Dois mil e vinte está sendo um ano difícil para o mundo todo, com a pior crise epidêmica dos últimos 100 anos. A poeta e escritora Marina Colasanti, claro, também está impactada pela devastação que o novo coronavírus tem provocado no planeta. Ainda mais porque sempre transitou com desenvoltura por todos os continentes. “Cidadã do mundo é como me sinto”, diz a escritora que nasceu na Eritreia (África), em 1937.
No entanto, da literatura vem o alento para a autora. Ela acaba de lançar uma nova coletânea de poemas, Mais longa vida, cujo título remete ao poema que inaugura o livro, dedicado às lembranças que tem do avô. Espécie de livro-testamento, a obra quase toda relembra momentos da vida de Colasanti. Os dois primeiros segmentos (de um total de cinco) são os mais fortes. Eles contêm versos que tratam com lirismo de temas delicados (a morte é um deles) e lembranças nem sempre agradáveis.
É quando o leitor se dá conta da elegância do texto. Aos 82 anos, Colasanti se vale de sua enorme experiência, literária e de vida, para construir um livro que já se tornou um marco em sua carreira, lançado exatamente dez anos após ter saído seu último trabalho na poesia, Passageira em trânsito. “Escrevi o conjunto ao longo de oito anos. Poesia é sempre paralela ao resto da minha produção e, mais que tudo, exige longa decantação.”
Neste ano, Colasanti também comemora os 50 anos da publicação de seu livro de estreia, Eu sozinha. De difícil classificação, a obra que deu início a uma das carreiras mais importantes da literatura brasileira na segunda metade do século 20 ficou marcada também pela recusa de Rubem Braga, então editor de literatura nos anos 1960. “Percebi que Rubem não havia entendido a proposta”, relembra. “E não acatei nenhum dos conselhos que o mestre da crônica me deu. A desmontar o meu projeto, preferi esperar com ele na gaveta. Fui paciente porque confiava no meu produto, e tive que esperar quase cinco anos.”
O “instinto” da escritora não a traiu. A partir da publicação de Eu sozinha, construiu uma carreira marcada pela diversidade de gêneros, indo da prosa à poesia, passando pelos contos de fadas, ensaio e literatura infantojuvenil. São mais de 60 livros e diversos prêmios, entre eles algumas honrarias internacionais e uma coleção de Jubutis. Sobre essa aventura literária e mundana, Colasanti fala a seguir ao Rascunho.
• O primeiro bloco de poemas de Mais longa vida, traz versos sobre sua infância e sua família. O restante do livro também revela poemas muito particulares sobre sua trajetória. O que a moveu a escrever esse conjunto de textos neste momento?
O conjunto não foi escrito “neste momento”. O livro estava com a editora há três anos, e meu último livro de poesia é de 2009. Portanto, escrevi o conjunto ao longo de oito anos. Poesia é sempre paralela ao resto da minha produção e, mais que tudo, exige longa decantação.
• O que mais gosta de lembrar de sua infância? São, em sua maioria, boas essas lembranças?
Minha infância foi muito picotada. Pela mudança da África, pela guerra e pós-guerra, pela vinda ao Brasil. Mas a infância funda a vida do ser humano, período de maior aprendizado e de inserção na vida social. Da minha infância, o que mais me vêm à memória é a cumplicidade com meu irmão Arduino e a epifania leitora. Não escolho o que lembrar, as lembranças afloram à mínima provocação do presente. E, sim, a maioria das lembranças é boa.
• Já na segunda parte do livro, Soprar as brasas, é o sentimento de finitude que se sobrepõe. Um dos poemas diz: “Tão passageira a vida/ e é só o que temos./ E a tudo que nela cabe damos importância”. De alguma forma esses versos sintetizam o livro?
Espero que a síntese desse livro seja dada por uma fusão do todo. Não por acaso terminei com os poemas de amor e delicadeza. Mas é evidente que aos 82 anos a finitude se torna bem mais que uma possibilidade.
• Esse livro ganhou um sentido diferente para você agora, por conta do momento trágico que o mundo vive, com a pior pandemia dos últimos 100 anos?
De modo algum. O presente pode, e deve, alterar o futuro, mas, sobretudo para um autor, não altera o sentido do passado. O leitor, sim, pode ler um livro sob a influência do momento.
