“Tudo é coletivo”

Entrrevista com Miguel Sanches Neto
Miguel Sanches Neto, autor de “Um amor anarquista”
01/10/2005

Nisso de escrever, Miguel Sanches Neto “jogou sua vida”. Não há dia em que não trabalhe num de seus textos. Insone, há cerca de 20 anos se dedica à produção de uma vasta “obra secreta”. Atualmente, boa parte desse material tem sido revelado. Sanches tem publicado muito, conquistado espaços cada vez maiores na imprensa nacional, recebido boas críticas, novas oportunidades editoriais. Seu romance mais recente, Um amor anarquista — passado no final do século 19, na Colônia Cecília, aldeia socialista fundada na cidade paranaense de Palmeira —, promete consolidar ainda mais a sua posição entre os principais escritores do Brasil de hoje. Em entrevista aos jornalistas Paulo Krauss, Irinêo Netto e Luís Henrique Pellanda, Miguel falou sobre amor livre, movimentos sociais, idealismo, cinema, livros e panelinhas literárias.

• Todos os personagens de Um amor anarquista são reais? O que exatamente é ficção na obra?
Os personagens são reais na medida em que eles correspondem a seres que de fato existiram. E quase todos aparecem com os nomes de cartório, com apenas duas exceções — as prostitutas Maria Malacarne e Narcisa. Esta realmente existiu, há relatos sobre ela, mas ninguém entrega o nome, então eu tive que criá-lo. Já sobre Malacarne havia apenas boatos e inventei a personagem a partir de uma acusação que se fazia aos anarquistas, de que eles contratavam serviços sexuais na cidade. Eu vi isso sem nenhum preconceito, logicamente, mostrando o drama dos homens isolados, sem as companhias femininas. Todos os demais personagens têm certidão de nascimento, embora eles apareçam no romance dentro de circunstâncias inventadas. Eu criei as personalidades deles, modifiquei alguns destinos, pois aí me interessava mais trair a história do que ser fiel a ela, embora, no conjunto (datas, fatos etc.), o romance traga informações precisas.

• A colônia anarquista tinha princípios ousados, sob vários aspectos. Mas você preferiu extrair e trabalhar com os efeitos do amor livre no grupo. Por que essa escolha?
Porque era o episódio que trazia o maior grau de contradição e de ousadia. O Paraná daquele período era extremamente conservador em matéria de sexualidade, e uma pequena comunidade agrícola tem em seu seio uma proposta de amor livre. Havia dois grupos distintos na Cecília, o de agricultores e o de anarquistas propriamente ditos. Claro que todos comungavam do mesmo ideário de liberdade, mas uns estavam mais presos a práticas tradicionais e aos preconceitos da sua formação. E como o amor livre aconteceu nos dois grupos, isso permitia entender e estender os latentes conflitos de classe. E eu quis fazer uma sobreposição da posse da terra e da posse do corpo. Assim, o amor livre era o aspecto que trazia maiores possíveis narrativos. Além de ser o centro da proposta do Giovanni Rossi.

• Do ponto de vista histórico, a Colônia Cecília foi um episódio marcante e fascinante. Mas não parece que sua existência tenha deixado marcas sociológicas ou culturais no Paraná e no Brasil. Você já disse, aliás, que o assunto é tabu entre os paranaenses. Por que a Cecília é ignorada?
Há muitas mistificações em torno da Cecília, criadas por dois tipos de incompreensão. A dos conservadores, que viram o episódio como uma experiência moralmente perigosa, pois ela pregava o fim da família, a coletivização dos meios de produção, a luta contra o poder etc. E a dos próprios ideólogos da esquerda, que passaram a ver a Cecília como um extenso movimento libertário, uma Canaã meio hippie. As duas leituras são equivocadas, a Cecília foi extremamente importante porque testou, no dia-a-dia, as crenças anarquistas e socialistas vigentes no final do século 19, demonstrando que todo aquele ideário era perfeito em teoria mas que ele tinha problemas de aplicabilidade. Na prática social, vários fatores desviavam os anarquistas de sua crença. Um deles é o amor romântico. Acredito que a Cecília não esteja presente na história viva do Paraná e do Brasil porque ela ficou desconhecida, dando lugar a clichês.

