduziu. Se têm estilos diferentes, podem escrever coisas diferentes, em linguagens diferentes. E aí reside a grandeza de Cervantes. Quando o personagem se manifesta, manifesta-se também o seu estilo, e é possível que diga asneiras. Veja ainda o caso de Dom Casmurro, de Machado de Assis. Um livro escrito por três personagens: primeiro, o narrador oculto, Machado; segundo, o narrador cronista e evasivo, irônico, alter ego de Bentinho, Dom Casmurro; e terceiro, o narrador acusador e grosseiro, Bentinho. E Dom Casmurro e Bentinho não são os mesmos? Em corpo, sim; em caráter, são diferentes. É o caráter que escreve. Ninguém se manifesta segundo seu físico, mas segundo sua personalidade. Madame Bovary, de Flaubert, tem vários narradores, alguns escandalosos; e Dostoiévski criou a polifonia, em que muitas vozes circulam no texto. Flaubert sempre optou pelo personagem. Ninguém mais revolucionário do que ele. Às vezes parece um louco. Dava uma importância enorme aos tempos verbais.
Veja a abertura de Um coração simples: “Por cem francos ao ano, ela cuidava da casa e da cozinha, costurava, lavava, passava, sabia arrear um cavalo, engordar as aves de criação, fazer manteiga — e continuou fiel à patroa, que entretanto não era uma pessoa agradável”. A tradição com certeza condenaria o uso excessivo do imperfeito — “costurava”, “lavava” e “passava” — e dos verbos “arrear”, “engordar” e “fazer”, em oposição ao imperfeito. Em nome do estilo, alguma coisa tinha de sair, faltava coesão e harmonia, havia sobras. O imperfeito elastece o tempo, e o tempo aí não tem fim. Qualquer mexida tiraria o efeito de escravidão da personagem. Hoje há quem suporte. Na época foi um deus-nos-acuda; Flaubert era acusado de não saber escrever. Até Proust foi na onda. Depois mudou. Na verdade, a personagem era uma escrava, fazia de tudo. Se escrevesse isso, com essas palavras, cometeria um abuso de escritor onisciente. Feito Hemingway: “Francis Macomber era muito alto, bem-feito de corpo (se não se levassem em conta seus ossos longos), moreno, cabelos cortados rente como os de um remador universitário, lábios finos”. Escreve bem, mas não escreve ficção. O personagem está pronto e resolvido demais e o leitor não tem chances: o homem está preso no papel. Aí está a diferença entre escrever bem e escrever ficção.
• O senhor aconselha o escritor a anotar, não confiando na memória. Já foi traído por ela? Em que circunstância? Que escritores foram traídos por seu excesso de confiança na memória?
O depoimento vem de grandes escritores, entre eles, Clarice Lispector. Todos falam em cadernos e livros de anotações. Uma frase nasce emocional e por isso deve ser logo anotada. Depois, na frieza do distanciamento, precisa ser trabalhada, com cuidado para que não perca o mistério de solidão e silêncio que tinha ao nascer. Autran Dourado diz que Biela, de Uma vida em segredo, lhe surgiu num sonho. Entrou em seu quarto, sentou-se num baú, e começou a falar, detalhando a história. Ele acordou em plena madrugada e taquigrafou tudo. Se ele não soubesse taquigrafia — ou deixasse aquilo para depois — certamente o perderia. A frase nasce no impulso. Se ele se perde, nunca mais é recuperado. Já perdi muitos textos porque não tinha lápis e papel na mão. E, se ele voltar, não volta com a mesma força. A palavra se deteriora. Está guardada no inconsciente e irrompe por algum motivo. Aloja-se, fica esquecida. Num momento, precisa sair, para não enlouquecer o escritor.
• Para o senhor, o escritor precisa de disciplina e de uma rotina agradável: o ato de escrever deve proporcionar prazer. Como é o seu processo, o seu local e o horário de escrever?
