“Todo mundo imita todo mundo”

Entrevista com Ivan Junqueira
Ivan Junqueira, autor de “O outro lado”
01/03/2001

O carioca Ivan Junqueira nasceu em 3 de novembro de 1934, para ser médico. Só que a ele estava destinada outra carreira. Em 1963, iniciou-se no jornalismo como redator da Tribuna da Imprensa, crítico literário e ensaísta, Ivan Junqueira tem, desde então, colaborado em todos os grandes jornais a revistas do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. Como poeta, foi traduzidos em diversos idiomas. Teve sua obra poética reunida em 1999. No dia 30 de março de 2000, foi eleito para Academia Brasileira de Letras na vaga de João Cabral de Melo Neto (Cadeira 37). Sobre sua paixão maior, a poesia, Ivan Junqueira concedeu essa entrevista ao Rascunho:

• Antes de morrer Kafka pediu a seu melhor amigo que queimasse parte da sua obra. Felizmente o amigo não realizou o que Kafka havia pedido. Também José Paulo Paes dizia que a boa poesia morria a cada  mau livro publicado. Você é um escritor exigente e elabora muito os seus textos. Quando um poema de Ivan Junqueira merece ser publicado? Quando um livro merece receber a sua chancela? Quais livros gostaria de ter escrito?
Quando o sinto digno de mim e de meus leitores, aplicando-se também essa verdade a qualquer volume que haja publicado ou venha a publicar. Gostaria de ter escrito todos os livros que li com prazer ou fascínio e que, em alguns casos, mudaram a minha maneira de ser e de entender a realidade. Mas eles são muitos, e esta é uma boa razão pela qual jamais poderia tê-los escrito. Exemplo: Four Quartets, de T. S. Eliot. Ou Les fleurs du mal, de Baudelaire, Mas, neste caso, pelo mundo os traduzi, o que não deixa de ser uma forma de, na pior das hipóteses, tê-los reescrito, muito embora em outro idioma.

• Na música, Beethoven foi o primeiro que conferiu a si e não ao Deus a autoria de sua obra. O tempo passou e para os poetas a divergência ainda existe. De um lado ficam os que vêem a atividade poética de forma mediúnica. Em contraposição  estão os que são mais racionais e acreditam no labor poético. A poesia é fruto do talento ou do trabalho? Os poetas mataram a inspiração?
A poesia é, simultaneamente, fruto do trabalho e do talento, talvez mais daquele do que deste. E lembramos aqui as palavras de Goethe: a obra de arte é 99% de suor e 1% de gênio. Nenhum poeta jamais matou a inspiração, nem mesmo o antilírico e realista João Cabral de Melo Neto. Se a tivessem assassinado, quero dizer, a inspiração, a poesia estaria morta. Convém apenas esclarecer que a inspiração não é um transe mediúnico, mas um longo e complexo processo, a um tempo metal e emocional que me parece indispensável à criação artística. Mas não é só de inspiração que vive um poema. Ela é apenas, quando o é, um ponto de partida que pode (ou não) levar um poema até o fim.

• Segundo Wordsworth, “o menino é o pai do homem”. É o pai do poeta?
Concordo inteiramente com as palavras de Wordsworth, que de certa forma são revividos por Manuel Bandeira ao poema “Velha chácara”, onde escreve o autor: “A usura fez tábua rasa/ Da velha chácara triste:/ Não existe mais a casa…// — Mas o menino ainda existe.” Não apenas a poesia, mas qualquer outra forma de arte envolve uma atividade lúdica. O que não se pode é confundir, como fizeram os poetas concretos, metalinguagem com metaludismo. O poeta é como aquela criança heraclitiana que brinca com os dados do tempo. Se a poesia fosse absolutamente grave e solene, seria também ilegível. Ou seja, não teria graça nenhuma.

