“Sou a fada das palavras”

Entrevista com Stella Maris Rezende, vencedora do Prêmio Jabuti 2012
Stella Maris Rezende, autora de “A poesia da primeira vez” Foto: Anna Claudia Ramos
01/12/2012

Como quem conta um causo entre um pão de queijo e outro, a escritora mineira Stella Maris Rezende já escreveu mais de 40 obras de literatura infantil e juvenil. Ela acaba de vencer o Prêmio Jabuti de Livro do Ano de Ficção, após ter sido duplamente premiada na categoria Juvenil, faturando o 1º lugar com o romance A mocinha do Mercado Central e o 2º lugar com A guardiã dos segredos de família. Nascida em 1950, na pequena Dores do Indaiá (MG), Stella é também professora, cantora, atriz, dramaturga e artista plástica. Uma contadora de histórias fascinada pelas palavras, como ela mesma se denomina, a mineira hoje reside no Rio de Janeiro, tendo morado também em Belo Horizonte e Brasília. Na capital federal, formou-se em Letras pela Universidade de Brasília (UnB), onde também fez mestrado em literatura brasileira. Sua primeira obra publicada é de1978, a peça teatral Corpo tenso voz passiva. Em 1987, seu romance Último dia de brincar é agraciado com o tradicional prêmio João-de-Barro de literatura infanto-juvenil, premiação que Stella venceria outras duas vezes. No final dos anos 1970, interpretou a Fada Estrelazul do programa Carrossel, da TV Manchete de Brasília, e a Tia Stella do programa Recreio, da TV Record/Brasília. A vocação da palavra foi descoberta ainda na infância, momento da vida que a autora considera inesquecível. “A infância é um tempo tão marcante e intenso que permanece dentro de nós, por mais que pensemos estar longe dele”, afirma a escritora, que nesta entrevista via e-mail conversou sobre seus romances mais recentes, projetos futuros e o segredo dos prosadores das Minas Gerais.

• É comum em seus livros uma personagem que tem o hábito da leitura introduzir a protagonista neste universo, quando esta mesma não desempenha esse papel. Com você também foi assim? Houve alguém em especial que te apresentou o mundo dos livros?
Nos meus novos livros, sim, mas isso não acontece amiúde nos outros. De uns tempos para cá, surgiram personagens envolvidas com a escrita e a leitura, não deliberadamente, porque não planejo nada. Os enredos vão se construindo aos poucos, em meio a imagens, frases soltas, lembranças, observações, escritos que lanço em caderninhos e moleskines. O mundo mágico das palavras me foi apresentado por minha mãe, grande contadeira de casos e histórias de assombração, narrativas que ela inventava, floreava, fazia com que ficassem ricas de detalhes, devido à memória extraordinária (que ela ainda tem aos 83 anos) e a uma entonação cativante. Houve o tio Joaquim, irmão da minha mãe, um magnífico declamador de poemas e contador de piadas deliciosas. Houve uma vizinha que contava histórias com muito bom humor e requinte de palavras incomuns e de bonita sonoridade, num ritmo envolvente. E meu pai, que cantava músicas lindas com sua voz afinadíssima, me levando a descobrir a musicalidade das palavras. Tudo isso me encantou na infância. Depois, vieram os professores, que foram fundamentais, porque logo descobriram minha vocação. Eu tinha oito anos quando uma professora, depois de ler minha composição (hoje se diz redação) de quase 20 páginas, disse: “Stellinha, você vai ser escritora”. A partir daí passei a freqüentar com mais afinco o lugar mais importante da escola, a biblioteca. Tanto no curso primário quanto no ginasial tive professores ótimos, leitores vorazes, que me estimularam a ler o que há de mais sofisticado na literatura brasileira e na estrangeira, me incentivando a escrever e reescrever, incansavelmente. Diziam que eu deveria exercitar as palavras e soltar a imaginação. Cursei Letras e mestrado em Literatura Brasileira na Universidade de Brasília (UnB), onde fui aluna de Cyro dos Anjos, o consagrado autor de O amanuense Belmiro, de estilo machadiano, que dava aulas consultando o dicionário a todo instante e isso me fascinava. Outros professores na UnB foram marcantes: Cassiano Nunes, Danilo Lobo e Aglaêda Facó Ventura. A gente já nasce com o gosto pela poesia e pela narrativa, mas para esse encantamento se manter vívido é preciso que se valorize cada vez mais o professor leitor de literatura. Nem sempre se tem a sorte de ouvir histórias em casa, devido aos inúmeros problemas que dilaceram as famílias, então a escola pode “salvar a pátria” em todos os sentidos. Bibliotecas dinâmicas, acolhedoras e instigantes e mais professores leitores de literatura são a fórmula mágica para que nunca se perca o gosto pela poesia e pela narrativa. Evidentemente, gostar de ler e escrever não garante que alguém se torne escritor de arte literária, mas terá mais chances de se tornar escritor de sua própria vida, com mais jogo de cintura para enfrentar dificuldades, mais bom humor, riqueza de símbolos e possibilidades, significações, capacidade de análise, raciocínio e discernimento, espírito crítico, afeto e dignidade.

