Um dos mais produtivos poetas do Brasil é também um dos mais desconhecidos autores Brasil afora. Sérgio Rubens Sossélla, curitibano de 1942, vem escrevendo e publicando sistematicamente desde 1966. Hoje, conta com mais de 300 títulos, todos editados artesanalmente e com tiragem limitada. Para criar uma entrada para a produção do autor, a Imprensa Oficial do Paraná lançou no início deste ano uma antologia A Linguagem Prometida, organizada pelo crítico literário Miguel Sanches Neto e pelo jornalista Marcio Renato dos Santos. Por sinal, este foi um dos títulos mais procurados no estande do Paraná na X Bienal do Livro, que aconteceu de 17 a 27 de maio, no Rio de Janeiro. Sossélla vive recluso em Paranavaí, interior do Paraná, desde que se aposentou do judiciário, alegando sentir náusea. Vive exclusivamente para a poesia. Em meados da década de 80, ele concedeu uma entrevista a Cesar Bond, que os leitores do Rascunho conferem com exclusividade:
• Você que é tão exigente, com paixão e cuidado com as palavras, como é que você cria? Como é que você lapida isso?
Por incrível que pareça 70% dos meus poemas nascem prontos. Tenho um insight, e a coisa me vem pronta, fruto de sonhos ou de transes. Me vem pronto no sentido de que eu tenho o fundo deles, eu tenho o esqueleto desses poemas. Então, eu simplesmente carnalizo a coisa toda. Aí vem o ato da leitura, porque eu datilografo os meus poemas, faço uma segunda leitura e dou um banho de gaveta. Ficam às vezes um ano, dois anos os poemas na gaveta. Quando eu vou fazer a releitura desse material poético, eu enxugo, burilo, substituo um verbo por outro, procuro sintetizar ao máximo. Minha meta poética é a busca da síntese. Quanto menor o número de palavras e maior a expressão, melhor pra mim.
• Você chega a se surpreender ao abrir a gaveta e se deparar com o que está escrito?
É, às vezes os meus poemas parecem seres estranhos que eu fechei na gaveta. Quando abro essa gaveta me dou conta de que estou a partir daí convivendo com essas criaturas.
• Por que você acha interessante mantê-los na gaveta? É para manter uma distância?
Em parte sim. Existe um segundo aspecto disso aí. A impossibilidade de eu publicar esse material, à medida que eu os confecciono. Eu tenho atualmente cerca de 500 poemas prontos e não posso publicar esse material todo. Eles vão ficando. Eu abro pastas, vou separando por assunto poético. E eles estão lá, e estando lá eu me preocupo; eu me preocupo e não me preocupo com a publicação deles. Eu tenho também uma outra meta, a de fazer a publicação mínima de dez livros por ano. Como tenho feito. Mas, paradoxalmente, eu não apresso a publicação de livro nenhum, para não prejudicar a releitura desse material que me vem quase pronto.
• Não te interessa entregar esses 500 poemas inéditos a um editor?
Sim, em parte, em parte sim. Eu tenho por exemplo alguns livros entregues para editoras, porque foram compostos em prazo menor do que um ou dois anos de banho de gaveta. Se a editora resolve publicá-los, melhor pra mim. Enfim, esse material todo, se eu entregasse hoje os 500 poemas pra um editor tenho a vaga impressão de que eu não me arrependeria mais tarde, ao ver os poemas publicados. Faço essa experiência através de jornais. De quando em quando eu encaminho para os jornais um lote de poemas inéditos. É uma segunda experiência essa, de poemas engavetados que eu tirei da gaveta para publicar em jornal. Faço uma nova apreciação disso.
• Mas isso não impede que, uma vez publicado, faça parte de um conjunto.
Sim, às vezes ele faz parte, em outras vezes ele não faz parte como está. Na verdade são raros os poemas que eu….inutilizo. Se eu escrevo, ele fica. Mas, recentemente eu rasguei três poemas. Foi um assombro pra mim mesmo. (risos). Olha que assombro: eu mesmo rasgando meus poemas. Achei inferiores, de qualidade bem inferior.