• No poema EM TEMPO DE AGONIA pode-se ouvir ecos do futuro. Ainda em toda a sua obra ouço esses ecos, e particularmente em TRÊS MEDITAÇÕES NA CORDA LÍRICA, o passado está mais presente: “O que foi nem mesmo o mar apaga/porque habita e insufla suas águas”. Uma vida dá para contar uma vida? O passado é a matéria que serve de ingrediente para a boa poesia?
Só temos uma vida aqui na Terra, o que é pouco para recordá-la ou resgatá-la em termos de plenitude narrativa. E nem sei se seria isto aconselhável, pois ignoro se o relato de minha vida poderia ser do interesse de alguém. Não há poesia, como tampouco não há literatura, que não recorre à memória. E isso se dá porque o tempo passado e o tempo presente estão ambos contidos no tempo futuro. Cumpre entender, como o fizeram Bergson e Eliot, que o tempo é uma durée, uma correnteza em que pulsam o que foi, o que é e o que está vindo a ser. A rigor, a memória engloba não um momento congelado do tempo, mas um fluxo contínuo a que se poderia chamar de pantempo.

• Fechando o poema TRÊS MEDITAÇÕES NA CORDA LÍRICA o poeta arremata: “— Tudo é processo. E a vida não repete.” O verso mostra uma visão pré-socrática de filosofia. Heráclito não passa no mesmo rio duas vezes? A vida é um devir? Qual a importância que a filosofia deve ter na vida dó poeta?
Desde os 15 ou 16 anos leio muita filosofia e, logo após abandonar o curso de medicina, ingressei na Faculdade Nacional de Filosofia, onde fui assistente de Álvaro Vieira Pinto e José Américo Peçanha. Minha especialidade era, justamente, a filosofia dos pré-socráticos e lembro-me de que a última aula que lá ministrei versou sobra Platino e a Patrística. De modo que a filosofia ocupou um lugar muito importante em minha formação intelectual e, claro está, exerceu uma influência profunda e duradoura sobre minha poesia. Considero-me um heraclitiano e, como tal, julgo que o ser e a realidade constituem um eterno dever e que o homem não se banha duas vezes nas águas de um mesmo rio. Daí, o verso final das Três meditações na corda lírica: “Tudo é processo. E a vida não repete.” Entendo que a filosofia, assim como a poesia, é também uma forma de gnose.

• “E por que tanto sigilo/em vosso verbo melífluo,/se a morte em si já é signo/transfigurado de vida”. Nós somos nossos mortos também? A morte pode/deveria ser a coroação de uma bela vida? O não ser quando faz parte do ser é eterno?
Os nossos mortos vivem em nós, mas a morte não é necessariamente a coroação de uma bela vida, e sim um signo do absurdo sisifiano em que se resume a transitoriedade ou a fugacidade da vida. Como não creio naquele Deus de participação concebido pelo cristianismo, o episódio da morte envolve uma contradição que o ser humano jamais conseguiu resolver. E morrer sem Deus é um absurdo talvez ainda maior. Daí, meu desespero diante daquilo que se extingue em nenhuma redenção ou salvação. Nada é eterno, nem mesmo o legado literário ou espiritual que deixamos após a morte, ou seja, o que nos sobrevive. Mas até quando? Será que daqui a um século ainda se lembrarão de nós ou de um único verso que escrevemos?

• Em OPUS DESCONTINUO há um poema de três linhas denominado HAICAI. O poeta deve dominar outras dicções que não a sua principal? Como encara o fim do modernismo? Há futuro para poesia? O computador é o futuro da arte em geral?
Sim, o poeta deve dominar todas as dicções que puder, sobretudo a sua, pois ela é que confere a identidade de cada um de nós. O modernismo terminou apenas enquanto movimento literário, mas não enquanto atitude estética. Afinal de contas, ainda estamos em plena modernidade, ou pós-modernismo, como pretendem alguns. A poesia sempre terá futuro na medida em que seja autêntica, na medida em que não configure apenas um produto do momento em que foi escrita. Alguns críticos costumam dizer, com toda razão, que minha poesia é atemporal, o que não quer dizer que não escrevo para o meu tempo. Quer dizer apenas que não sou prisioneiro de meu tempo, como tampouco de nenhum tempo. O computador é somente uma máquina e, como tal, estúpido e datado, repetindo apenas o que lhe ordenamos através de um programa. E, como toda máquina, será em breve substituído por outra, mais eficaz talvez, mais igualmente burra e descartável.

