O editor Pedro Paulo de Sena Madureira pode ser identificado em uma caricatura pelo charuto. O ficcionista Deonísio da Silva, 55 anos, logo é percebido pelos suspensórios coloridos, que ficam ainda mais coloridos com a camisa branca ou clara. Ele não utiliza o artefato como cinto. É como trocar os aros dos óculos. Utiliza como uma encadernação do próprio riso. Há um ar maroto em seu perfil, uma malandragem emoldurada pela boca descaradamente risonha. Do que ele tanto ri?, os curiosos são capazes de perguntar. Nem de si, muito menos de ninguém. Ele ri quando encontra a palavra certa para definir o que deseja. Desejar é melhor do que pensar. A palavra é uma espécie de dente do seu riso. Um dente que faltava. Um dente necessário para mastigar a realidade. Seu estilo narrativo é jocoso, intelectualmente irônico, procurando nos fatos históricos, como Guerra do Paraguai ou a vida de Teresa de Ávila, uma brecha de fantasia para empregar seus personagens. Os protagonistas acabam sendo mais verdadeiros do que a História. Seus romances funcionam como uma conversa de negócios em horário de almoço. Enquanto o leitor não sabe se come ou fala ou se come e escuta, Deonísio fala e come com a naturalidade festiva de família italiana. Solta lembranças, engarrafa etimologia, expõe contradições, articula frases de efeito, pouco se preocupando com o guardanapo.
Enquanto finaliza sua nova ficção Goethe e Barrabás, o autor comemora trinta anos de contos (1974-2004), desde o Estudo sobre a carne humana, e vai publicar ainda neste primeiro semestre uma reunião de suas narrativas breves pela editora Girafa, selo conduzido por Pedro Paulo de Sena Madureira e seu inseparável charuto. Natural de Santa Catarina, com passagens em Porto Alegre (RS) e morando em São Carlos (SP), sua origem é disputada por três estados. Seu romance Avante, soldados: para trás (1992) recebeu o Prêmio Internacional de Literatura Casa de las Américas, em júri presidido pelo Nobel José Saramago. Teresa, premiado pela Biblioteca Nacional, foi escolhido como um dos dez melhores dos últimos 20 anos no Brasil pela revista americana World Literature Today. Sua obra está traduzida para espanhol, inglês, francês, alemão e sueco e já foi adaptada para televisão e cinema. Um exemplo cênico é Relatório Confidencial, dirigido por Antunes Filho.
Doutor em Literatura pela USP, professor aposentado, Deonísio é polêmico e engajado na boa literatura. Talvez porque consegue falar e assobiar ao mesmo tempo, mastigar e ouvir, em um país onde o talento é crime sem fiança.
“O sofrimento sai na urina”
O senhor não se interessa em contar a história pelo lado mais forte, mas sempre pelo lado que ainda não é história. Assim acontece com Guerreiros do campo, por exemplo, uma parábola sobre o movimento dos sem-terra. No romance Avante soldados: para trás, volta os olhos para a Guerra do Paraguai. Essa é uma influência de sua origem e vivência no Brasil Meridional? A ficção seria a infância da história?
É por isso que eu sou leitor de poesia. Nós, da prosa, somos prosaicos. Vocês, poetas, dizem um verso e ele faísca na escuridão, iluminando tudo, como ocorre para a Marilena Chauí quando o presidente Lula fala. Sim, que boa definição esta de que a ficção é a infância da História. Nós fazemos a Outra História. Ou as Outras Histórias. Nossas narrativas dão vez e voz a personagens que existiram e não tiveram suas existências reconhecidas. E dão outras vezes (ou chances) e vozes a personagens que disseram e fizeram outras coisas nos livros de História. Não estou usando um “nós” majestático. É que não estou sozinho na empreitada. “Somos poucos”, é verdade, como foi resumido num verso genial do Carlos Nejar, que deu título a um livro dele que muito aprecio, mas não estamos sozinhos. Eu sou agradecido ao Senhor por ser filho do Brasil meridional, um “terrum” que deixa claro desde o berço o verso imortal do Gonçalves Dias: “viver é lutar”. Escrever também. Mas como não se ganha guerra nenhuma sozinho, precisamos de mais parceiros. Outros escritores e leitores são nossos aliados. Em Guerreiros do campo e no Avante, soldados: para trás, o que mais busquei, não sei se consegui, foi mostrar como a condição humana é cheia de sutis complexidades, das quais apenas a literatura pode dar conta. O amor não pode ser interrompido. Ele é vivido no meio da Guerra do Paraguai ou no contexto dos sem-terra. Mas não pode ser prorrogado. Não se pode programar a vida assim: primeiro, a guerra; primeiro, a luta. Depois, o amor. Não! O amor floresce sempre. E ainda bem. E fiz com que no Avante… o comandante Camisão e o Visconde de Taunay dissessem mais coisas, fizessem outras, diferentes daquelas que a História registrou. Em resumo, inventei. Do contrário, meus romances seriam chatos, repetitivos. Nos Guerreiros do campo, abro o romance com São Pedro fazendo um cadastramento na porta do céu para separar os mortos que ali chegaram, diferenciando mortos brasileiros de mortos suíços, por exemplo.