• Qual o nível que você exige dos teus poemas?
O poema exemplar pra mim? É o poema, como eu disse, que tenha o mínimo de palavras e o máximo de impacto, de expressividade. Um poema como se fosse uma porrada. Eu sempre pensei assim, um poema como um cartaz: a maior objetividade possível e/ou a maior subjetividade impossível. Um poema como se fora uma porrada no baixo ventre, uma jogada no estômago do cara. A visão de um lírio no vaso e esse vaso é muito bonito num monte de lixo, uma criança perdida em escombros ou no ferro velho. Tudo que leva à objetividade extrema ou a subjetividade extremada também, sempre sinteticamente.
• Essa idéia da síntese foi alguma coisa que você resgatou de relações pessoais? Porque isso me parece muito importante.
Exatamente, você foi no cerne da coisa. Foi por meio do Newton Carneiro, por meio da poesia do Newton Carneiro. Ele era um conversador emérito, ele falava horas seguidas sem você se cansar. E era de uma poesia enxuta, seca, contida, sintética. Foi lendo a poesia de Newton Carneiro que eu comecei a escrever poesia.
• Você acha que deve a ele a sua visão?
Essa é a minha raiz, essa é a visão que eu tenho da poesia hoje. Depois eu me liguei a outros poetas, como por exemplo o Manuel Bandeira. O Manuel Bandeira é marcante, está em mim a figura imensa do Manuel Bandeira. Ernani Reichman também. Como eu escrevia crítica literária, e na época eu estava lendo o Fialho de Almeida, ele me deu uma cortada enorme. Ele disse: isso tudo é uma porcariada que você está escrevendo. É uma aparente erudição, você quer chamar atenção pelas citações, mas procure podar isso e não ser a semelhança de alguém e sim ser a semelhança de você próprio, o velho Platão já dizia isso. No mínimo seja um sósia de você mesmo.
• Por falar em síntese e em forma, você tem buscado sempre referenciais do cinema. Como o cinema entra em você?
O cinema entra pelos olhos do leitor menino, desde muito pequeno eu curto cinema. Ele aparece através de minha mãe. Minha mãe, todos os dias ela saía de casa e ia à matinê. E quando ela voltava, me contava os filmes. Muitos anos depois, já adolescente, eu fui assistir no Cine Curitiba aos filmes que ela me narrava. E fui ver que os filmes não eram bem assim como ela contava. Os filmes eram bem diferentes em inúmeras cenas. Ela reelaborava essas cenas, ela magicizava a coisa toda que ela via, inventava. Então ela via o filme pelos olhos próprios. Cenas que deveriam existir ela criava, cenas que não existiam ela criava; cenas existentes que ela gostasse, ela conservava; cenas existentes que ela não gostasse, ela suprimia. Ela me informava diariamente a respeito do cinema. Era uma mulher de grande leitura, uma época ela chegou a ler 300 livros num ano. Bom, você perguntou como o cinema entra em mim. Ele entra pelos olhos, desde menino. Eu falei em transe, em sonho…
• Qual a diferença entre transe e sonho?
O transe é o transe mediúnico, você voa. Eu não tenho experiência pessoal, mas é como se fosse o transe motivado pela droga. Existe uma diferença entre um e outro, mas, em linhas gerais, é como se fossem equivalentes. Embora existam diferenças de grau. O transe difere do sonho porque o sonho é um transe não motivado, o transe mediúnico é sempre motivado. Existe a entidade espiritual que reelabora o transe e você passa a viver dentro dele. O sonho é aquele mecanismo do consciente e do inconsciente, uma parte do teu consciente está presente. E no transe mediúnico você é dirigido. Você não se dirige. Certa feita me perguntaram qual o livro ideal pra você aprender a escrever. Existem centenas de livros que recomendam a maneira de você fazer o trabalho literário. Existe o sonho que é o ideal pra você aprender a escrever. Você sonhou, ou teve o transe mediúnico, ou o transe motivado pela droga, procure reviver quadro por quadro. Como se você saísse do cinema, sentasse à máquina e datilografasse exatamente o que você viu. Se não exatamente o que você viu, aquele exatamente que ficou em você, quadro por quadro, fotograma por fotograma, seqüência por seqüência.