• Nos sonetos de A RAINHA ARCAICA e CINCO MOVIMENTOS podemos perceber a precisão com que a língua portuguesa é tratada.  Em vários poemas a antítese está presente como “Amor oblíquo que olha de soslaio,/mas que ilumina e queima como um raio…” O amor é o fogo que arde sem se ver  e é ferida que dói e não se sente? Como encara a volta da utilização das formas fixas na poesia? O soneto é eterno?
Sempre tratei a língua portuguesa com zelo e mesmo veneração. Trata-se de meu instrumento de trabalho, de algo que me transcende e me torna comum a todos os que nela se expressam. A língua em que escrevemos é muito mais eterna do que nós, seus humildes e efêmeros usuários. As formas fixas jamais deixaram de ser utilizadas em qualquer época ou em qualquer literatura. Ninguém é mais ou menos moderno porque delas se vale. O que envelhece ou envilece uma forma e o seu mau uso. Leia os sonetos de Camões, Dante, Petrarca ou Shakespeare. Será que estão mortos por serem sonetos? As formas fixas são um patrimônio pelo qual os poetas devem lutar com unhas e dentes. E digo a você que nenhum verso é livre o bastante para quem se disponha a escrevê-lo com amor e competência, o que não significa que sou contra o verso livre, do qual, aliás, já me servi incontáveis vezes.

• No poema LIMBO está escrito que “Está ali. Imóvel e silencioso,/a um passo da síncope e do gozo./Ali está. Heráldico emblema/— o signo incógnito do poema.” O poema é o nada? A poesia está em tudo? O poema é mais um lugar onde a poesia mora?
O poema é o nada enquanto não se torna poema escrito e transmissível, que é, literariamente, o lugar da poesia. Pode-se dizer, por exemplo, que um belo poente é poético, mas um belo poente ainda não é poesia. Poesia é o que transfigura esse poente graças à magia e o mistério das palavras. O poente é eterno porque ciclicamente se repete como fenômeno celeste. Mas é a poesia que, através do sortilégio dos sons e dos signos, transforma e criticamente o eterniza em outra dimensão que não é a da natureza, dessa natureza que, como ensina Pascal, está corrompida pela própria natureza.

• Em A SAGRAÇÃO DOS OSSOS há poemas de beleza ímpar. Neles o poeta celebra a antítese do que esta aparente. Ao invés de ser como em Augusto dos Anjos que fez uma apologia sarcástica da morte, você nos fala de vida e termina o livro com o verso: “A vida é maior que a arte”. Como diz Rimbaud, na tradução de Ivo Barroso, “(…) A eternidade./É o mar que se evade/Com o sol à tarde.”  A Eternidade é a busca maior do poeta? Deve ser sempre assim, o poeta deve querer ser eterno ou isso é uma escolha das musas?
Sim, de certa forma a busca maior do poeta se concentra na obtenção ou, melhor dizendo, no tangenciamento dessa problemática eternidade, seja por seu próprio desígnio, seja por escolha das musas, se é que elas ainda existem ou existiram mesmo algum dia. Você faz uma observação correta quando estabelece a distinção crucial entre a minha poesia e a de Augusto dos Anjos, de quem sou leitor contumaz e devoto. A rigor, o que escrevo sobre a morte (ou, inversamente, sobre a vida) nada tem a ver com a apologia anjosiana da morte, pois, enquanto ele sarcasticamente a celebra, eu a exorcizo, embora reconhecendo-lhe o pleno domínio sobre todos os seres vivos. E veja bem que o que eu lamento não é a vida, mas a fugacidade da vida, que constitui, de certa forma, a negação de uma desejada mas improvável eternidade.

• A poesia só aumenta os problemas de um ser humano. O poeta reclama que não pode se dedicar à poesia.  Não ganha dinheiro pelo que faz. Não recebe glórias em vida. O que leva alguém a ser poeta?
Não é que a poesia aumente os problemas do ser humano. Ela apenas faz com que o homem os enfrente de outro ângulo, mas sem oferecer-lhe qualquer solução que não seja a de conviver melhor com eles. Nesse sentido, a poesia poderia até ser vista como uma forma de terapia. Quem se dedica inteiramente à poesia deve saber, desde o início, que ela não lhe trará dividendos, glórias terrenas ou conforto material. A poesia é (ou deveria ser), para quem a escreve, uma fatalidade, o que não é um bem nem um mal. É apenas uma escolha que o verdadeiro poeta não pode deixar de fazer. E por que tantos candidatos a poeta? É algo que jamais entendi inteiramente. Mas há que se considerar a irresistível sedução exercida sobre qualquer um de nós pela estranha aura que envolve a condição de sermos poetas e reconhecidos como tais. Mas o ganho, às vezes, é a morte. Não raro precoce, como ocorreu com diversos grandes poetas, sobretudo os românticos.