• Está publicando pela Girafa a reunião de seus contos. São trinta anos de narrativas curtas, de 1974 a 2004. Percebo que combina um estilo mais clássico, esmerado, com um humor ferino, picaresco. O riso é uma das principais armas de sua literatura? Ele fica mais ácido em uma linguagem aparentemente séria?
Ridendo castigat mores, não é? Faz séculos que rir é bom remédio, que o riso é catártico, que o riso purga, que o riso nos ajuda a entender o quanto somos ridículos. Millôr Fernandes, Luis Fernando Verissimo e Barão de Itararé, entre outros, têm nos educado pelo riso. Mas não somos ridículos sempre. Ao contrário. Há momentos em que a Humanidade se eleva aos céus; outros em que chafurda nas mais infectas pocilgas, como no caso do nazismo e no caso de todas as guerras. Sei que o humor está presente na maioria de meus textos, mas não fiz força para isso, não. Aqueles que convivem comigo sabem que não posso ser definido propriamente como um ser entristecido, acabrunhado. Disse e repito: o sofrimento que saia na urina. O que não sai na grossa, que saia na fina. Há mais motivos para alegrias do que para lamentações. Mesmo porque uma boa alternativa de resistir e lutar é acreditar na vitória.
• O romance Teresa foi escolhido como um dos dez melhores dos últimos 20 anos no Brasil pela revista americana World Literature Today, junto de A grande arte, de Rubem Fonseca. Como o senhor reage a essa ascensão de ficar ao lado de Fonseca, um dos seus primeiros incentivadores, que o ajudou a publicar Exposição de motivos (1976), Prêmio Brasília?
Rubem Fonseca foi muito importante nos meus primeiros passos. Tenho, porém, tomado cautelas para não ficar proclamando isso, porque o Rubem, generoso como é, não gosta entretanto de proclamar ajudas que deu. Evito, porém, ser como os nove leprosos. Jesus curou dez e apenas um voltou para agradecer. A taxa de ingratidão é muito alta. Naquele momento específico, se não fosse a ajuda providencial de Rubem, eu teria continuado inédito por muito mais tempo. E ele me ajudou quando eu estava condenado a dois anos de prisão, me apresentando periodicamente sob sursis, cumprindo a pena pelo primeiro conto que eu publicara na imprensa. Quanto aos prêmios, chamaram a atenção para meus livros, muito mais do que a condenação. Talvez por causa de meu temperamento, mais voltado a celebrar o que deu certo do que a lamentar o que deu errado.
• Conviveu com Guilhermino César no Rio Grande do Sul. Ele foi uma espécie de guia. Sua obra poética nunca mereceu grande consideração de crítica. Representa o típico caso do professor maior que seu poema ou é verdadeiramente descaso?
O meu querido professor Guilhermino César da Silva era, mais que gênio, oxigênio. Tinha excessiva modéstia e isto o prejudicou muito, como reconheceram, entre outros, Antonio Candido e José Mindlin. Um dia eu conversava com o jurista Modesto Carvalhosa na fazenda dele e ele de repente me disse: “você não acha que a universidade é um centro de pequenas perversidades?”. A minha querida USP, onde fiz doutorado, foi muito ingrata com o Modesto Carvalhosa. E com várias outras pessoas igualmente talentosas. Flávio Loureiro Chaves, o mais brilhante aluno que Guilhermino teve, deixou a UFRGS numa amargura muito grande. Aquilo tudo aconteceu porque Guilhermino não estava mais lá. Você precisa ver o carinho do Guilhermino, a defesa que ele fez de mim quando na UFRGS as forças do atraso quiseram impedir que eu fizesse minha tese sobre o livro proibido de Rubem Fonseca. O talento incomoda, o talento tem força própria. O talento é como o mocinho no faroeste: ele sempre vence no fim. Mas é no fim que ele vence. O percurso é dramático, doloroso. E Guilhermino esbanjava talento na poesia, na prosa, no ensaio, nas aulas. Era, por isso, para algumas instâncias de reconhecimento literário, insuportável. Mas que poder podiam ter elas diante de seus livros ou de um título de doutor honoris causa que ele recebeu da Universidade de Coimbra? E que influência poderiam ter sobre o apreço e a admiração que seus alunos lhe dedicavam? Nós, alunos, como faz todo aluno, podíamos comparar seus textos e suas aulas com as de seus críticos e tudo ficava esclarecido.