• Então, existe o cinema como sonho?
Então, aí existe o cinema e a síntese. Porque o sonho é a síntese. No sonho não existe um fotograma, um quadrinho, uma cena a mais. Não existe um adjetivo impropriado, é sempre exato, é sempre objetivo.
• Existe com perfeição absoluta?
Com perfeição absoluta. Você se lembra, Bond, do fragmento de A Nova Holanda que se refere a uma mulher… estou no fundo do mar, ouvindo a pressão marítima, vendo aquele verde das águas, e surge uma mulher e me entrega um cavalo em gesso. Sonho, foi sonho. Eu poderia ou partir pra poesia e montar o poema em cima disso, desse fundo, desse esqueleto, para carnalizar isso, ou me transportar para a prosa, para a prosa de ficção. Achei que mais interessante seria jogar isso aí pro caminho da prosa. Então é assim, repetindo exatamente o que acontecera no sonho. Esse é o meu caminho poético.
• O cavalo de gesso é o cavalo real? A mulher é real? O mar é real? O Sossélla é real?
Em alguns poemas, sim. Em outros, em razão desses transes, agora transes mediúnicos, me surgem figuras míticas. Eu tenho um conto que fala em (—) eu nem sabia o que era (—). Eu tinha lido vagamente num escritor, depois fui conferir no dicionário que diabo é isso (—). Às vezes me aparecem figuras reais, nomes de autores que eu nem conheço. Noutras oportunidades, eu trabalho na poesia com nomes reais, nomes de autores, para fazer poemas-homenagem, que eu chamo. Então, são vários os lances da confecção de um texto. Sempre buscando a síntese, isso pra mim é fundamental, primordial.
• O cinema foi a semente da sua curiosidade poética?
Sim, nascida muitos anos depois, porque a minha paixão pelo cinema precedeu a minha experiência poética, em muitos anos. Meu primeiro livro de poemas é de 1966. Em 1956, dez anos antes, eu já ouvia os relatos cinematográficos de minha mãe e já estava impregnado pelo Cine Curitiba.
• Por que esse isolamento, esse recolhimento? Você alimenta esse isolamento ou ele é que te alimenta?
Somente me beneficia o isolamento. Embora, evidentemente, eu me ressinta de contatos como com você, com o Guinski, com os amigos todos, com os escritores, com os artistas de um modo geral, isso me causa uma restrição na minha maneira de ser. Mas, tem outro lado que me beneficia, porque isso aí já é uma visão de mundo que eu tenho. Desde antes de escrever o meu primeiro livro eu já vivia solitariamente aqui em Curitiba. Vivendo no interior, na minha experiência de magistrado, eu passei a notar que as 24 horas duram 48 horas na província.
• É outra velocidade?
Sempre me alimentei de frases. Eu me agarro nas frases para suportar a minha solidão. Tem uma frase do Ibsen que diz: “O homem forte é o que fica só”.
• É o maior desafio que a pessoa pode ter.
Exato, ficar só e resistir às intempéries todas da vida. E olhando a figura imensa de Ernani Reichman, que viveu só em Curitiba, o tempo todo, era chamado de bruxo quando ele era vivo. Ou você faz a tua obra ou você não se realiza. Muitas vezes você não se sente realizado embora esteja fazendo a sua obra. Ela não acontece da maneira que você quer que ela aconteça. E você vai dividir esse tempo com baboseiras, com saídas, com papos furados, com pessoas que não entendem da coisa? Isso, evidentemente, não me torna um bruxo insensível ao que esteja ocorrendo com a humanidade e com o homem da minha esquina. Eu tenho contatos com pessoas simples. Aliás, é da minha preferência o contato com pessoas simples. Com essas pessoas mais socialmente posicionadas não tenho muito contato. Eu aprendo muito com as pessoas simples. São frases às vezes que me vêm, saio correndo e vou anotar.
