Terapia em caminho de escuridão

Entrevista com João Gilberto Noll
O escritor gaúcho João Gilberto Noll
01/07/2002

Uma boa conversa, sem roteiro definido, com idas e vindas, nós atados e desatados meio sem querer sempre faz bem para a alma. De quem fala e de quem escuta. Para alguns, pode servir até como uma terapia. Foi o caso, provavelmente, do bate-papo de João Gilberto Noll, mediado por um curioso José Castello e uma platéia que não queria nem saber da Copa do Mundo (pelo menos em 3 de junho, logo no início do mundial, quando o sorriso do Ronaldinho ainda era tímido), para mais um encontro no projeto Inventário das Sombras, no Sesc da Esquina, em Curitiba.

O gaúcho sentou-se na poltroninha amarela como quem vai a uma sessão de terapia. Estava ali, desarmado, expondo seus anseios, dissecando sua obra e, conseqüentemente, sua vida. Por duas horas falou, falou e acabou descobrindo coisas que o impressionaram. Como, por exemplo, que sempre quis ser escritor e que não entrou nesse mundo de histórias inventadas somente por acaso — ou somente porque gostava de música, como pensava havia tempos. Avesso às religiões organizadas, foi alertado por um atento Castello de que sua literatura tem uma visão muito ritualística, religiosa, até. Rotulou-se como um “ateu místico”. Porque, por mais que negue, tem sede de saber do que há entre o céu e a terra.

O escritor também falou sobre sua dificuldade — agora reduzida — de se relacionar com as pessoas, de se adaptar aos lugares e aos seres. Da solidão necessária para escrever — ponto mais do que comum com 99% dos escritores, que dizem que o ato de colocar as palavras num papel em branco é de extrema solidão, de introspecção. Mas, ao mesmo tempo, descobriu-se menos apegado à solidão e mais otimista.

Acabou de escrever um romance, Berkeley em Bellagio, com experiências reais — mas muito inventadas também, que o escritor não pode nunca deixar de pôr no papel aquilo que a imaginação viveu — de suas atividades na Universidade californiana de Berkeley e sua estada no vilarejo italiano de Bellagio. E contou, a uma platéia reduzida (Curitiba é assim mesmo), porém muito interessada, que se surpreendeu com o final feliz dos personagens da obra. Depois da conversa com os curitibanos, Noll saiu lívido. Disse, antes de deixar o palco, que, se para a platéia a conversa foi interessante, para ele foi muito mais.

João Gilberto Noll nasceu em Porto Alegre em 1946. Estreou na literatura em 1980, com O cego e a dançarina (que começou a delinear ainda na década de 70). Depois vieram A fúria do corpo (1981); Bandoleiros (1985); Rastros de verão (1986); Hotel Atlântico (1989); O quieto animal da esquina (1991), Harmada (1993), A céu aberto (1996) e Canoas e Marolas (2000).

Confira os principais trechos da conversa entre Noll, Castello e a platéia.

• Porque você escreve?
Eu acho que deveria começar num momento mais remoto. Eu gostava muito de cantar… Em festas, família, casamentos. Então, eu entrei na literatura através da música e desde esta época eu tinha uma certeza: de que eu queria realmente trabalhar numa atividade artística. Talvez por uma ansiedade de colocar no mundo alguma coisa que ainda não tinha aparecido. Claro que essa vontade é típica do ser humano, na medida em que nós sentimos a nossa condição. Eu escrevo por uma insatisfação muito grande com o real — que hoje já não tenho tanto e, no entanto, continuo escrevendo. Estou falando das primeiras fontes que me levaram a escrever, uma insatisfação muito grande com as coisas que me cercavam, uma sensação de déficit pessoal muito grande com relação ao mundo todo. Eu sempre sentia que faltava alguma coisa e que, portanto, eu só poderia suprir essa coisa se eu pudesse transfigurar. Para mim, a literatura está toda ligada a um certo grau de transfiguração. Eu tive infância católica, religiosa, mas hoje estou afastado de qualquer religião organizada — e com muita veemência… E agora estou me dando conta de que não foi só a música que me levou a escrever… 