Levanto-me às quatro horas e me ponho a escrever. Não espero que as palavras se ajustem, que as cenas se resolvam. Outro dia, percebi que não tinha nada a dizer. Então comecei a me xingar, porque era um domingo pela manhã e eu queria escrever. Era um dia muito bonito de verão pernambucano: sol, areia, mar. E cerveja, muita cerveja, mulheres, lindas mulheres. Irritei-me. Me insultava. Terminei a tarefa. Tempos depois, pediram-me um conto para publicação imediata. Peguei aquele texto, coloquei um personagem e a história estava pronta. Chama-se Os deliciosos peitinhos murchos (publicado primeiramente no Rascunho). Li-o na Festa Literária Internacional de Paraty. Sai este mês na antologia Crimes feitos em casa, pela Record, organizada por Flávio Moreira da Costa. Deve ser o título do meu próximo livro de contos. Aconselho que o iniciante escreva sempre no mesmo horário, sob as mesmas condições. A isso chamo de condições objetivas. Não basta querer ser escritor, é preciso criar condições: uma boa biblioteca, com o básico, a que ele se dedicará todos os dias. Com silêncio. Computador, papel, caneta. Todos os dias, na mesma hora. Mesmo quando estiver triste ou irritado. E deve-se escrever sempre, ainda que seja um desabafo, ou uma carta. Um escritor precisa escrever aos amigos. De preferência cartas. Ou e-mails. Ajudam muito. Uma dica básica: quando as coisas não estiverem indo bem no texto, sente-se e escreva cartas. Aos amigos. A gente nem sempre tem o que dizer ao leitor, mas tem o que dizer aos amigos. Faça isso. É deslumbrante. Os escritores também têm manias: Gabriel García Márquez não escreve sem uma flor amarela na mesa; Goethe cheirava maçãs podres. Clarice escrevia com a máquina de datilografia sobre as pernas, enquanto tomava conta das crianças. Provoque a sua mania também. Talvez descalço. Rezando. Plantando bananeira. Eu rezo muito, tenho esse vício. Descubro-me rezando mesmo nas ruas. Relembre os melhores poemas, leia os melhores poemas, tenha livros de cabeceira, repita versos e estrofes. Para um prosador, a poesia faz um bem incrível. Autran Dourado gosta de ler poemas antes de escrever. Crie as condições objetivas. Sempre. E aí, segundo Flaubert, a literatura se transformará numa orgia perpétua.
• Na sua opinião, o autor pode buscar assunto em manchetes de jornais. O senhor ainda afirma ser possível transformar um lugar-comum em grande arte. Gostaria que falasse sobre a busca do mote.
Há anos, recebi um pedido das Edições Bagaço, uma bela editora pernambucana, para escrever uma novela. Mas pedi: “Me telefonem cobrando, sempre”. Acontece que eu estava trabalhando muito, na Televisão Universitária, na campanha de Eduardo Campos, ex-ministro de Ciência e Tecnologia, para a prefeitura do Recife. E adiava sempre o projeto. E o dono da editora me telefonando: “Como é, Carrero, já escreveu?”. Embora sem haver escrito uma única palavra, eu respondia: “Estou escrevendo”. Ele insistia: “Passo quando para receber o texto?”. De repente, respondi: “Terça-feira”. Era uma sexta. Cheguei tarde em casa e me dei conta da estupidez que dissera. Fui dormir e, no outro dia, peguei o Jornal do Commercio para verificar o noticiário. Tive um susto com a manchete: “Um corpo no telhado”. Estava ali minha história. Precisava começar. A matéria falava de um corpo no telhado, talvez assassinado, talvez morto por enfarte. A causa estava sendo examinada. Transformei-me num desempregado que encontra ocupação numa agência de detetives, falida, e fui investigar o caso. Na terça, entreguei a novela. Então, sempre destaco que as manchetes servem para novelas, romances ou contos, nem que sejam apenas como exercícios. Exercício é fundamental. Henry James chamava o exercício de escrever histórias de a “Teoria do Bordado”. Ou seja, basta fechar os furos de uma manchete para que a história apareça. Assim: “Mulher tenta o suicídio no mar e é salva por pescadores”. Onde estão os furos? Em cada um dos espaços em branco. Primeiro furo: “Mulher”. Tente descobrir que mulher é essa, seu nome, suas razões para o suicídio. Pode ser que esses detalhes nunca cheguem aos leitores. Mas são conhecidos pelo autor, que os guarda para o momento certo. Segundo furo: “tenta”. Explique como foi a tentativa, o que deu errado, detalhes. Tudo isso pode não servir, mas será anotado. Terceiro furo: “suicídio”. Como pulou dentro d’água? Estava vestida, nua, usou um barco, gritava, não gritava? Enfim, é assim que se escreve uma história: fechando furos.