• É um elaborar constante?
É um elaborar constante.
• Agora voltando à questão da veracidade: eu leio o Borges com certo receio. Por mais que ele se mostre verdadeiro, parece que ele está sempre escondendo alguma coisa. Isso existe também nos teus textos. O que você diz é verossímil mas não é verdadeiro. Existe uma carga de mentira dentro do poeta?
Exato. Tem uma palavra de Guimarães Rosa, um neologismo, que vem em cima disso aí, a falsimilhança. Existe sempre uma falsimilhança. Por mais verdadeira que pareça, não é verdadeira, ele é um falso semelhante.
• E essa é a magia do texto?
Essa é a magia, realmente, da poesia , do texto de prosa, de ficção. Porque, a verdade, nem o coitado do genial Emile Zolla conseguia apreender, saindo às ruas com cadernetas e observando feiras, anotando minúcias naturalíssimas para compor os seus romances de gênero, em busca do real, para flagrar o verossímil. Hoje nós sabemos que, genialidade à parte, historicidade de lado, a escola naturalista, no que concerne à obra dele, tinha erros, erros impecáveis, erros de visão romancísticas detectados, por exemplo, por um Georg Luckas, que examinando as nuanças da prosa de ficção, observou em Zolla, confrontando com Tolstoi, o que era narrativa, o que era descritivo. Então em Zolla não era a narrativa, ou seja, coisas que ele trazia panoramicamente para dentro da obra e que passasse a viver uma conjugada à outra, indesligáveis, indissociáveis, ao passo que em Tolstoi, uma cena referida no primeiro capítulo de Ana Karenina, tem um valor que se associa a uma outra cena, envolve outras semelhanças relatadas, narradas no quinto capítulo, ou no vigésimo capítulo. São interligadas uma à outra. Em Zolla não. Em Zolla você pode desligar isso. Você lê, por exemplo, não lembro agora em que romance que é, 34 páginas de descrição de um jardim. Esse relato do jardim é uma descrição, não tem nada a ver o jardim com o quadro todo do romance. Você pode suprimir, pode arrancar as páginas que não fazem falta ao contexto. Tudo o que pode ser destacado não tem valor. No caso da prosa de ficção, o relato que chega lá no verossímil, pode até alcançar as raias do real, teu nome é narrativa. O resto é descrição, não tem valor.
• Para chegar a isso, o domínio da síntese é o principal?
Sim, o domínio da síntese.
• Todos os poetas elegem seus símbolos. Você reconhece alguns símbolos na sua poesia?
Na minha poesia e na minha prosa de ficção existe o pre-domínio de alguns valores simbólicos que são fundamentais, como por exemplo o mar, a terra e o céu. O mar, matriz comum, a placenta nossa, me faz retornar, me faz regressar ao útero; a terra, do mesmo modo. Só que a regressão ao mar, com muito medo. O mar me causa pavor. E a regressão à terra, sem medo.
• São distâncias diferentes?
Isto. E o céu, uma distância espiritual, a sucumbência, a finalização. Na verdade, nem se sucumbe, nem se finaliza. É um clic e um des-clic. Você está vivo, é um clic. Depois é um des-clic, você morre. Na verdade não é você morre, você passa de um lugar para outro…. não de um lugar para outro, você passa de um estado para outro. Espírito e periespírito, corpo físico e o outro corpo, que também é físico mas que é chamado de periespiritual.
• A associação que você faz com o centauro, talvez tenha assim uma figura pela qual você se apaixonou?
Sim. O centauro entrou no A Nova Holanda como um ser: minha vó paterna tenta cavalgar o centauro, mas na verdade é ela que tropeça e cai e cai e tropeça. O centauro está na dele, tranqüilo, transportando. O centauro entra como, digamos assim, o lírio em si. Vi minha vó paterna enlutada e não a minha mãe.