• Você queria ser cantor lírico?
Queria. Eu estudei piano para ter uma teoria musical e tinha as minhas primeiras aulas de canto. Tinha uma disciplina, um certo agenciamento familiar muito grande para que eu fosse cantor, e por isso eu me sentia muito oprimido. Mas eu tinha certeza de que eu ia enveredar para outra expressão artística. No começo, achei que fosse o teatro ou o cinema. Mas como eu era muito tímido, fazer teatro, cinema, trabalhar em equipe, comandar pessoas… Seria uma coisa penosa, muito difícil. Então, eu fui me encaminhando para a literatura, porque é a arte solitária por excelência.

Você publicou seu primeiro livro aos 34 anos. E em que momento se cristalizou a profissão da literatura, e em que momento você começou a escrever os primeiros textos mais organizados?
Foi durante os anos 70, principalmente na segunda metade. Eu comecei a fazer uma análise psicanalítica e isso me ajudou muito. Não tanto para escrever, mas principalmente para me direcionar, para realmente me concentrar para o projeto.

• Há um mito de que a psicanálise gasta as vocações criativas. Seu caso desmente esse mito…
No meu caso foi o oposto disso. Até porque meu psicanalista era ligado à literatura. Então eu levava contos para ele — não o texto em si, mas eu contava. Ele fazia eu comentar de um modo interessante. Eu escrevi o meu primeiro livro (O cego e a dançarina) pensando em fazer um livro de contos, mesmo. Não eram contos fáceis, não. Há uma organização. A primeira parte trata de criança, de adolescente. O primeiro foco do livro — que chama Alguma coisa urgentemente, cujo protagonista é um adolescente — foi adaptado para o cinema e deu naquele filme que eu gosto muito do Murilo Sales, Nunca fomos tão felizes. E a segunda parte é uma parte dedicada a mulheres, onde eu praticamente escrevi na primeira pessoa do singular. Eram anos 70, a gente não pode esquecer. O Chico Buarque fazia muito isso naquela época, cantava no discurso feminino. E a terceira parte eu toquei nos homens. Então tem uma organização nisso.

• Sua literatura é marcada por personagens um pouco deslocados, mas muito carregados de ideais. Isso tem a ver com os anos 70?
Eu acho que tem, sim. Havia muita militância, mas ao mesmo tempo existia uma tendência a se deslocar. O desejo para fora do âmbito social, para fora do âmbito familiar. E ir em busca, viajar, ir atrás do diferente, ir atrás do estrangeiro, ir atrás do que fugia da rotina, da burocracia do cotidiano. Mas fora isso, eu pessoalmente já tinha uma tendência muito grande a me sentir deslocado, desadaptado. Talvez isso seja até mais importante do que o escrito da época, do horizonte cultural da época. Eu sou um sujeito que na adolescência teve momentos muito graves de adaptação. Me levaram a tratamento psiquiátrico, me internaram durante um mês numa clínica, tomei choques… Tudo porque era um cara totalmente desadaptado, não queria ir para o colégio, não queria caminhar. Já naquela época havia uma tendência muito forte, que é realmente onde você não se compromete com nada. Então fica nessa coisa intervalar, que é de um ponto ao outro, buscar sempre um “já saiu, mas não chegou”. Para mim, isso é o filé mignon da existência.