• E se der um branco? E se der bloqueio? Já passou por isso?
Em 1975, publiquei minha primeira novela, A história de Bernarda Soledade — A tigre do sertão. A Veja publicou uma enorme sobre ela, assinada por Affonso Romano de Sant’Anna, com foto e tudo. Foi minha primeira resenha nacional. Fiquei louco. Feliz. Uma resenha equilibrada: nem tanto às flores, nem tanto à terra. Mesmo assim, entrei em pânico. Em seguida, veio uma crítica de O Globo, assinada por Haroldo Bruno. E outra e mais outra. O pânico aumentou. O jornal Movimento me pediu um conto e eu descobri, desoladíssimo, que não sabia mais escrever. Era tudo uma porcaria. Não acertava numa única palavra. Endoidei, fiz análise. Somente seis anos depois escrevi outra novela, As sementes do Sol — O semeador, e, em seguida, A dupla face do baralho. Aliás, essas três novelas saem juntas, agora, pela Iluminuras, com um título geral, O delicado abismo da loucura, com um belo prefácio de José Castello. Portanto, um branco de seis anos é uma parada. E os pequenos brancos acontecem, sim. Não com freqüência, mas acontecem. Aí, fica-se brincando, procurando companhia para as palavras e escrevendo cartas.
• E a questão do autor-filósofo? Aponte exemplos, negativos, de quem fez de uma obra literária mero ensaio pseudofilosófico.
É o grande risco do escritor de ficção. Filosofar num romance é um erro básico. Até porque o romance não serve para provar nada. Ficção é para contar histórias e alcançar alto nível artístico. Obra de arte, em geral, não tem que provar nada. E quando o autor não é filósofo, a besteira se torna torturante. Substitui a beleza pelo discurso estéril. Veja o caso de Sartre. Um filósofo notável, com um trabalho de categoria, um ótimo pensador. No entanto, quando tenta defender suas idéias numa obra de arte — a trilogia de romances Os caminhos da liberdade, com A idade da razão, Com a morte na alma e Sursis — leva uma queda danada. Não é mau escritor, claro. Continua polêmico e vibrante. Mas seus livros não são obras sistêmicas de filosofia, nem são obras de arte. Ficam no meio do caminho. Porque a filosofia impede o desenvolvimento artístico. Quando muito, talvez se possa usar um personagem-filósofo. Mesmo assim é um risco muito grande. E, no caso do iniciante, o risco ainda é maior. Porque, na maioria das vezes, ele nem está preparado para pensar filosoficamente — intui umas coisinhas aqui e ali, e já chama isso de filosofia. É o risco. Romancista tem que lidar com problema de romancista. O que já é muito trabalho.
• O senhor comenta que, em literatura, tudo pode ser usado, até mesmo o adjetivo, que se tornou um monstro a ser evitado, e mesmo os advérbios, também condenados por alguns especialistas.