• Apesar disso, o governo paranaense apoiou a Colônia Cecília. Qual era o interesse do Estado por essa experiência?
O Paraná estava vivendo um momento de expansão social e cultural. Os anarquistas eram vistos não como revolucionários, mas como uma força civilizadora. Eles trouxeram novas técnicas agrícolas e deram um grande impulso a algumas áreas industriais, tanto que uma das famílias construiu um império industrial — os refrigerantes Cini (popular marca de bebidas paranaense). Se havia desordeiros e colonos simplórios entre eles, também havia figuras empreendedoras, gente avançada intelectualmente. Muitos se engajaram no jornalismo de propaganda política. Assim, o governo os recebeu como imigrantes comuns, sem temer as suas idéias, pois havia muita terra disponível que precisava ser ocupada. O problema não era a falta de terra, mas a falta de mão-de-obra. Os anarquistas só passaram a ser malvistos em alguns setores quando determinados componentes se envolveram em badernas. Mesmo assim, eles foram uma força social importante, pois melhoraram o nível técnico e cultural de nosso estado.

• O que você acha do amor livre? Como você se veria no lugar de Anibal, que, em nome de um ideal, se vê obrigado a ceder sua mulher a mais dois homens?
Eu não possuo uma mulher, apenas sou casado com ela, há quase 20 anos. Então, esta decisão não é minha. Eu não levaria minha mulher a outro apenas para testar idéias. Rossi defendia o pensamento cientificista, que lutava contra a força romântica, embora haja tanto romantismo no projeto dele. Hoje, a mulher tem uma liberdade de relacionamento que não passa mais pela “autorização” do marido. O que vemos todos os dias é a mulher cada vez mais livre dos laços de exclusividade. Vivemos uma era absolutamente feminina. Isso é irreversível.

• Você conviveu com o tema da Colônia Cecília durante muitos anos, por haver trabalhado com um descendente dos anarquistas. Esse ancestral, no caso, é um dos personagens principais do livro? Devido a essa proximidade, ao possível assédio de familiares de personagens citados, o quão delicado foi trabalhar com fatos históricos tão recentes?
O descendente que me forneceu o material foi o ponta-grossense Candido de Mello Neto, um homem que fez uma carreira na psiquiatria, foi fundador de um hospital, e que tinha o maior orgulho de suas raízes anarquistas. O Dr. Mellinho, como era chamado na cidade, foi o grande redescobridor da Colônia, ele passou anos viajando, pesquisando em bibliotecas, arquivos e cartórios. Eu trabalhei com este material, que, para ele, rendeu um livro de história (principalmente das famílias) e, para mim, um romance. Eu estive apenas uma vez na sede da fazenda em que ficava a Cecília, levado pelo Mello na falsa condição de primo dele. Os atuais donos não vêem como bons olhos esta recuperação da história, não por motivos de preconceitos, mas porque aquelas terras são deles e eles temem uma desapropriação. Quando a experiência coletiva se desfez, a terra não tinha sido paga e a família Artusi quitou as dívidas e ficou com a propriedade. Os antepassados dele não são personagens principais do livro, mas aparecem em várias passagens. Mas isso não foi intencional, é que o livro gira em torno do Rossi.

• O Dr. Grillo parece, como personagem, uma espécie de depositário da lucidez no romance. É com os olhos dele — de simpatia, interesse, esperança ou compaixão — que o autor de Um amor anarquista acompanha as tentativas de sucesso da Colônia?
É isso mesmo. O Dr. Grillo, representante do governo em Palmeira, italiano, mas não anarquista, foi um entusiasta de primeira hora da Colônia. Eu quis que ele fosse este olhar de carinho e de lucidez, pois era o elemento externo, mas com uma adesão afetiva à luta dos anarquistas. Ele quase não julga, apenas em uns poucos momentos, e faz de tudo para que a empresa tenha sucesso. Usei-o também para poder melhor explorar as contradições — muitos anarquistas trabalhavam para a administração pública, revelando assim uma situação estranha. Os destruidores do poder viviam de empregos e de subsídios do governo local. Grillo era um protetor da Cecília, uma figura admirável.