• Numa época, você gostava de entrar num clima de viagem. De não estar mais num lugar, mas ainda não estar em outro. Chegava cedo antes das viagens para escrever. Hoje não mais?
Hoje não mais. Gosto de estar nos lugares. Tenho aquele fogo de conhecer os lugares. Mas não de viajar, de estar em trânsito. Talvez por causa da idade. Eu ando preocupado com outros valores, aqueles valores antigos que a pessoa passa a buscar. Mas a literatura tem de acompanhar essa dinâmica da visão do mundo. Então, a literatura também muda. Por exemplo, meus protagonistas, nos romances, não nos contos, eram sempre em primeira pessoa. Eu não conseguia imaginar o protagonista se fosse na terceira pessoa. Porque a minha tendência com a literatura é algo com um certo empenho filosófico, onde há uma subjetivação de imagem que eu pudesse falar a respeito. E achava difícil fazer isso na terceira pessoa. Já nesse último livro, eu vario entre a primeira e a terceira pessoa. Não é terceira de cabo a rabo mas tem uma variação. Se eu fosse pesar, talvez houvesse mais primeira pessoa. Mas tem muita terceira pessoa na mesma frase… É um livro que se dividiria em duas partes: o livro se chama Berkeley em Bellagio. Berkeley porque eu passei dois anos na Califórnia, na Universidade de Berkeley lecionando, dando curso sobre a literatura brasileira e contemporânea. E ao mesmo tempo falando da difícil experiência em outro país. Foi muito forte, eu sabia que ia transformar isso em ficção. E Bellagio por causa de um convite que me fizeram para passar um mês nessa cidade do norte da Itália, perto dos Alpes. E ali fui realmente muito feliz de corpo e alma, porque não tinha televisão, nem na casa, nem na sala, não tinha rádio. Era uma aldeia…

Só você ou outros escritores também…
Vários escritores, vários cientistas gente de todas as áreas. Músicos, físicos… Essa primeira parte do livro em Bellagio é uma parte menos realista. É uma parte mais gótica às vezes — gótica no sentido de, em certos momentos, ser um pouco sepulcral, porque tinha lá as catacumbas, que me impressionaram muito… Mas não é um livro realista. Pelo menos não nessa primeira parte.

• Você trabalha com um tipo de prosa próxima da poesia…
Estou mais realista nesse livro, mas uma coisa não exclui a outra. É uma questão também de discutir a linguagem, onde a linguagem se encontra nesse momento. A gente não sabe mais como dar conta de um mundo ou da nossa experiência através da linguagem… Berkeley é o homem que tratou disso. Ele desconfiava muito da linguagem. Achava que o ser é aquele que é percebido, por isso que ele é visto como um filósofo espiritualista. Então, só na experiência palpável é que se pode ter o conhecimento do mundo, e a linguagem é para esconder realmente a coisa em si. Esse romance é um pouco a discussão disso, também na medida em que eu estava lá cercado de uma língua estrangeira e cada vez eu senti com mais verdade aquela palpitação poética, “minha pátria é minha língua”. Então não tem como fugir disso, ainda mais eu que sou escritor de linguagem. O que me move é a linguagem. Não são situações, não são enredos. Não me pergunte sobre o que vai ser o próximo livro, que eu não tenho a menor idéia… O que me move realmente é a atividade da escrita… Isso parece mistificatório para a pessoa. O que é um bem ou um mal para minha vida pessoal…

• Porque é um mal para sua vida pessoal?
Tenho dificuldade de viver com o real. Eu sou um esquizóide, tenho uma dificuldade muito grande em aderir ao real. Mas isso tudo está se abrandando muito por vários motivos, inclusive até pelo fato de eu voltar para a terapia. Eu realmente agora consegui, com esforço, comprar para mim um apartamento, ter o meu canto. Eu vivia muito também de lá para cá…

• Você sempre foi um pouco o andarilho dos seus romances?
Mais isso não é tão romântico como pode parecer. Isso foi em decorrência da minha opção insana pela literatura. De ficar escrevendo sem herança familiar, sem apoio de um emprego… Então vivia de lá para cá, morava um pouco no meu irmão, na minha mãe. Para escrever os livros eu ia para uma casa de veraneio. Eu fui porque eu queria a solidão, o mar, onde tinha um espaço onde eu podia ficar sozinho em casa.