• Há dez anos você lançou uma elogiada autobiografia, chamada Minha guerra alheia. Como esse livro dialoga com Mais longa vida?
Na obra de um autor, mesmo um autor diferenciado como eu, tudo deveria dialogar com tudo. Assim gostaria que fosse lido o meu trabalho apesar da alternância de gêneros, cada livro um elo da longa corrente. Não estou lidando com diferenças, estou regendo e tocando cada um dos instrumentos de uma orquestra de câmara em busca de um único som.
• Você é uma espécie de “cidadã do mundo”. A começar pela sua infância, passada no exterior, sua vida se deu entre muitas idas e vindas. Essas experiências, pelo menos as mais recentes, estão também em Mais longa vida. Como esses deslocamentos lhe ajudaram como escritora?
Não sou apenas uma espécie. Cidadã do mundo é como me sinto. Não pela familiaridade com qualquer cidade ou país, longe disso. Mas pelo motivo oposto: em todo lugar sou estrangeira, e em todo lugar me adapto. Nascida na Eritreia, nunca fui plenamente africana, quando vou à Itália os locais farejam alguma estranheza e já não me consideram dos seus, nunca fui totalmente brasileira. Pode ser que este esforço de adaptação, essa necessidade de apreender o outro, tenha me ajudado na escrita. Mas não tenho nenhuma certeza disso. A única certeza que tenho é de que a leitura de tantos autores do mundo, de tantas realidades distintas, abriu meu olhar para a diferença.
• O que chama a atenção em Mais longa vida é a naturalidade e maturidade com que trata questões íntimas e até dolorosas. O poeta precisa assumir a “fase” em que se encontra da vida?
O poeta precisa se assumir. E assumir a vida. Se a poesia não é reflexão sobre a vida, ou seja, se não é filosofia, não é nada.
• As artes visuais continuam sendo uma influência para você? Que relação mantém com a pintura hoje?
Serão sempre uma influência e, mais que isso, uma paixão. Pertenço a uma família ligada à arte — como está no primeiro poema que dá nome ao livro — e cresci num país que detém um terço das obras de arte do mundo. Há muitos anos deixei de pintar, mas nunca deixei de olhar, buscar, frequentar museus, me encantar (ou não!). Todos os meus livros de poesia têm poemas dedicados seja a um pintor, seja a um quadro específico. É minha maneira de retribuir o tanto que recebi desde a infância.
• Você é uma escritora bastante completa, que produziu poemas, contos e histórias infantojuvenis. Além de ser também ilustradora de muitos de seus livros. Como administrou esses gêneros em sua cabeça? Alguma vez já se “enganou”, achando que uma ideia funcionaria em um gênero e teve que voltar atrás, partir para outro formato?
Nunca! Não trabalho com ideias, trabalho com projetos. Cada livro é um projeto-livro, centrado em seu gênero e em seu próprio eixo. Enquanto trabalho em um livro estou focada exclusivamente nele, leve o tempo que levar. Não aparecem ideias fora do link. Só a poesia vai fazendo seu caminho em trilho paralelo.
• Você trabalhou durante muitos anos na imprensa. Esse período lhe ajudou como escritora? Como acha que vai ser o futuro breve dos jornais e revistas?
Trabalhei muitos anos na imprensa e trabalhei muitos anos como redatora de publicidade. Tudo me ajudou. Me ensinou a buscar o essencial e a dispensar frufrus, me ensinou a economia de adjetivos, me ensinou a reduzir o texto e a escrever com parcimônia de monge trapista. Minha escrita não seria o que é se eu não tivesse passado por esses aprendizados. Quanto ao futuro, não sabemos o que, exatamente, vai acontecer. Temos projeções, mas uma invariante — como a Covid-19 — pode alterá-las. A morte dos grandes jornais já foi decretada. Prefiro crer, porém, que sempre haverá espaço para pequenas revistas especializadas.
• O que pensa sobre a participação de escritores de ficção e poetas nos debates sobre temas importantes do Brasil? Acha que eles têm “voz”, conseguem ser ouvidos pelo grande público?