• Borges dizia que se há uma vassoura no conto e ela não tem função alguma, deve ser tirada do texto. Tal regra se aplica a poesia? Como encara a poesia diet, sem gorduras? A poesia curta é um problema ou é o retrato de nossos dias? Quais as principais vertentes da poesia brasileira na atualidade?
A regra borgiana aplica-se mais à poesia do que a prosa, e creio que ele a formulou porque foi, acima de tudo, um poeta. A poesia deve ser exata porque, em sua gestalt, há muito de música e de matemática, como acontecia com os pitagóricos. Mas v. se engana quanto à adiposidade: um poema curto pode ser gordo, ao passo que um poema longo pode não sê-lo necessariamente. Os poemas longos de Eliot, Baudelaire ou Apollinaire não têm gordura alguma. E quem poderá dizer que a Commedia dantesca é gorda. Os poemas de nossos dias tendem a ser curtos porque vivemos longe da civilização da imagem. E ninguém mais lê nada, o que nunca foi novidade num país como o nosso, cujo hábito de leitura é baixíssimo desde os tempos da colônia. Basta dizer que os livros só começaram a chegar ao Brasil em princípios do século XIX. Há muitas vertentes na poesia que hoje se escreve no Brasil. Vivemos um pluralismo pós-moderno, no qual tudo é válido.

• T.S. Eliot é uma recorrência entre as epígrafes de seus livros. Mas há nomes tão ilustres como Drummond, Jorge de Lima, Mallarmé, Dante Alighieri, Homero, Fernando Pessoa, Baudelaire, Rimbaud. Sofre de alguma angústia da influência à moda Harold Bloom?
Sempre disse e repito que, quanto mais influências receber um poeta, melhor para ele, para sua robustez intelectual. Não acredito em raquitismo de fruto enfezado. Só se amadurece com muita leitura, inclusive de poetas que escreveram em outras línguas. A angústia da influência a que se refere Harold Bloom me cheira a falácia, de modo que a ignoro. Os poetas devem ler os poetas desde Homero até hoje. E nunca temer o demônio da imitação. Todo mundo imita todo mundo. E não há nada novo sob o sol, como ensina o Eclesiastes. Sempre digo a meus pares que o poudiano “make it new” envolve, de certa forma, o “make it old”.

• A convivência com outros poetas pode ser difícil como muitas matérias (na mídia) afirmam, mas em seu livro há dedicatórias para poetas detentores de estéticas diferente da sua — o que não é o comum. Ao mesmo tempo que dedica poemas a Marco Lucchesi e Alexei Bueno, também há uma dedicatória a José Paulo Paes. Qual é o segredo (em meio ao desrespeito que existe) de uma convivência mais harmônica entre opostos? O fato de ser editor da Revista Poesia Sempre o torna mais flexível? A necessidade de conviver com a diversidade lhe faz mais tolerante?
Não há razão alguma para que se evite o convívio com outros poetas, sobretudo os de sua geração, ou com aqueles dos quais alguém se fez amigo para além das rinhas e rixas literárias. A convivência harmônica entre os contrários seria ademais, uma premissa dialética. Não vejo por quê tratar mal quem lhe trata bem ou mesmo quem não lhe bata tão bem assim. É claro que a função de editor da revista Poesia Sempre me tornou mais flexível e tolerante, mas nem por isso — ou justamente por isso — passei a compactuar com o que considero má poesia.

• Qual o papel do escritor na sociedade?
Escrever, escrever, escrever. E no caso particular do poeta, impedir que a poesia morra. O resto não importa, mesmo porque, por melhor que alguém se julgue, será sempre julgado por outrem e num momento em que, provavelmente, não estará mais vivo sequer para se defender.

Rodrigo de Souza Leão
Rascunho