• Será que se você tivesse sido como Drummond, um funcionário público, burocrata desde cedo, você teria escrito esta obra que você escreveu?
Essa obra não. Assim como eu não teria escrito Berkeley em Bellagio se eu não fosse para Berkeley ou Bellagio. Eu sou, nesse sentido, um escritor especialista. Não biografista, eu não faço biografia. Realmente aquelas coisas que estão relatadas nesse livro eu não fiz, mas meu imaginário fez.

• O papel da solidão — não só na solidão dos seus personagens, mas este estado de solidão — parece ser importante para criar. Na sua obra parece que ela é forte de uma maneira radical.
A importância da solidão é algo que evidentemente tem duas faces tem uma parte fria e uma parte emocional, para quem escreve. O solitário tem dificuldade para lidar com o convívio humano. É nesse sentido que eu acho que a literatura se opõe. Eu era um boêmio. Há três anos e meio, rompi com isso. Deito cedo, levanto cedo e está muito boa a vida. Isso me enriqueceu muito. E é a partir disso que eu começo a querer menos solidão, e é a partir disso que esse meu livro envereda para outros caminhos. Porque meu livro, a partir da segunda parte é uma história de amor com happy end… As pessoas conseguem realmente efetivar o seu desejo de estarem juntas.

• Você se surpreendeu com esse final feliz?
É. Mas o sentimento amoroso é uma coisa tão importante. Fica tão presente nesse livro a necessidade de se fundir ao outro, de criar pontes em direção ao outro. Acho que isso está muito presente na nossa época. A nossa época não é só uma época de horror. É de horror, sem sombra de dúvida, mas a reação na época existiu, sim. Eu sinto isso na pele, tanto como cidadão e como escritor. Uma certa abertura para diferença, para a adversidade. Inegavelmente no nosso cotidiano isso está acontecendo, eu sinto na pele isso. Cada vez que eu vejo um pai amoroso com criança na rua — porque antes eu só via mãe beijando criança —, eu já acho um sinal fantástico de mudança da humanidade de alargamento dos horizontes. Ao mesmo tempo em que eu acho que o indivíduo está muito definhante, eu acho que está havendo uma reação. Eu sou muito otimista. Interessante a gente estar falando que eu sou um escritor da solidão, às vezes do horror… Mas sou muito otimista.

• Você diz que é otimista, mas parece o contrário. Porque a sua literatura, em uma certa medida, é pessimista, já que tem personagens extremamente fiéis e inadaptados ao mundo.
Nós voltamos aos anos 70. Isso eu trouxe daquele momento cultural da minha juventude. O protagonista, ou anti-herói, é aquele que é desadaptado, que é desajustado do andamento normal da ocupação do tempo. Não foi à toa que me convidaram para escrever um livro sobre a preguiça (Canoas e marolas, coleção Plenos Pecados, Editora Objetiva). São personagens que estão sempre acuados por não poderem exercer a sua necessidade de contemplação. Eu sempre fui muito contemplativo e acho que é isso trouxe a questão da solidão à tona. Como se a companhia humana fosse preencher todo o tempo. E a poesia é um pouco a exaltação de não utilizar isso, ou então — aquilo que eu acho belíssimo como definição de poesia — é a consagração do instante, a atualização do instante, é não ter fluxo automatizado, mecanizado…