Os escritores e poetas deveriam ser, antes de tudo, intelectuais. E como tais serem chamados a debaterem temas importantes do Brasil. Assim foi no passado, e assim continua sendo em muitos países. Nosso problema é que o grande público brasileiro não tem formação suficiente para “ouvir” vozes inteligentes, dialogar com elas, e assimilar o que dizem. A educação precária ou inexistente leva a maioria ao voto equivocado e a cair na rede de líderes religiosos inescrupulosos ou nas malhas de fake news da internet.
• Seu livro de estreia, Eu sozinha, completou 50 anos de publicação neste ano. Recentemente a obra foi reeditada. Acredito que a leu novamente. É um livro de contos bastante diferente… Como vê esses textos hoje? Gosta deles ainda?
Não é um livro de contos. É uma reflexão sobre solidão, que avança em dois planos narrativos paralelos: os capítulos pares são flashes de solidão no presente, e os ímpares são momentos de solidão que avançam cronologicamente a partir da África, onde nasci. Minha intenção era mostrar que a solidão é nossa mais constante companheira e que, apesar dos afetos, nos acompanha desde o início. É uma espécie de ensaio narrativo. Se não gostasse mais do livro não teria permitido a sua reedição. Mas acho que continua me representando.
• O livro tem uma história curiosa: foi recusado por Rubem Braga, que aparentemente não entendeu a proposta do livro. Essa recusa, à época, fez alguma diferença para você, em relação às suas convicções como autora estreante?
Nenhuma. Percebi que Rubem não havia entendido a proposta — certamente eu havia sido demasiado sutil — e não acatei nenhum dos conselhos que o mestre da crônica me deu. A desmontar o meu projeto, preferi esperar com ele na gaveta. Fui paciente porque confiava no meu produto, e tive que esperar quase cinco anos.
• Olhando em retrospecto, o que você imaginava para sua carreira de escritora quando começou foi alcançado? Aliás, o que você esperava da literatura quando escreveu seu primeiro livro?
Não esperava sucesso retumbante, tapetes vermelhos, listas dos mais vendidos. Não era e não é do meu feitio. É provável que tenha desejado alguma menção da crítica. Mas ao escrever meu primeiro livro estava mudando de profissão, deixava o ateliê de gravura em metal pela máquina de escrever. E desejei que a nova profissão me fosse tão acolhedora e prazerosa quanto a que havia abandonado por ela. Isso, alcancei.
• Se tivesse que descrever em uma frase do que se trata sua obra, o que diria?
Através de símbolos e metáforas busco dizer aquilo que ignoramos.
• Você e o poeta Affonso Romano de Sant’Anna estão casados há quase meio século. O quanto há dele em sua obra e quanto há de você na obra dele? Como se deu essa influência mútua?
Fizemos quatro livros juntos: O imaginário a dois, com textos de ambos; um livro sobre o desenhista francês Erté, escrito por Roland Barthes, de que eu fui a tradutora e Affonso consultor técnico; Agosto 91, estávamos em Moscou, com nossas crônicas sobre a tentativa de golpe enviadas de Moscou; e Com Clarice, com textos de ambos sobre Clarice Lispector. Sempre fomos o primeiro leitor um do outro, com absoluto respeito às opiniões. E cada livro foi sendo comentado, discutido, estruturado em intermináveis conversas à medida que ia nascendo. Mas Affonso e eu tínhamos formação quase oposta. Ele criado até a juventude em Juiz de Fora, eu multinacional. Ele centrado desde sempre na poesia brasileira, participando de movimentos literários, poeta já na adolescência. Eu só cheguei à poesia brasileira na tardia adolescência, antes disso lia poesia italiana, francesa e os grandes poetas chineses, nunca participei de movimentos poéticos, e só me atrevi à poesia na maturidade. Affonso, protestante, tem uma grandeza bíblica em sua poesia. Eu olho para o pequeno, como forma de alcançar o grande. Affonso é patriótico. Minha pátria não tem fronteiras. Affonso, poeta da linha de frente e ensaísta acadêmico brilhante, nunca foi ficcionista. Eu trabalho com ficção e meus ensaios passam longe da área acadêmica. Acho que a influência se deu mais no plano das ideias, o que é extremamente positivo para um casal de escritores. E no plano da cumplicidade, nas leituras compartilhadas, na fusão proporcionada por tantos anos de amor.