• Você tem disciplina, você é uma pessoa disciplinada? Em leitura sei que sim.
Sou, em leitura eu tenho 50 páginas diárias pra ler. Leio 50 páginas todos os dias. Para a feitura da minha escrita eu tenho minha chegada no escritório, na minha biblioteca, às 8 da manhã, permaneço até o meio-dia, ou uma hora da tarde, e após o almoço, após o cochilo, das 14 às 18 horas. Isso é todos os dias, faça sol ou chova. Evidentemente que existem dias em que, leituras à margem, você consegue uma frase, e eu fico muito feliz quando consigo uma frase. Outro dia, que é mais revelador, você obtém um conjunto de frases. Você obtém dez poemas, 12 poemas, 15 poemas de uma vez só, já me aconteceu. Mas o dia que eu obtenho um poema ou que obtenho uma frase já me dou por satisfeito. Nessa constância, trabalho que se renova dia-a-dia. Só não trabalho à noite por motivos familiares.
• Você também é jurista. Como se dá a passagem do real, do justo e do lógico para o imaginário da poesia?
Sobre a Justiça, existe uma lógica que é apriorística. Eu tinha uma coleção de imagens mostrando “n” símbolos da Justiça sem a venda nos olhos. A Justiça não pode estar vendada, ela tem que olhar, ela tem que enxergar. Eu vou distribuir Justiça e tenho que saber para quem, pois existe aquele que não merece justiça. Você adiciona alguns gramas de piedade na balança, mas existem criaturas que simplesmente não merecem piedade. É o caso do crime do passador de drogas: não merece piedade. Existe uma máxima, muito interessante: aos meus amigos os benefícios da lei, aos meus inimigos, os rigores da lei, aos estranhos, a lei. Evidentemente que isso é uma brincadeira, eu não me portava assim. É só para mostrar que você tem que agir assim. Para o estranho e ilegal, a Justiça. Para nós, os benefícios da lei. Para os inimigos, os rigores da lei. Como juiz eu me portava assim. Você pergunta como eu conseguia conviver com esse senso de Justiça e ao mesmo tempo com as falsimilhanças. Pois é, isso é interessante, é muito interessante. Às vezes, eu estava datilografando uma sentença e me ocorria um poema. O poema era a minha libertação. Aquele quadro todo dantesco, filho atirando contra pai, mãe entregando filho à Justiça por maus-tratos. E eu escapulia para o território da literatura, e me vinha um poema, me vinha duas frases: eu era salvo pela literatura. E noutras ocasiões, eu estava escrevendo um poema e me vinha uma frase que eu deveria aproveitar para uma sentença que estava perspectivada. Então eu consigo conviver com essa dualidade.
• Agora, o Sossélla poeta passa a ser o juiz. Você acha que a crítica tem sido atenta à poesia no Brasil?
Nós já tivemos o Otto Maria Carpeaux, o Brito Broca. Teve um Álvaro Lins, um Fausto Cunha. Hoje, eu vejo o panorama da crítica literária como desolador.
• Independentemente da crítica, você se sente correspondido?
Se minha obra foi alcançada pela crítica? Foi em parte, alguns muito bem, por sinal. No muito bem entra você. Você chegou lá, nas raízes, nos troncos, nas folhagens, nos rebentos, em coisas que eu não tinha percebido, que o próprio autor não conhecia. Eu falo você, porque fora mais uns três não rolou nada ao sul de Nova York.
• Por que você não reúne teus trabalhos todos em uma coletânea?