• Em A guardiã dos segredos de família a tia e madrasta recebe a alcunha de bruxa. Mas Delminda é uma personagem complexa, longe do estereótipo habitual de vilã de livro infanto-juvenil. Você possui uma preocupação de não construir histórias calcadas no maniqueísmo?
Para mim, o mais importante é contar a história de um modo que surpreenda, rompa com a expectativa, fuja do lugar-comum. Preocupo-me em fazer literatura, trabalhar a linguagem, praticar a magia delirante das palavras e das entrelinhas. Costumo dizer que a literatura é a arte que fala por silêncios e cala por palavras. Trabalho com elipses, metáforas, imagens, mudanças de sentido, reviravoltas, mistérios da linguagem, mistérios da vida humana. Nada é exatamente como parece e isso me fascina. Tentar levar para os textos a complexidade da alma humana é um desafio do qual não abro mão. Na história, Delminda é chamada de bruxa pelas crianças, mas aos poucos o leitor vai conhecendo sua forte personalidade, seus segredos. Ela se torna mais interessante e a palavra “bruxa” passa a ter outros sentidos, menos rígidos e mais humanos.

Apesar de alguns toques de fantasia, de recursos mágicos aqui e ali, seus últimos livros primam por um realismo muito interessante. A mãe da protagonista de A mocinha do Mercado Central, por exemplo, foi violentada quando jovem. Isso não só é citado durante o livro como é enfrentado pela mãe e pela filha, fruto desse terrível ato. Por que essa opção pelo realismo?
Existe poesia no cotidiano, uma espécie de mágica do dia-a-dia, nos pequenos gestos, nas inesperadas decisões, nas minigâncias. Prezo muito a mistura do realismo com o sonho, porque na verdade é tudo uma coisa só. A vida é um entremeado de sonho e realidade. Conforme a circunstância ou o ponto de vista, o sonho é muito mais a nossa realidade do que o próprio cotidiano. Às vezes, a vida parece ir além da nossa imaginação. Estamos propensos a qualquer coisa enquanto estamos vivos, seja o sonho mais inusitado ou a realidade mais dura e triste. Criar personagens que vivam esse diálogo ou fusão entre realidade e sonho me dá angústia e alegria, duas características inerentes ao ofício artístico.

Ainda nesse livro, Maria se depara com uma frase de Otto Lara Resende que diz “Escrever é de amargar”. Você concorda com Otto? O que é escrever para você?
Otto Lara Resende é um dos meus cronistas e frasistas prediletos. Concordo com ele, “escrever é de amargar”, no sentido de que é um trabalho árduo, que exige dedicação intensa e observação constante. Escrever não tira férias. O escritor é uma pessoa que não pára de escrever, ainda que não esteja “escrevendo de fato”. A todo instante a vida pede atenção e olhar crítico, habilidade, paciência, cuidado, escrita e reescrita por meio de leituras incessantes. Pelo seu humor carregado de ironia, Otto Lara Resende certamente quis dizer também que escrever não dá dinheiro, não enriquece ninguém, no caso de o escritor optar pela alta qualidade literária.