• Em seus contos, privilegia a espontaneidade auditiva, o gosto de falar sem complicar, de armazenar a rua no texto. Essa virtude ficou acentuada com o estudo de verbetes De onde vieram as palavras e da seleção de máximas A vida íntima das frases? De que modo o estudo da etimologia permite a abertura cada vez maior de sua ficção?
Estava tomando vinho em Bento Gonçalves. O Luís Vítor Strauss, já falecido, por indicação de Geraldo Galvão Ferraz me ligou no meio da noite e me pediu que apresentasse uma opção para a coluna de Etimologia da revista Caras que ia ser lançada no Brasil. Eram 23 horas, acho. “Quanto tempo eu tenho?”, perguntei. “A coluna estando aqui amanhã, às 9 horas, está bem”, ele me disse. Acho que era outubro de 1993. No outro dia, depois de ter lido em algumas horas algumas colunas da Caras argentina que ele me passara por fax, minha coluna estava lá. Foi aceita e desde então escrevi mais de quinhentas. Como nem todos os verbetes podem sair na Caras e nem podem sair completos os que faço, venho publicando estes livros que você citou. Meus editores na Caras — Heloisa Fernandes, Nilson Marcon, Judith Patarra — sempre lamentaram os cortes que são obrigados a fazer por razões de espaço. Mas eu lhes sou agradecido pelos cortes: são jornalistas que me ensinam os prazos, os cortes, o texto enxuto. Como todo leitor que cai na rede é peixe, o sujeito lê a etimologia que faço e procura meus romances e contos. Acho que o inverso é menos provável. E as outras colunas eu faço porque amigos muito queridos me convidaram para escrever lá, como o Augusto Nunes no Jornal do Brasil, e o Alberto Dines, no Observatório da Imprensa. E eu escrevo também na eptv.com, onde uma mulher, a Mary Chirnev, faz das tripas coração para levar adiante aquele portal, que aliás, é muito bem editado.
• A literatura brasileira ainda é incipiente em política internacional, pouco agressiva, pouco confiante. O que precisa ser feito para vencer a timidez do escritor e a omissão do governo em divulgar a produção literária do país no exterior?
Profissionalismo. O sistema de igrejinhas, confrarias, pequenas máfias, quando for embora, já terá ido tarde. Nenhuma instância tem feito nada para diluir dois preconceitos de que é vítima a literatura brasileira. O primeiro é que a mídia internacional dá a impressão de que somos uma nação dividida entre bandidos violentos e impunes, de um lado; e de outro, que uma vez por ano esquecemos todas as nossas desgraças no carnaval. Lá fora quase todos os editores caíram nesta esparrela. E só querem saber de nossas letras quando espelham isso, senão não lhes interessa. Quando há incentivo oficial para traduções, poucas vezes os critérios de seleção têm sido respeitáveis.
• Em Teresa, afirma que “os anos que temos são aqueles que não temos”. O senhor chegou à idade onde o tempo não é posse, mas despojamento?
Brinco sempre que temos faixa etária e “faixa otária”. Faço parte da segunda por pertencer a uma geração que sofreu muito com a perda da liberdade. Mas com sinceridade te digo e sem rancor algum que é mais reconfortante enfrentar uma ditadura do que os pequenos poderosos incrustados nas instituições, que se dizem teus amigos, e chafurdam nas pocilgas para onde querem te arrastar também. Na ditadura, as coisas são mais claras. Eles, lá; nós, cá. O tempo nunca é posse. É sempre perda. Uma perda que começa ao nascer. O remédio é viver com paixão e acreditar que a melhor estação pode ser aquela aonde ainda não chegamos.