• Você falou das suas indisposição com as religiões, mas, ao mesmo tempo, tem uma visão religiosa…
Eu estava discutindo as religiões organizadas. Na minha cidade, eu fui um sujeito coroinha, muito ligado à vida angelical. E isso, hoje, para mim é uma coisa absolutamente desagradável. Essa coisa de mediação, de um padre de um pastor fazer a mediação entre mim e algo que é maior do que eu. Hoje eu sou um “ateu místico”. A sede eu tenho, mas não consigo concluir que é possível você ter um laço com aquilo que ultrapassa. Mas, ao mesmo tempo, procuro levar esses ritos para a literatura. Eu procuro fazer um romance ritualístico. Acho que sobretudo A céu aberto é um romance ritualístico, é um romance celebratório, que exerce um pouco a função da poesia em prosa. Mas há um tempo em que os personagens não suportam mais dar conta do que está se passando. E há um momento de elevação ou de abismo, mas onde a história fica um pouco à espera. Ou então que haja uma ação, mas não uma ação causal. Eu gosto da ação, sim, mas uma ação descabelada, aleatória, onde o acaso possa romper como na vida. Porque realmente o que eu faço não é “comentação”. Eu trabalho com o acaso, com os desvios de moda, com a vontade de deixar de contar aquilo que eu estou contando e partir para outra. E eu acho, sim, que a ficção no seu modo mais canônico é aquele trabalho que pega os elementos mais significativos de cada ação. O que eu estou fazendo é uma tendência bastante atual de narrativa, essa narrativa não causal, essa narrativa não normativa. A questão não normativa é que interessa à nossa estética, à nova percepção do mundo religiosa. Rito, sim, mas não alguém querer impor uma norma. Então que faça isso em uma obra de arte, naquilo que é mais pessoal, numa subjetivação mais nevrálgica. Eu acho que existe realmente uma fusão da arte de peso. Uma delas, pelo menos, é a negação da normatividade. Nós estamos intoxicados pela normatividade. Todo mundo sabe o melhor caminho para todo mundo, mas eu acho que a arte e a literatura têm que desestabilizar. Porque eu acho que é uma tendência muito grande haver na literatura algo pedagógico. A ficção para mim, a poesia, a arte de um modo geral é uma geradora de um mal-estar, de colocar realmente nossas certezas com outras possibilidades. Eu acho muito interessante lidar com as incertezas, as instabilidades, as indeterminações.

• Sua literatura trabalha uma visão muito nova da subjetividade, que na verdade está voltada para o real…
Eu costumo dizer que eu não sou um escritor intimista. É por isso, inclusive, que eu não coloco nome nos meus protagonistas, para não ficar psicologista demais, para não ficar muito miúda a coisa e entrar num pensamento causal. Tanto que a primeira frase de um livro meu chamado A fúria do corpo é “Meu nome não, não tenho passado, não me pergunte sobre o que eu poderia ter feito lá atrás, vamos partir de agora, de um certo tempo…” Também não penso muito no rosto de meus personagens. O Hotel Atlântico vai ser filmado pela Suzana Amaral — que fez A hora da estrela. Eu fiquei apaixonado com a escolha que ela fez para o meu protagonista: é o Paulo Miklos, do Titãs. É aquela coisa brusca… É nessa medida que eu acho que tem um pouco de misto. Eu acho isso muito interessante. Claro, eu acabei de fazer um livro com uma história de amor bem-sucedida. Está no tempo, eu acho. Não tanto nos romances, porque o romance moderno é um romance do expatriado. É aquela coisa do Kafka, do marxista. É o herói que se rebela contra o social, mas é uma luta alienada porque é solitária.

• Qual sua relação com a literatura de Kafka?
Kafka tem uma linguagem dele. É uma língua em que até o absurdo tem um certo registro burocrático. Mas uma coisa que eu faço, que eu acho que está muito próximo com o universo de kafkiano, é uma certa paranóia, uma certa idéia de conspiração. Os personagens são transeuntes, são ambulantes, porque eles estão fugindo de si. Nesse sentido, eu acho Kafka insuperável. Eu acho que esse aspecto é de uma contemporaneidade. Kafka é muito mais contemporâneo de nós do que os contemporâneos. O cidadão hoje é completamente controlado, filmado a todo o momento, como isso não vai incentivar a paranóia? Então, meus personagens são paranóicos. Essa fuga dos personagens é uma fuga paranóica, eles são zangados. Há vários momentos em que o olhar do outro é um olhar de agressividade, é uma invasão, é uma violentação. Então, nesse sentido, eu acho que há muito de semelhante entre o Kafka e aquilo que eu tento piedosamente colocar no livro. Eu estou atualmente aderindo a alguma coisa muito próxima estilisticamente. Digamos assim, a primeira fase de Caetano Veloso, independentemente do fator da sexualidade dele. Eu acho que esse meu livro atual vai a uma linguagem, a um setor urbano, um setor homossexual urbano. Eu acho que realmente o adjetivo é uma coisa da estética gay. Tem até um estudo de um americano em Nova York, sobre a estética gay de Caetano Veloso. Embora eu tenha obedecido à estética mais machista sem enfeite, sem adorno, nesse meu trabalho mais recente, é um livro mais ligado ao próprio relato, sem grandes especulações poéticas. Mas este livro eu chamaria de um livro gay.

