“Sobrevivi a mim mesmo”

O jornalista e escritor Carlos Heitor Cony fala (pouco) de sua obra
Carlos Heitor Cony, autor de “Pilatos”
01/05/2001

Fabrício Carpinejar

• Pilatos preconiza o romance sujo, antecipação na prosa do Poema Sujo de Ferreira Gullar. O que o marca é o mal-estar do mundo no homem (não apenas do homem no mundo), espécie de ápice da antiliteratura. Esse despojamento é o que torna seu livro radicalmente definitivo e uma experiência impossível de ser repetida?
Meu caro Fabrício, é possível que seja uma antecipação, mas não voluntária. A “sujeira” rondou a literatura, nos gregos, nos latinos, na Idade Média, nos tempos atuais. Nosso pai  foi Rabellais, nossos tios foram Swift, Sade, Miller, Faulkner e tantos outros.

• O romance Pilatos foi o responsável por vinte anos de silêncio de Cony, de 1974 a 1995. É uma sátira feroz, um niilismo total, em que o protagonista é acidentalmente castrado. Seria uma metáfora da castração criativa e social imposta pelo regime militar?
Mais ou menos. Pilatos foi o livro que perseguia, que desejava fazer. Se me perguntarem: por que você nasceu? Eu responderia: Para fazer um livro como Pilatos. Depois dele, conforme disse no preâmbulo de Quase memória, eu não sentia necessidade de escrever qualquer coisa a mais. Mas as circunstâncias são mais fortes do que a vontade pessoal. Vivi além do esperado e acabei  sobrevivendo a mim mesmo.

• Todos sabemos o quanto o medo da castração mexe com o imaginário masculino. Alheio ao derradeiro acidente, o protagonista carrega seu membro de um lado para o outro num vidro de conserva, com os privilégios de um amigo imaginário. Não estaria configurando uma crítica aos costumes, do homem pensar seu sexo como algo independente, com vida autônoma, inclusive dando a ele apelidos e nomes próprios?
Sim.

• O melhor da parábola é que não atende os anseios da esquerda, muito menos os da direita. O ponto de vista do autor é imparcial, como se não precisasse redundar o enredo com juízos morais e com o fetiche da denúncia. Houve essa preocupação?
Novamente, sim.

• O mais absurdo do personagem de Pilatos é a esperança. Ele não tem família, nem emprego, casa, profissão, metas e ainda perdeu o símbolo de sua virilidade. Mesmo assim, continua vivo, persiste em ver o que vai acontecer. Em Quase Memória, a esperança se faz presente na frase lapidar de Ernesto: ‘amanhã farei grandes coisas’. Até que ponto a esperança do brasileiro não é uma insanidade?
Você botou o dedo na ferida. O problema da esperança e do desespero são as duas balizas da minha vida e dos meus livros. No momento, estou escrevendo um novo romance, ainda sem título, em que a sinopse pode ser resumida numa frase: a esperança é idiota, o desespero é inútil.

• Depois de implacável Pilatos, a literatura foi retomada com um livro antagônico, Quase Memória, Quase Romance, pontuado pelo afeto, delicadeza e lirismo. Recuperando a figura do pai, Ernesto Cony, não recuperaste de roldão o ideal de vida, o gosto pela literatura como improvisação e a qualidade primeira de puramente contar histórias?
Não. Posso ter dado a impressão de alguma recuperação. Mas ela não foi definitiva nem real. O fato de ter tratado um sub-homem com alguma ternura, não invalida minha tese: o homem não tem salvação. Por isso mesmo, merece amor, embora não mereça perdão.

• Os fracassos do pai relatados no Quase Memória, suas peripécias e pequenos desastres, dialeticamente são consagradores. As derrotas individuais seriam mais pessoais que as vitórias?
Sim.

• Se o protagonista paterno burlava seus acontecimentos com saborosas mentiras, transgride da mesma forma a matéria autobiográfica com a invenção (daí o Quase do título)?
Sim. O quase no título é fundamental.

• O Informação ao Crucificado (1961) traz um pai corporal, presente, exigente, época do enfrentamento. Quase Memória é o pai ausente, mais compreendido — época da reconciliação. O paralelo pode ser feito? Quase Memória é um ‘segundo turno’ do Informação?
Não. Ambos são razoavelmente autobiográficos. Se eu lhe passar uma receita de bolo, fatalmente serei autobiográfico, recomendarei mais ou menos açúcar, mais ou menos manteiga ou ovos, substituirei o cravo pela baunilha etc. Neste sentido, o Informação pode ser considerado uma antecipação do Quase memória.

• Pessach — a Travessia, que enfoca a guerrilha e os nichos políticos, demonstra que falta-nos a vocação para a luta coletiva? Os interesses privados sempre prevalecem e sobrepujam o ideário público?
Sim. Mais uma vez você acertou na mosca.

• A Casa do Poeta Trágico lida com a paixão como pulsão da morte, tanto que as ruínas de Pompéia formam o cenário de referência. É uma releitura do mito Lolita, na medida em que o publicitário de meia-idade se apaixona por uma adolescente italiana? Ou melhor, é uma revisão do sentido do divino que detona o destino nas tragédias gregas?
Não creio que  A casa do poeta trágico tenha qualquer coisa a ver com a Lolita, do Nabokov. Esta sim, é um obra-prima da literatura contemporânea, um romance que poderia ser assinado por Flaubert, Stendhal, Tolstoi. No meu livro, a diferença de idade entre os personagens principais é um detalhe, não um fundamento da trama. Fossem os dois da mesma idade, o desfecho seria o mesmo. Independentemente da cronologia temporal, a mecânica atemporal do ser humano é absurdamente individual e, liberada da hiprocrisia social ou econômica, termina na solidão, nem sempre simultânea, mas irrecusável.

• Percebo uma fluência carioca em sua narrativa, seguindo uma linhagem de Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio e Manuel Antônio de Almeida. De que forma a dicção do Rio de Janeiro particulariza e contribui ao gênero?
Desde meu primeiro romance, publicado em 1958, fiz questão de me considerar na mesma linha dos autores que você citou, tirante João do Rio, que respeito bastante mas nunca me influenciou. Não se trata de uma carioquice, mas de uma visão de ver o mundo, de refletir o homem que é própria do picaresco de Almeida, das alegorias debochadas de Lima e da profundidade irônica de Machado. São eles os meus mestres e nada me envaidece mais do que isso.

Paulo Polzonoff Jr.

Seu livro O Ventre traz evidentes influências de O Estrangeiro, de Albert Camus. É um livro pessimista, diferente das obras recentes. Pode-se até dizer que é um livro socialista, que não acredita na redenção do homem. Onde está o Cony “místico”, “ex-seminarista” neste seu primeiro romance?

Acredito que a maior influência do meu primeiro romance (O ventre, 1958) seja uma gentil mistura de Sartre e Machado de Assis, notadamente, A idade da razão de um, e Dom Casmurro de outro. Gosto bastante de Camus, sobretudo de seus ensaios e teatro. Ele influiu em minha maneira de caminhar pelo mundo, mas não em minha obra. A santidade sem Deus, o mito de Sísifo são temas recorrentes na minha consciência.

• Pilatos é um livro que causou asco em muitos leitores. A idéia de um homem carregando o próprio pênis traz referências freudianas inegáveis.
Così è, si vi pare

• Seus romances parecem ser uma miscelânea ecumênica. Em Pessach: a Travessia, o catolicismo reinante em Cony se vê misturado ao judaísmo do personagem. Gostaria que você explicasse este ecumenismo em sua obra.
Não gosto da palavra ecumenismo. O homem é, em princípio, uma mistura de barro (ou lama) e vento (pneu, em grego, que pode significar alma, sopro de um deus). As religiões são estruturas políticas, econômicas e sociais que funcionam como atalhos. No meu caso, como qualquer homem ocidental, pertenço a uma tradição judaico-cristã. Seria falsa qualquer expressão que escapasse desta camisa de força biológica, cultural e social.

• Por outro lado, sua vida de jornalista teve uma atuação política importante. No entanto, o senhor não fez, em nenhum momento, uma literatura que se possa classificar como engajada. Há muita cobrança neste sentido? Por que o escritor brasileiro sempre tem de mostrar seu posicionamento político na literatura? Machado de Assis, por exemplo, até hoje é combatido porque, dizem, não defendeu a abolição, a República etc.
A cobrança é idiota, como qualquer cobrança. Uma violência contra a liberdade individual. No início de minha carreira, num clima político e ideológico, fui criticado pelos meus temas desengajados. Não dei ao fato político o direito de se intrometer em minha consciência de homem e de escritor. Como jornalista, tinha de encarar a realidade, o fiz da maneira que me pareceu mais sincera comigo mesmo. Ainda o faço, hoje em dia. Quanto à cobrança que você cita, ela não é apenas brasileira. É universal. E se prejudica um determinado autor em termos de mercado, não o prejudica em seu valor intrínseco. É o que finalmente conta.

• Seus últimos livros percorrem o caminho de uma literatura mais voltada para o lirismo e questões, com o perdão do tempo excessivamente batido, existenciais. Porque esta reviravolta?
Machado de Assis é um dos exemplos do que explicitei na pergunta anterior. Nenhum homem pode ficar ileso às suas circunstâncias. O lirismo de hoje já estava anunciado em O Ventre. Tirante Pilatos, que é uma exceção em minha obra, todos os demais livros são a mesma história, o mesmo desencanto e a mesma ternura pelo homem amaldiçoado por si mesmo. Houve tempo em que pensei reunir todos os meus romances, com exceção de Pilatos, sob o título geral de Os sub-homens, um painel da condição humana visto por uma vítima, uma testemunha e um cúmplice.

• Muitos o acusam de ter sido um grande marketeiro por ter deixado de escrever romances por trinta anos e depois sair-se com sua obra-prima Quase-Memória
Foram 23 anos de silêncio e afastamento voluntário da literatura, mas sem qualquer intuito marketeiro. Como poderia imaginar que viveria tanto tempo assim? Quem me garantia isso? Nesse período, tive um grave problema de saúde, uma cirurgia que demorou nove horas, com risco de 90% de óbito. Se tivesse morrido, de que me adiantaria o marketing do silêncio? Além disso, não considero Quase memória uma obra-prima. É um livro que qualquer um poderia escrever, de forma pior ou melhor. De todos os meus romances, é o menos representativo. Daí que é um quase.

• Por que entrar para a Academia Brasileira de Letras (ABL)? Que tipo de prestígio isto oferece? A vaidade não é o maior pecado da literatura brasileira e a ABL, a institucionalização deste pecado?
Desde 1962 vinha sendo sondado e convidado a me candidatar à ABL. Mas sempre recusava a sugestão, pois embora admirasse a Academia, suas tradições e a maioria de seus membros, não tinha jeito nem interesse para encarar uma campanha na base de pedir votos e reconhecimento. Com  a morte de Dias Gomes, abriu-se, dentro e fora da Academia, uma campanha ridícula contra a candidatura de Roberto Campos, que por ser um dos líderes da direita, não deveria substituir um militante da esquerda. Ameaçaram retirar o corpo de Dias do mausoléu (uma idiotice macabra) queimar fardões, jogar ovos podres no prédio da ABL. Como jornalista, mais uma vez, embarquei na canoa e defendi o direito de Roberto ser candidato. Se fosse acadêmico, naquela ocasião, certamente não votaria nele. Mas escrevi diversas crônicas e participei de alguns debates na TV e em faculdades defendendo este meu ponto de vista. Antes mesmo da eleição para a vaga do Dias, morreu o Herberto Sales. No dia do sepultamento do Herberto, ao qual não compareci, fui surpreendido pelo lançamento de minha candidatura por parte de acadêmicos, que me garantiam 23 votos (o necessário seria 19). A amigos mais íntimos que tinha na Academia, reclamei daquele lançamento, mas ouvi um argumento não podia refutar: eu já estava brigando pela Academia, publicamente. A crise da vaga do Dias não ficara restrita ao seio da ABL, que tradicionalmente não discute este tipo de problema em foro externo. Não sendo eu da Academia, era de certa forma a expressão da maioria lá de dentro. Apesar dos méritos e da correção exemplar do meu concorrente, o filólogo Leodegário de Azevedo, fui eleito com 25 votos, dois a mais da previsão feita no dia em que abriu a vaga para a cadeira n° 3. E sete a mais do quorum naquele data.

Menalton Braff

• Cony, parece que o experimentalismo e a novidade como categorias estéticas vivem, mais uma vez, seus ocasos. Apesar disso, todos nós, depois da meia-noite e sem que ninguém nos esteja espiando, gostamos de cometer nossas experiências. Se você concorda com isso, gostaria que me respondesse ao seguinte: Qual foi a experiência literária que lhe deu a maior satisfação? Qual a experiência literária que você não sente a menor vontade de cometer? Qual a experiência literária que ainda lhe falta?
Não sou de muitas experiências. Elas equivalem aos efeitos especiais do cinema, fazem muita espuma, muita borbulha. São referências técnicas que, eventualmente, podem abrir um caminho. Mas todos os caminhos são válidos para se chegar lá, inclusive as estradas reais, os atalhos, e até mesmo o nenhum caminho, aquele que se faz ao caminhar.

• Você não deve saber que em 64, logo depois do golpe militar, havia, em Porto Alegre, um grupo muito grande de estudantes universitários que sofreram profundamente o revés infligido à democracia. Naquele período apareceu na imprensa uma bandeira que se chamava Carlos Heitor Cony. Sua coragem e desassombro ao ser o único jornalista do Brasil a contestar o regime tornou-o nosso guru. Nós o adorávamos inteiramente à traição. Foi a época do Ventre. Pergunto: Em que sentido o golpe de 64 influiu em sua literatura? Se é que influiu. O que a sociedade brasileira deve ao golpe de 64?
O golpe de 64 influiu em minha vida pessoal e profissional. Mas não dei a ele o direito de se meter em minha obra. Como jornalista e cidadão, paguei um preço alto, fui preso seis vezes, fiquei sem condições de trabalhar no Brasil. Mas em 1964, justamente quando mais me metia no fato político, escrevi um romance (Antes, o verão) completamente alienado, sem nenhuma referência à situação que o país vivia e que eu sofria. Tratei de assuntos políticos em outros romances (Pessach: a travessia e  Romance sem palavras, até mesmo em Pilatos, como metáfora de um tempo). Mas em todos os três, a situação política nascida em 64 foi apenas um background, um pano de fundo para uma trama centrada nas incalculáveis cavernas da alma humana.

• Os Formalistas de todas as idades consideram a dimensão estética da literatura privada de qualquer conteúdo ético. Como você encara essa questão?
O formalismo é uma variação do ato de fé. É um  mistério. Misterium fidei, mistério da fé, — como dizem os padres na missa, após o milagre da transubstancialização da farinha de trigo em corpo físico de um Deus. Creio ser esta a maior expressão do formalismo, ou seja, o trânsito da essência para o acidente, como queria Aristóteles. Acredita e adota quem quer. Pode matar ou salvar. Ou pode não ser coisa alguma.

Rogério Pereira

• Em um diálogo de Pilatos, os personagens travam uma discussão sobre literatura. Dos Passos diz ao Grande Alquimandrita: “Meu caro, a literatura só se salvará se voltar às origens. O folhetim, a aventura, a escatologia”. A literatura, principalmente a brasileira, precisa ser salva? Qual é o caminho?
A fala do meu personagem é dele, não minha. A escatologia, nos dois sentidos da palavra, é um dos caminhos mas não chega a ser um tipo de salvação. É um caminho, como outros.

• Discute-se muito a qualidade dos jornais brasileiros. A queda na qualidade dos textos é muito clara. Hoje, qualquer um transforma-se em “jornalista”. Perdeu-se o amor ao texto no jornalismo diário, em favor de um imediatismo? Como o senhor avalia a imprensa atual?
A falta de qualidade no texto dos jornais tem uma causa próxima e uma remota. A próxima são os manuais de redação, que engessam o texto. A remota é a falta de qualidade do ensino em geral, que afeta todos os setores, tanto nas ciências exatas como nas humanas. A imprensa atual é contraditória, mas até mesmo em sua contradição, ela consegue dar alguns recados importantes para a sociedade.

• Hoje, pode-se afirmar que, ao lado de Luis Fernando Verissimo, o senhor é o maior crítico ao governo FHC, por meio de colunas diárias no jornal Folha de São Paulo. Dias desses, escreveu que não sabe contra quem luta, mas luta. O senhor é contra pelo sabor de contrariar? É um descrente no país? Ou considera papel fundamental do jornalista combater todo e qualquer governo?
Nem o Veríssimo nem eu somos animais políticos. Temos outro tipo de ocupações e preocupações, gostamos de outras coisas que não da política em si. Mas somos obrigados a dar uma opinião diária sobre os fatos de nossa atualidade, e, em linhas gerais, temos opiniões iguais ou paralelas. Mas não por força de um gosto ou de um princípio político ou partidário.

Evandro Affonso Ferreira

• Você concorda com Millôr quando diz que a vida seria melhor se não fosse diária?
Não creio que a vida seria melhor se não fosse diária. Ela seria menos estafante, mas não necessariamente melhor.

Rodrigo De Souza Leão

• Hoje o senhor é ateu, mas foi seminarista. Todos sabemos do rigor e da educação de qualidade dos seminários. Em que o fato de ter sido ex-seminarista ajudou ou prejudicou a carreira de escritor? O fato de hoje ser ateu é uma evolução do seu pensamento?
Sou um homem, como qualquer outro, en route. Se prefere em latim, sou o homo viator. Ter sido seminarista em nada prejudicou ou melhorou minha obra. Deu uma base para a minha vida, isso sim. Fui agnóstico radical até pouco tempo, mas sou inconformado com qualquer posição radical, principalmente as minhas. Estou em processo, sempre estive. Onde chegarei, honestamente, não me preocupa.

Fabrício Carpinejar

É jornalista e poeta. Autor de caixa de sapatos, entre outros.

Rascunho