• Deixando de lado o problema do amor livre, o modelo social proposto pela Cecília teria durado mais se o Paraná não possuísse, no século 19, tantas terras ainda esperando por quem as arasse? O Brasil de então parecia oferecer muitas oportunidades aos imigrantes. Será que isso, entre italianos recém-chegados de um país de recursos naturais já esgotados, não estimulava aventuras mais individualistas?
Tudo indica que o maior inimigo da colônia foi realmente a oferta de terra e de postos de trabalho. Diante de qualquer problema, bastava deixar a propriedade coletiva e buscar um emprego na cidade ou um pedaço de chão vendido a prazo. Assim, poderíamos dizer que a reforma agrária já estava sendo feita no Paraná daquela época, uma reforma individualista, mas que vai continuar em processo até 1950, com a colonização do Norte e do Oeste do estado. Não existiria, por exemplo, o MST se as condições de hoje fossem as mesmas. É na carência que se formam os movimentos sociais. E acho que, para a Colônia, também faltou tempo para construir uma cultura anarquista, e as relações derivaram para a mais completa desorganização.

• Em tempos de culto ao chamado empreendedorismo e à iniciativa privada, ao individualismo e à independência, por que a Colônia Cecília é um tema tão atraente?
É um grande tema, não serve como modelo, mas como lição. O que eu aprendi com a Colônia? Que os idealistas é que mudam a realidade, mesmo quando falham. Sem o idealismo, tudo vira pragmático demais, imediatista. Manter um ideal, mesmo correndo o risco de ser quixotesco, é a única forma de continuar acreditando no ser humano. Hoje, podemos viver em projetos individuais, mas somos “socializadores” em pequena escala, nunca o país e o mundo sentiram tanto a necessidade de ajudar, dando parte de seus rendimentos para os setores mais necessitados. Mudou o foco do socialismo — não é mais construir uma sociedade coletivista, mas transformar rendimentos pessoais em oportunidades de melhoria global. É claro que existem os 10% que controlam quase toda a riqueza do país, mas a classe média assumiu o papel de grande força coletivizadora — sem ela, os pobres morreriam de fome. Um pequeno empresário e um profissional liberal socializam compulsória e espontaneamente mais do que aqueles que apenas vivem de pregar o discurso socialista.

• No seu livro infantil Estatutos de um novo mundo para as crianças (Bertrand, 2005), você sugere, no artigo 5.º, que se abandone a primeira pessoa do singular. No lugar de “eu”, que se diga “nós”. Do indivíduo à coletividade. Esse tipo de credo pode ser sustentado na vida adulta? A que preço?
Do ponto de vista pessoal, tento lutar contra o culto do personalismo. Quando publico um livro, não quero ser cultuado como Escritor, quero apenas interferir na realidade, chamando a atenção para grupos de pessoas ou para fatos periféricos. Nesse sentido, todo escritor de verdade, ao usar o eu, está usando um nós. De nada adianta usar um nós como plural majestático, como encontramos na boca de boa parte da esquerda. Você pode ter um projeto pessoal sem desconsiderar o coletivo, vendo-se dentro de um todo. O uso excessivo do eu é sinal de um autismo cultural que marca nossos tempos. Isso é muito visível na literatura. Cometendo um erro gramatical, em nome da vaidade, muitos escritores escrevem em seus livros “eu e Machado de Assis”, por exemplo, quando a regra manda que se escreva “Machado de Assis e eu”, não só por uma questão de lógica, para aproximar o pronome pessoal do verbo, mas por humildade. Meu livro infantil pretende criar uma sensibilidade para o fato de que participamos de um grupo, de que não existem ações totalmente individualistas. Tudo é coletivo. Quando alguém escreve um poema pessoal, extremamente hermético, ele ainda é um produto coletivo, das leituras, dos convívios, do barulho da vizinha que briga com o marido.