É famosa a afirmação de Flaubert de que até um pé de coentro dá uma obra de arte. E é verdade. No plano artístico, tudo é possível. E em pleno século 21, depois de todas as experimentações, de vanguarda ou não, que tivemos, a questão fica ainda mais clara. O que importa na obra de arte é a arte. Ponto pacífico. Desde os antigos tempos do formalismo e do estruturalismo, sabe-se, com a maior certeza, que não existe obra de arte sem radicalismo. Então, o que procuro transmitir aos meus alunos na Oficina de Criação Literária, no Recife, é que tudo é possível numa obra de ficção, desde que tenha função e efeito. No caso do adjetivo, por exemplo. Em princípio, considera-se o ponto de vista do personagem e, é claro, sua estrutura psicológica. Para um personagem de ritmo eloqüente é perfeitamente razoável que se use o adjetivo. Faz parte da maneira como ele enfrenta, ou vê, o mundo. De forma que se pode dizer: “João encontrou uma linda mulher”. Mas o adjetivo pode ser substituído por uma breve descrição da mulher — um olhar, um toque no cabelo, um jeito de andar. E basta. Ou um outro personagem faz o exame. Lembrando, todavia, que o deslocamento do adjetivo provoca outro tipo de emoção e de afirmação. Uma mulher linda não é o mesmo que uma linda mulher. No geral, uma linda mulher considera aspectos físicos; uma mulher linda considera generosidade, comportamento, maneira de ser. A ausência do adjetivo, porém, cria um abismo. A mulher surge e, diante dela, está o seu abismo. A narrativa cuida de revelá-la ou não. Assim, a técnica resolve o que se deve fazer. Quanto aos advérbios, tenho preocupações com os de modo, terminados em “mente” — objetivamente, por exemplo. Primeiro porque é um problema para a frase, do ponto de vista visual. Quebra qualquer estrutura. Mas e a função? Ele pode ter uma função de força, de isolamento, ou de afeto, digamos. No meio da frase, é “de força”: “Quero, objetivamente, tratar desse problema”. Provoca tensão no leitor. No começo da frase, parece se isolar: “Objetivamente, quero tratar desse problema”. Os olhos passam rápido por ele e a palavra fica sozinha, isolada, encolhida. Some. No final da frase: “Quero tratar desse problema, objetivamente”. O advérbio cai num tom menor. É afetuoso. Não é agressivo, como no meio, nem isolado, feito no começo. Ganha ternura. Isso se chama “termo flutuante da oração”. É semelhante às palavras denotativas agora, então, assim.
• O senhor se vale de exemplos musicais. Qual a importância da música em sua vida? De que forma ela pode ajudar o escritor?
Tudo é música. No andar, no olhar, no escrever. Sem harmonia e ritmo tudo viraria caos. A música é tão poderosa que não precisa nem de assistência. Ninguém precisa se voltar, nem ver, nem pensar. A música está ali, eterna. Bela, permanente. Ouvida, escutada, amada. Não olhe para a direita nem para a esquerda, para a frente e para os lados. Apenas escute. Por isso meu livro Ao redor do escorpião… uma tarântula é feito de sons e de ritmos, de movimentos. E tem, como intertítulo, Orquestração para dançar e ouvir. O problema é que a minha formação, embora popular, é musical. Aos 10 anos de idade eu já era músico, tocava na banda da minha cidade, em bailes e festas. A música circula no meu sangue. Cheguei a tocar em bandas de rock, fui às trevas e voltei, conheci a loucura e estou aqui, chamuscado, mas possuído pela vontade de construir um mundo. Se a pessoa souber música, compreende melhor o que é uma palavra, uma cena, um diálogo. As notas e os compassos estão ali. Basta tocá-los. E chamá-los. Eles vêem.
• No seu livro, muito é dito e pensado a respeito da relevância do personagem. Dalton Trevisan criou o Nelsinho, um nome traz informações sobre uma situação provinciana. Qual a importância dos nomes e da confecção dos personagens?
O nome do personagem é fundamental. É a base da ficção. Já imaginou se Riobaldo se chamasse Zé Fror? Ou se Capitu fosse Açucena? E João da Ega atendesse por João da Égua? Um desastre absoluto. É preciso ter muito cuidado. Nelsinho é um bom nome urbano. Às vezes de uma consciência suburbana. Dalton conhece bem esses segredos. Tem nome mais misterioso do que Macabéa? Por aí as coisas vão bem. Um nome monta, de imediato, uma estrutura psicológica. Por isso aconselho que, antes de definir o nome, o autor trabalhe o texto, mesmo na fase de anotações, e consulte dicionários de nomes, para evitar equívocos. Cuidado com nome formado. A não ser nos casos de ironias e brincadeiras. A minha novela As sementes do Sol – O semeador é uma remontagem de um episódio entre o rei Davi e Betsabé. Para recriá-lo, precisei de nomes pernambucanos e metafóricos. Assim, Davi é Davino; Amnon é Agamenon; e Tamar é Mariana. Somente Absalão continua Absalão, por ter um nome mais universal. O nome da fazenda onde eles moram é Arcassanta — ou seja, a Arca Santa, à volta da qual Davi dançava. O nome do personagem também pode mudar enquanto o livro é escrito.