A cada 5 anos, 8 anos eu repenso meus trabalhos poéticos todos e publico minha antologia própria, como foi o caso de Tatuagem de Natanael, Ao vencedor, as batalhas; Mínima tatuagem, Cantares de…, está concorrendo… Você me perguntou… Eu me afeiçoei às edições caseiras, porque desde moço, se eu não publico o meu livro eu não fico contente comigo mesmo. Se eu for aguardar um editor me publicar, estou fodido. Mesmo que datilograficamente, eu mesmo faço meus livros. Sylvio Back uma vez me chamou, semvergonhadamente, de não-humilde, porque eu não mandava meus livros para os editores. Eu achei estranho aquilo e passei a mandar, sempre com um bilhete, sempre com uma pequena carta, dizendo que estava encaminhando os originais do livro x, ao conselho da renomada editora y, para o qual eu concedia o prazo de dois meses (risos).
• Só dois meses?
Exatamente. Porque ou você é você ou não é ninguém.
• Tem de estabelecer…
Recebi, em devolução, um livro de contos, O Livro de Jó, da Nova Fronteira. Conservo esse material todo para mais tarde dar uma estraçalhada nessas editoras. Embora eu mande os meus livros para as editoras, eu estou cagando e andando para as editoras, porque a minha obra tem qualidade, você sabe muito bem disso, você já a examinou e sabe que a “lixeira” que está sendo publicada é enorme, o que me causa assim um contentamento extraordinário, ao ver os lixos que são entregues pelas casas editoriais.
• Você vive em uma biblioteca. Como é isso? Tudo isso é teu ou está exposto?
São 25 mil volumes que eu não podia deixar de expor ao público. Porque não sou egoísta… expostos ao público mas eu não empresto um exemplar… eu, sempre que posso, me fornecem o assunto para a pesquisa, eu abro a enciclopédia, localizo a matéria na enciclopédia, procuro deixar a pessoa saber mais sobre Einstein e as retinas dos grilos. Sobre as crianças: as crianças sempre foram o meu menu (risos) e não sou o lobo mau (risos). Porque eu faço visitas a colégios, a escolas, para levar a literatura para essas crianças. Então são essas crianças que me fornecem o retorno, comparecendo à biblioteca, perguntando…
• As crianças, hoje, com essas linguagens tão pasteurizadas, devem se sentir na tua biblioteca como se estivessem em um zoológico.
É com essa sofisticação tecnológica toda, em que a criança tem que conviver na marra, à força, no cacete. Os brinquedos não estão representando nada, não constituem mais…
• O lúdico.
O lúdico, exatamente… não encerram mais nada que gere uma expressividade para a criança. Não mais aquela boneca de pano ou de louça, não mais aquele carrinho de madeira, mas sim essas japonezisses de pilha, aquela coisa imoral e ridícula, ao mesmo tempo.
• É que não desperta o investigativo, a curiosidade, o desmontar…
Isto.
• A leitura é um desmontar.
Um desmontar permanente, continuado.
• A Biblioteca de Paranavaí talvez seja numericamente maior do que a tua, mas…
Talvez uns 22 mil volumes, mas com exemplares duplicados. Quer dizer que, então, na verdade é menor.
• A surpresa dessas crianças em ter que desmontar aquilo, imaginativamente.
É. Elas ficam muito curiosas com as coisas lá existentes.
• E como é sentir o prazer de ter deixado um texto pronto? Acabou, enfim.
Comparo esse prazer ao prazer propriamente dito, o prazer genésico, ao orgasmo, à ejaculação. Pois tem muito disso. Você sabe disso. Uma vírgula que você altere mais tarde, transportando de um lugar para outro, um adjetivo que você suprime, um verbo que você acrescente, sempre atendendo à síntese, é a mulher que se oferece ou a mulher que se recusa. Então você atinge o prazer na verdade, encontrando o poema como você o deixou, naquela qualidade que você exige, ou encontrando o poema que se recusa às mudanças que você queira.
• … e a palavra… é feminina.
Feminina, é a palavra mesmo. Eu tenho uma anotação, que transformei num poema, pensando acerca da licença poética. Tenho dois poemas assim. Um que diz: Com licença, poética. E outro que diz que a melhor licença poética é o estupro. Sem pedir licença, a licença poética, você tem que estuprar a palavra, se infiltrar nela.