• Já se comenta na imprensa que Um amor anarquista vai virar filme. É verdade? Você se interessa por esse tipo de transposição? Tem vontade de trabalhar com roteiros para cinema ou televisão?
Eu torço para que o livro seja adaptado para a tela. Venho de uma formação cinematográfica, embora não acompanhe hoje o cinema. Descobri que o mundo era maior que minha cidade pela tevê, pelos seriados americanos, como Perdidos no espaço, Jornada nas estrelas, Terra dos gigantes, Bonanza, Os Waltons. Minha literatura é altamente visual. Então, acho que ela pode render adaptações boas. Particularmente, não tenho vontade de me envolver com cinema, nem como roteirista nem como mero palpiteiro. Quero apenas assistir aos resultados. As adaptações são leituras críticas do trabalho do escritor, pois vão ser privilegiados alguns aspectos. A literatura não pode desprezá-las. Eu sempre ouvi falar mal das adaptações e ainda vejo escritores com pose de intelectuais sisudos, dizendo que é rendição ao mercado e à mediania. Eu escrevo para atingir o leitor comum, não para virar exemplo de teorias em teses acadêmicas.

• Percebe-se em seus livros um rigor muito grande na precisão da linguagem e do texto. Seria o crítico, o doutor em literatura, controlando as rédeas do escritor para evitar a tentação das invencionices?
Eu me formei lendo escritores que praticavam uma literatura sem artifícios, sem maneirismos, então isso é uma marca mais da minha adesão a um conceito de literatura do que de minha formação acadêmica. Acho que aconteceu um processo inverso, o escritor é que mudou o professor, pois não tenho nenhum interesse em certo discurso acadêmico mais fechado, que também é uma forma de maneirismo. A universidade para mim sempre foi uma abertura para os grandes textos literários e é só neste sentido que ela ajuda um escritor.

• Já foi dito mais de uma vez que você não se identifica com nenhuma panelinha literária. Quais são os prós e contras dessa postura independente em um meio literário como o brasileiro?
E existem prós? Brincadeira à parte, não é uma postura consciente. Não é que não quero pertencer a panelinhas. Eu simplesmente não tenho vida gregária, odeio viver em grupos, em bandos. É uma questão de natureza. Gosto da solidão, dos livros, de uns poucos amigos. Não vou a festas, aniversários, casamentos, formaturas. Odeio restaurante cheio, lugares em que pessoas dançam, se apertam. Então, evito transitar em grupos. Nunca participei de um abaixo-assinado, por mais justa que fosse a reivindicação. Sou um casmurro. Vivendo à sombra das prateleiras, convivo com as principais mentes de todos os tempos, então não tenho paciência para a vida entre meus pares. Por outro lado, gosto muito de conviver com as pessoas do povo, gosto de ouvir gente simples, histórias das mais variadas pessoas. A literatura precisa mais do contato com o homem comum do que com os autonomeados intelectuais. A desvantagem mais evidente é que não sou lembrado na hora da divisão dos lauréis. Nunca ganhei um prêmio sob o próprio nome, apenas sob pseudônimo. Espero que um dia isso mude.

• O escritor Miguel Sanches Neto parece estar vivendo um momento de grande ebulição criativa e produtiva, lançando tantos livros em tão pouco tempo. Alguma razão especial para isso?
Nos últimos 20 anos, escrevo diariamente. Joguei minha vida nisso, mantive uma obra secreta, enquanto tratava de resolver problemas de sobrevivência. O que tem aparecido é um número maior de oportunidades editoriais. Eu continuo no mesmo ritmo de escrita — não passo um dia ser ler minhas tantas páginas e sem trabalhar em um texto meu, pode ser na revisão ou mesmo fazendo uma anotação. E como sofro de insônia, há bastante tempo para me dedicar a isso. Um outro fator é uma consciência aguçada da morte. Desde 2000, enfrento a Síndrome de Addison (caracterizada por uma insuficiência da glândula supra-renal, responsável pela produção de diversos hormônios), e quando você sofre de uma doença crônica, tem mais pressa em deixar escrito e publicado o que um dia poderá vir a ser uma obra. Não dá mais para dizer: “Publicarei isso daqui a dez anos”. É preciso ser realista: “Publicarei este livro no ano que vem”. Passei a medir minha vida por esta unidade menor. Isso significa que em 2006 haverá outro livro — digo isso quase como uma ameaça.

LEIA RESENHA DE UM AMOR ANARQUISTA

Paulo Krauss

É jornalista.

Rascunho