• O senhor valoriza o jornalismo, atua em vários veículos, tem experiência de décadas em sala de aula na Universidade de São Carlos, já foi jurado de inúmeros concursos, viu de tudo na literatura. Mas percebo que não abdicou da inocência (a ingenuidade foi embora, tudo bem). O que mais o apavora? Ainda se vive em oligarquias literárias? Os fatores extraliterários ainda sobrepujam os literários?
O que mais me apavora, não sei, mas me incomoda muito esta crise que se abateu sobre o Brasil e que já está durando demais. Perdemos, não uma, mas duas décadas. Na vida de qualquer pessoa, estas perdas são quase irreparáveis. Isto é muito, mas muito desolador. Fecharam as portas para os jovens. Proclamam que os jovens devem isso, devem aquilo, mas se não há emprego num país onde tudo está por fazer, que será de nossos jovens? Eu quero poder dizer como São Paulo que “combato o bom combate”. Em algumas comissões julgadoras de prêmios literários que integrei, sempre tive que arregimentar parceiros para enfrentar opiniões do tipo “este não podemos premiar porque não dá mídia”, “este também não porque é velho e já está muito gagá”, “este é muito jovem e muito metido a besta”, “este outro é muito chato” e outros “altos” juízos sem nenhum critério literário e principalmente sem nenhuma vergonha. Esses desacertos não acontecem apenas no terreno literário. Várias instituições, incluindo escolas e universidades, estão cheias de “concursos” em que a maracutaia triunfou. Jamais compactuei. Quando o trato justo e a conversa clara foram ameaçados, abandonei a comissão. Cúmplice é nome de perfume, pode ser cheirosinho, mas nesses casos é fedorento.
• Pode-se dizer que houve no Brasil uma literatura feita a partir da crise religiosa de ex-seminaristas (amparada pela independência social da igreja a partir da Teologia da Libertação) ou é forçar a barra? Como se deu a elaboração de A cidade dos padres e sua desvinculação com o seminário (ele também é tema do romance Teresa)?
Não, não é forçar a barra, não. É uma esplêndida via de acesso a um núcleo temático muito importante. No meu caso, deixei o seminário em companhia de colegas muito queridos, entre os quais o poeta Solange Rech, autor de vários livros muito bem escritos e um dos raros sonetistas do Brasil. Temos que lembrar também pessoas quase anônimas, que tiveram e têm importância fundamental na vida de escritores como eu e não querem saber de ser citados. O autor do melhor texto de nossa turma é advogado em Porto Alegre. Chama-se Wilson Volpato e até hoje não fez ficção. O José de Souza Patrício em algum momento da vida deixou a leitura de Horácio e Terêncio no original latino e foi fabricar massas em Florianópolis. O Jaime Sprícigo com o tempo ficou parecido com um abade e ainda hoje, com os mesmos cuidados que sempre tinha com a música, grava CDs com músicas que ninguém mais ouve, somente nós. Meus romances A cidade dos padres e Teresa nasceram em épocas em que por alguma razão que desconheço meu inconsciente voltou-se para temas que me foram inculcados por professores muito sérios, competentes e atenciosos, um dos quais ainda hoje comparece a meus textos e aos encontros da confraria de ex-seminaristas que fundamos há alguns anos: o padre Antônio Herdt, hoje vigário de Laguna, em Santa Catarina, com quem de vez em quando tomo um bom vinho.
• O que pode adiantar do romance que está elaborando, Goethe e Barrabás?
O tema nasceu, como ocorreu com outros romances, de conversas com Pedro Paulo de Sena Madureira, meu editor há mais de vinte anos! Barrabás sintetiza tropeços fatais do povo, que freqüentemente escolhe mal. Acho um horror esta obsessão dos políticos em proclamar que o povo está sempre certo. Não está, não! Às vezes, erra feio. Não apenas o povo, os indivíduos também, que erram em privado com muita freqüência. É da natureza humana esta oscilação entre o pecado e a virtude, entre a glória nas alturas e o chafurdamento nas pocilgas. O que posso adiantar é aquele trecho que o jornal O Estado de São Paulo publicou, em que Barrabás fica perplexo ao visitar uma granja e constatar que os frangos vêm a este mundo para viver apenas 75 dias. Depois são impiedosamente assassinados para nos alimentar. Mas meu romance quer ocupar-se do amor e da traição, da oscilação e das várias etapas entre a luz e as trevas. Goethe pediu mais luz ou mais ar ao morrer. Quanto a ligar Goethe e Barrabás, quem me lê sabe que aprecio muito estes deslocamentos doidos, um de meus recursos de invenção.