Dores do Indaiá (MG) freqüentemente é o cenário de suas histórias. Qual sua relação com sua cidade natal, tendo morado muito tempo em Belo Horizonte, Brasília e, hoje, no Rio de Janeiro?
Desde menininha, sempre me senti fascinada pelas palavras e o nome “Dores do Indaiá” me soava sonoro e poético. Minha vó Chiquinha, mãe do meu pai, sempre morou nesta pequena cidade do centro-oeste de Minas, e quando eu a visitava gostava de observar cada detalhe de sua casa e de seu comportamento, em meio às histórias e brincadeiras com as palavras. Ela mudava o nome das coisas e das pessoas, apenas no intuito de brincar, e isso atiçava a minha imaginação. Para ela, a Avenida Afonso Pena em Belo Horizonte era a Avenida Sanfona Pena. Uma pequena mudança de letras e de sentido, uma porta singela para outros significados. Morei em Minas até os 12 anos de idade. Em Brasília, onde passei a maior parte da vida até agora, pois só me mudei para o Rio em 2007, ouvi todos os sotaques do Brasil, convivi com pessoas batalhadoras e cheias de esperança, em meio à poeira e ao desconforto de uma cidade nova. Vivi a maior parte do tempo em Taguatinga, cidade-satélite, só em 2003 me mudei para o Plano Piloto. A cidade de atmosfera futurística e arquitetura inovadora sempre terá uma importância muito grande em minha vida. Adoro morar no Rio, porque sempre quis morar perto do mar. No entanto, Minas continua em mim. Dores do Indaiá continua sendo o cenário recorrente. A infância é um tempo tão marcante e intenso que permanece dentro de nós, por mais que pensemos estar longe dele.

Em A sobrinha do poeta, o legado literário de mineiros como Drummond, Pedro Nava e Emílio Moura é um elemento fundamental da narrativa. O que há em Minas Gerais para produzir escritores tão prolíficos e diversos? Seria o “cafezim” com pão de queijo?
Há teorias sobre isso! Uma delas é a de que os mineiros vivem entre montanhas e sentem fascínio pelo mar distante. Talvez essa distância do mar somada aos segredos entre montanhas se transforme em rico instrumento de trabalho, quem sabe. Diz-se que viver ou escrever é sentir falta. Para mim, o cafezinho com pão de queijo influencia sim, ainda que pareça uma brincadeira. Prosear, enquanto se toma um cafezinho e se come um biscoito ou pão de queijo, ou uma fripinha de bolo de milho, ou uma pamonha quentinha com queijo derretendo dentro, é certeza de história boa, de casos ou indacas. Se isso vai virar literatura é outra história. Para a sorte dos mineiros, Minas tem de fato grandes escritores, de estilos variados.

A mocinha do Mercado Central continha uma pista que apontava para a trama de seu livro seguinte, A sobrinha do poeta. Você fez o mesmo com este último? O que esperar dos seus próximos trabalhos?
Em A sobrinha do poeta há uma pista para o próximo romance a ser lançado pela Globo Livros em junho de 2013, ainda com título indefinido, encerrando uma trilogia que tem como referências uma biblioteca e um narrador misterioso. Enquanto termino de revisar esse romance, já estou na página 134 de um novo texto, cujo cenário é o Rio de Janeiro dos dias atuais, mas com o meu olhar povoado de coisas antigas e inesquecíveis. Graciliano Ramos dizia que “nossas personagens são pedaços de nós mesmos”. O autor de Vidas secas é um dos meus escritores preferidos e prezo muito suas ponderações. De uma forma ou de outra, a visão de mundo do escritor está em suas personagens. Quanto ao futuro, pretendo continuar meu projeto estético iniciado há 33 anos, quando lancei meu primeiro livro de contos para adultos, Dentro das lamparinas. Já é uma longa caminhada. Já são 40 livros. A conquista do Prêmio Jabuti 2012 Melhor Livro Juvenil para A mocinha do Mercado Central, e para A guardiã dos segredos de família, me dá alegria e mais ânimo para continuar o projeto estético. O trabalho com a linguagem, o cuidado com a palavra, o respeito pela inteligência, o incentivo à imaginação e ao pensamento crítico me orientam e me desorientam, de modo transgressor e saudável. Afinal, escrever exige compromisso com a arte, sem concessões a modismos. Se “escrever é de amargar”, também é de encantar e emocionar. Tenho publicado vídeos no YouTube em que leio trechos dos meus livros e incentivo a leitura literária. Já interpretei a Fada Estrelazul num programa de TV em Brasília nas décadas de 1970 e 1980, quando contava histórias da literatura brasileira e da narrativa dos contos de fada, mas atualmente estou em vídeos no YouTube. Ou seja, sou antiga e sou moderna. Não tenho preconceito em relação às novas tecnologias. Uso a internet a favor da arte literária. Sou a Fada das Palavras.

Guilherme Magalhães

É jornalista.

Rascunho