• O escritor precisa saber o que cortar e saber decidir. Quem vai narrar, por exemplo. Isso angustia?
O foco narrativo é um dos problemas mais graves da ficção. Se o autor erra no foco narrativo, errará em tudo o mais. Com certeza. Não há saída. Por isso ele precisa aprender a decidir desde cedo. Muitas vezes, a narrativa é contada através do personagem principal. E não fica bem. Sempre existirá alguma dúvida. Aí, entrega-se a narrativa ao personagem secundário, que, por força de sua distância do texto, tem conhecimento de detalhes que o protagonista não conhece. Vejamos o caso de Educação sentimental, de Flaubert, que entrega toda a narrativa a Frédéric, o que Henry James considerou um erro fundamental. E não é. Flaubert queria iluminar a mãe de Frédéric a partir de uma perspectiva única. Uma visão fechada do episódio. E conseguiu efeitos incríveis. Um desafio completo: escrever todo o livro sob a perspectiva de um personagem completamente medíocre. Isso é terrível. É um punho fechado no rosto do escritor. Assumir o caminho do medíocre para construir um mundo superior. E você sabe o que significa Frédéric? “Príncipe da paz”. Ou seja: aquele que por natureza está pacificado, que não sofre de inquietações, que não precisa reagir. Não é um bom nome de personagem para quem vê a vida de uma única perspectiva, pacificada e medíocre? Quando escrevi Sombra severa, precisei falar da vida de dois irmãos e do sacrifício de um deles. Optei pelo nome Judas, mas era necessário criar sua antítese. Que, por todas as razões do mundo, não podia ser Cristo. Escolhi Abel — que é assassinado pelo irmão Caim. Escondi Caim. E fui buscar em Dina, a mulher que atravessa o deserto escondida num caixão de defunto, a personagem feminina. Daí, saí para Sara, a mãe das mães. Estudo sempre meus personagens com calma, lentidão e paciência. Portanto, o problema do foco narrativo é decisivo.
• Apesar das muitas opções, o senhor mesmo observa que a arte não tem regras. Poderia comentar isso?
Não existe regra fixa no campo da arte. Nada está decidido. Meu livro não é uma cartilha que deve ser seguida cegamente. Muito pelo contrário: são sugestões de exame, análise, reflexão. Passo para o autor iniciante uma série de técnicas e informações que devem ser estudadas. Veja bem: estudadas. Depois, quem decide é o próprio escritor. Cada obra — ainda que seja um bilhete — tem a sua própria técnica. Ela está ali, pedindo manifestação, é sempre pessoal e intransferível. Cabe a cada um descobri-la. Procurá-la. E, aí, entra o exame da intimidade com o texto, ou com a cena: silêncio entre pontuações, colocação de pronomes, mudanças do tempo verbal, andamento, ritmo. Mais uma vez: tudo isso é muito pessoal. Cada pessoa tem uma pulsação e um movimento diferentes. E cada personagem, cada cena, cada ação. Conhecer é resolver.
Se fosse para dar uma dica a quem quer escrever o senhor diria “ler, ler, ler e escrever, escrever, escrever todo dia”?
Com toda a certeza. Mas tudo isso com um cuidado meticuloso de relojoeiro. De quem conhece situação por situação. Lembrando, no entanto, que a pessoa não deve desanimar, no princípio, porque a voz narrativa pareça ruim, confusa ou barulhenta. Os ajustes vêem por conta do movimento criador permanente: impulso, intuição, técnica e pulsação. O ajuste demora. Literatura é amadurecimento lento e persistente.