• E é um retorno ao seu início.
Porque eu sempre fiquei pensando assim: por que se diz tanto que algo é bom quando é substantivo? O adjetivo é visto como uma maldição. Eu não concordo com isso. Nós vivemos em um momento em que a substância — ou substantivo — está difícil de ser apreendida. É um momento intervalar entre os conceitos absolutos. São coisas de machão mesmo, de não querer colocar nenhum adereço. O que deu beleza, também. Não tem autor brasileiro que eu goste tanto quanto Graciliano Ramos. Ele é um autor macho, não quer saber de muita firula, não. Eu comecei a questionar isso, teve um momento da minha trajetória ficcional que eu achei que era isso. Daí, em Hotel Atlântico, eu tirei qualquer adereço. Agora, nesse meu novo livro não tenho mais medo de adjetivo. Às vezes, o adjetivo é a única forma de você mostrar sua percepção do real. Você não está dentro da substância, tem que colocar certos atributos, você tem que celebrar às vezes os atributos da coisa.

• É daí que vem essa atmosfera um pouco lírica dos seus relatos, essa coisa da imprecisão do sonho?
É possível. E para cortar um pouco essa coisa de casualidade, porque os personagens são muito amnésicos, esse também é amnésico. Eu usei uma epígrafe muito bonita de um jovem poeta de Porto Alegre, que está se revelando como um belíssimo poeta, que é o Fabrício Carpinejar. É maravilhoso. Não sei se eu vou me lembrar, mas é mais ou menos assim “Ainda que me esqueça legarei memória” e isso tem muito a ver com o meu livro.

• A “coagulação das almas”, em Canoas e marolas, é a mesma coisa que a coagulação do instante?
Acho que sim. O tempo da poesia não é um tempo utilitário, é um tempo que não vai te dar nenhum resultado prático. Eu acho que a poesia está muito ligada à contemplação. Esses personagens se sentem acuados pelo tempo. O tempo teria que ser mais paciente com a necessidade que eles têm de olhar. Mas o pensamento… Para que pensar então? Evidentemente, quando eu digo uma coisa dessa, você pode se aproximar da morte, que é a falta de movimento, mas não é bem isso que eu estou querendo procurar. É aquele tempo deleitoso, em que você possa estar observando e ao mesmo tempo co-produzindo internamente com as coisas que você observa. Tem essa mediação um pouco compulsiva com a linguagem, inclusive a comunicação é uma coisa muito funcional, muito utilitária, muito instrumental…

• Até que ponto o narrador de seus livros atua com os demais personagens e até que ponto ele é espectador?
Eu não me programo muito para criar essas situações com os personagens, mas eu estou muito ocupado com o papel deles. Tanto que em dois livros meus, o Hotel Atlântico e Armada, têm como protagonista um ator. Mas ator como sujeito que exercita a dimensão utópica, de fazer exercícios desejantes na medida em que eu possa ser um outro que eu não sou. Então, o ator assume o papel nessa medida. Que coisa boa! Ser outro que não ele próprio! Agora, eu acho que isso o escritor também pode sentir, quando escreve seus livros. Meus personagens têm muito de mim, não biograficamente. Então, eu me sinto um pouco me travestindo com os personagens, no sentido de usar um figurino.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho